quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 16,13-23

O Evangelho de Mateus 16,13-23 é proclamado na 5ª-feira da 18ª semana do Tempo Comum e em outras ocasiões, como na festa da Cátedra de São Pedro (quando se lê até o versículo 19) e em solenidades que recordam o ministério apostólico. Ao situar este trecho no contexto da oração e da escuta comunitária, a Igreja nos convida a retornar, vez após vez, à pergunta que Jesus dirige aos discípulos e que continua viva e urgente em cada geração. É uma pergunta que não se dirige apenas a um grupo de pescadores da Galileia, mas que atravessa os séculos e chega até nós, desafiando nossas certezas e confrontando nossas imagens de Deus (Sl 139,1-4; Jr 17,9-10).

Quando Jesus chega à região de Cesareia de Filipe, não é por acaso nem por turismo. Trata-se de um lugar carregado de simbolismo político, religioso e cultural. A cidade, reconstruída e ampliada por Filipe, filho de Herodes, era um polo de culto pagão, onde se erguia um templo em homenagem ao imperador romano — adorado como “filho de deus” na ideologia imperial (Rm 13,1-7) — e onde antigas tradições cananeias associavam a nascente do Jordão ao deus Pã, símbolo de fertilidade e força selvagem. Ali, distante do Templo de Jerusalém e de suas seguranças ritualísticas (Sl 122,1), Jesus conduz os discípulos para um terreno onde o poder imperial, a idolatria econômica e as expectativas messiânicas populares se encontram e se confundem. É nesse contexto de disputa de lealdades e significados que Ele pergunta: “Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?” (Mt 16,13).

A expressão “Filho do Homem” — vinda de Daniel 7,13-14 — evoca não apenas a humanidade de Jesus, mas uma figura escatológica a quem é dado domínio eterno, diferente dos reinos violentos simbolizados por bestas (Ap 13). É também um título que Jesus usa para falar de si mesmo de forma velada, abrindo espaço para que as pessoas cheguem ao reconhecimento não pela imposição, mas pelo encontro (Jo 1,14). A pergunta é meticulosamente pedagógica: antes de chegar à fé pessoal, é preciso confrontar o rumor das multidões (Lc 12,2-3). E as respostas que chegam a Ele ecoam a memória profética de Israel: “uns dizem João Batista; outros, Elias; outros, Jeremias ou algum dos profetas” (Mt 16,14; cf. Mc 8,28; Lc 9,19). João Batista, o pregador do arrependimento (Mt 3,1-12); Elias, o profeta que enfrentou reis e falsos deuses (1Rs 18); Jeremias, o homem das lágrimas e da denúncia contra a religião vazia (Jr 7,1-15); ou algum profeta que ousou falar em nome de Deus contra a injustiça (Am 5,21-24).

Todas essas comparações são honrosas, mas insuficientes. Reconhecem em Jesus algo de extraordinário, mas ainda o reduzem às categorias do passado, incapazes de perceber a novidade absoluta que Ele encarna (Is 43,18-19). É a tentação de encaixar Deus nos moldes antigos, de esperar que o Messias venha confirmar nossas agendas e não subvertê-las (Jr 23,16-22). O povo vê milagres, ouve palavras de autoridade, percebe compaixão (Mt 9,35), mas continua preso ao imaginário de um messias político, nacionalista ou milagreiro, capaz de restaurar a glória de Israel e derrotar Roma pela força (Mt 20,25-28). Então Jesus desloca o foco: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (Mt 16,15). A mudança de pronome é decisiva. Agora não se trata mais da opinião pública, mas da confissão pessoal (Rm 10,9-10). A fé não se apoia apenas no que ouvimos dizer; precisa nascer do encontro vivo (Jo 20,29). É Pedro quem toma a palavra: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt 16,16). No grego, Christós significa “Ungido” e ecoa o hebraico Mashiach, aquele consagrado para uma missão única (Sl 2,2). Mas Pedro acrescenta algo ousado: “Filho do Deus vivo”, uma profissão que remete ao Deus revelado em Êxodo (Ex 3,14), vivo e atuante, em contradição com o imperador, chamado “filho do divino” em Roma (At 17,22-31). Aqui, a confissão é um ato de resistência teológica e política: o verdadeiro Filho de Deus não é César, mas Jesus (Fl 2,5-11).

