quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 16,24-28

O Evangelho  de hoje  Mateus  16,24-28 que é  é proclamado no 22º Domingo do Tempo Comum do Ano A, e também é evocado na espiritualidade da Quaresma como um chamado à conversão pascal. Além disso, é texto da Liturgia da Palavra da sexta-feira da 18ª semana do Tempo Comum (Ano Ímpar), o que intensifica seu caráter de discernimento e seguimento. Sua força está na ruptura que provoca, no corte que impõe e na libertação que oferece. Não se trata de uma fala decorativa ou inspiracional. É palavra-cruz: aquela que fere a superfície para alcançar o coração.

Jesus começa perguntando: “Quem dizem que eu sou?” Mas logo depois se volta aos seus com algo mais radical: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Essa pergunta, feita em Cesareia de Filipe — local marcado por cultos a César e deuses pagãos —, já carrega uma provocação. Jesus não busca a confirmação de sua fama, mas questiona a lógica do mundo que confunde glória com dominação e messianismo com prestígio. A questão não é de opinião, mas de implicação. A resposta de Pedro — “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo” — é teologicamente correta, mas sua atitude posterior revela que ele ainda projeta sobre Jesus um messianismo de glória, poder e imunidade ao sofrimento. Jesus reconhece que sua resposta foi inspirada pelo Pai, mas, ao mesmo tempo, o repreende com dureza quando tenta desviá-lo do caminho da cruz: “Vai para longe, Satanás! Tu és para mim uma pedra de tropeço.”

Essa ambiguidade de Pedro revela nossa própria contradição: professamos a fé com os lábios, mas muitas vezes resistimos ao caminho que ela exige. Queremos um Cristo que nos livre da dor, e não aquele que caminha conosco por dentro dela. Desejamos uma fé que nos eleve acima das fragilidades, não uma que nos desça até o chão da humanidade. Mas Jesus é claro: seguir seus passos passa pela cruz. Não como punição ou moralismo, mas como travessia de entrega, de perda fecunda, de amor sem garantias. A cruz, neste evangelho, não é castigo nem romantização do sofrimento. É o lugar onde o amor se recusa a compactuar com a lógica do domínio. Onde a justiça não se vende ao poder. Onde a esperança se faz resistência. 

Como dizia Santo Agostinho, “a cruz era o leito nupcial onde Cristo desposou a humanidade” — não por força, mas por amor que se entrega até o fim. Essa entrega revela um Deus que se solidariza com os sofredores, não que os culpa ou os pune. A cruz, assim, é critério do Reino, e só pode ser compreendida por quem ama até o fim. Ela não é símbolo de derrota, mas de fidelidade radical ao bem, mesmo quando isso custa tudo.

Esse caminho da cruz, porém, tem raízes profundas na história de Israel. O Servo Sofredor de Isaías (cf. Is 52,13–53,12) já anunciava essa forma subversiva de messianismo: não triunfante, mas solidário; não vingador, mas vulnerável. Jesus retoma essa tradição e a leva ao extremo. Ao contrário dos messias esperados por muitos, ele não toma o poder — toma a cruz. Não subjuga inimigos — oferece a outra face. E ali, na rejeição e na dor, manifesta a face de Deus. É nesse mesmo horizonte que se movem os profetas, que não buscavam agradar, mas denunciar. Como Jeremias, que dizia: “Seduziste-me, Senhor, e eu me deixei seduzir… a palavra do Senhor tornou-se para mim motivo de vergonha e zombaria o dia inteiro” (Jr 20,7-8). O discipulado cristão, portanto, herda essa vocação profética de ir na contramão da lógica dominante — não por masoquismo, mas por fidelidade. 

Ao ser proclamado numa sexta-feira do Tempo Comum, este texto não apenas antecipa o escândalo da cruz pascal, mas nos recorda que a sexta-feira é sempre tempo de descer com Cristo às dores do mundo. E descer não com lamentos, mas com compaixão ativa. Pedro queria um Cristo que resolvesse, que evitasse a dor, que triunfasse rápido. Como muitos hoje, desejava