Jesus confirma: “Não foi a carne nem o sangue que te revelaram isso, mas meu Pai que está nos céus” (Mt 16,17). A expressão “carne e sangue” é um semitismo para indicar a limitação humana (1Co 2,14). Pedro não chegou a essa conclusão por lógica ou por pesquisa de opinião; foi um dom, fruto da intimidade com o Mestre e da abertura ao Espírito (Jo 14,26). É o mesmo que Paulo recordará em 1Coríntios 2,10-16: “O Espírito sonda todas as coisas, até mesmo as profundezas de Deus”. Então Jesus declara: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra construirei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16,18). No aramaico de Jesus, provavelmente a frase foi Kepha, e sobre esta kepha edificarei a minha comunidade. A palavra kepha pode ser entendida como “penhasco” ou “rocha firme” (Sl 61,2), e a imagem da pedra na Escritura evoca firmeza, mas também remete ao próprio Deus como rocha de Israel (Sl 18,3; Is 28,16). O profeta Isaías já anunciava a pedra angular, escolhida e preciosa, fundamento seguro para todos os que creem, uma rocha firme em meio às tempestades da história (Is 28,16). Aqui, a missão de Pedro não é a de um soberano terreno, mas de um fundamento vivo, chamado a sustentar a comunhão (Ef 2,20-22). As “portas do inferno” — na mentalidade bíblica, o poder da morte e do caos — não vencerão a comunidade que permanece fiel ao Evangelho (Sl 24,7-10; Ap 21,8). Paulo lembra que essa Igreja é “edifício santo, templo do Espírito” (Ef 2,20-22), sustentada pela pedra angular, Jesus Cristo.

O “poder das chaves” (Mt 16,19) não é licença para autoritarismo religioso, mas responsabilidade de abrir e fechar, ligar e desligar, reconciliar e excluir o mal, não as pessoas (Jo 20,22-23). A Lumen Gentium (27) recorda que a autoridade na Igreja deve ser serviço, não domínio; cuidado, não manipulação (Mt 23,8-12). Quando a autoridade se converte em mecanismo de autopreservação, acúmulo de bens ou manipulação de consciências, ela trai o Cristo Servo, que “não veio para ser servido, mas para servir” (Mt 20,28). O Papa Francisco em Evangelii Gaudium (109-111) denuncia a mundanidade espiritual e o clericalismo que “distorcem o sentido da missão, levando a Igreja a perder o frescor da novidade do Evangelho”.

Mas logo vem a virada dramática. A partir daquele momento, Jesus começa a explicar que é necessário ir a Jerusalém, sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos chefes dos sacerdotes e pelos escribas, ser morto e ressuscitar ao terceiro dia (Mt 16,21; cf. Mc 8,31; Lc 9,22). É o caminho do Servo Sofredor de Isaías 53, não o do conquistador armado (Is 53,3-12). Paulo relembra que a cruz é “escândalo para os judeus e loucura para os gentios” (1Cor 1,23) e que o verdadeiro discipulado passa por tomar a cruz (Gl 2,20; Lc 14,27). Pedro, que há pouco fora rocha, agora se torna obstáculo: “Deus não permita, Senhor! Isso nunca te acontecerá!” (Mt 16,22). Ele pensa proteger Jesus, mas está tentando desviá-lo do projeto do Pai. Por isso ouve palavras duras: “Vai para trás de mim, Satanás! Tu és para mim pedra de tropeço, porque não pensas as coisas de Deus, mas as dos homens” (Mt 16,23). Jesus é a “pedra de tropeço e rochedo de escândalo” para os que rejeitam o Reino (1Pd 2,8).

Este episódio revela a fragilidade humana: podemos confessar a fé num momento e, no instante seguinte, distorcê-la pelos nossos medos e interesses. O medo da dor, a busca de segurança e a sede de glória nos levam a projetar sobre Deus nossas ambições. É a lógica das teologias da prosperidade e do domínio, que pregam um Cristo sem cruz, um Reino sem renúncia, uma fé mensurada por posses e conquistas políticas (Lc 6,24-26). É também a tentação do clericalismo, que transforma a missão em privilégio e a graça em mercadoria (2Tm 3,1-5). Como alerta a Gaudium et Spes (63–66), as estruturas econômicas e políticas que absolutizam o lucro e o poder geram desigualdade e violência; a Igreja não pode se calar diante delas sem trair o Evangelho (Mt 25,31-46).

A antropologia mostra que, em todas as culturas, líderes são investidos de expectativas messiânicas. No tempo de Jesus, sob a opressão romana, o povo ansiava por libertação política (Sl 136). Jesus redefine o messianismo: não é conquista pela espada, mas entrega radical; não é supremacia, mas serviço; não é exclusão, mas mesa aberta (Mt 20,25-28; Lc 22,27). São João Crisóstomo dirá: “O poder na Igreja é mais pesado do que honroso, pois exige carregar o peso das almas”.

A cena de Cesareia de Filipe, portanto, é um alerta para nós. Não basta repetir fórmulas corretas; é preciso encarnar a lógica do Evangelho. Na sociedade do espetáculo, proliferam falsos profetas que transformam o Evangelho em espetáculo e mercadoria, banalizando a cruz e vendendo uma fé anestesiada, que conforta os poderosos e abandona os pobres (Mt 7,15-20; 2Tm 4,3-4). O Cristo vivo não cabe em slogans; Ele derruba tronos (Lc 1,52), chama a perder a vida para encontrá-la (Mt 16,25) e caminha com os descartados do sistema (Mt 25,40).

Responder à pergunta de Jesus é aceitar o caminho da cruz, da entrega e da comunhão. É reconhecer que no trono está o Cordeiro imolado (Ap 5,6), não o predador triunfante; que segui-lo é sair “fora do acampamento, levando sua humilhação” (Hb 13,13), mesmo que isso signifique enfrentar rejeição e perder privilégios. É viver, como ensina Fratelli Tutti (3), uma fraternidade aberta que se opõe tanto ao ídolo do mercado quanto à idolatria da nação.

Cesareia de Filipe não é apenas um lugar na história; é um espelho diante do qual cada geração da Igreja deve se examinar. É o ponto onde se decide se seguiremos o Cristo vivo ou se usaremos Seu nome para legitimar nossos próprios projetos. É o lugar onde se escolhe entre ser rocha ou pedra de tropeço, entre pensar como Deus ou como os homens. Seguir Jesus é permitir que Ele desconstrua nossos falsos messianismos e edifique sobre a pedra viva que é Ele mesmo (1Pd 2,4-6) uma Igreja humilde, aberta e fraterna.

No fim, a verdadeira rocha não é a que se vangloria da própria firmeza, mas a que se deixa lapidar pelo amor que dá a vida. Quem pensa como Deus sabe que a Igreja permanece de pé não por muros altos ou alianças de conveniência, mas porque está apoiada na pedra angular rejeitada pelos construtores (Sl 118,22; Mt 21,42). E é justamente essa pedra — ferida, desprezada e aparentemente frágil — que se torna fundamento de um mundo novo, onde “a justiça e a paz se abraçarão” (Sl 85,11) e onde cada porta estará aberta para acolher o pobre, o estrangeiro, o ferido e o perdido (Is 58,6-10). 

Que cada um de nós, hoje, diante da pergunta de Jesus, escolha ser pedra viva edificada na humildade e no serviço, rejeitando o poder mundano e acolhendo a cruz que liberta e recria. Que nossa Igreja, mesmo ferida e rejeitada, permaneça firme e profética, denunciando os falsos messias do mercado, do nacionalismo e da vaidade, e abrindo suas portas a todos os que buscam justiça, paz e fraternidade verdadeira.9



DNonato – Teólogo do Cotidiano


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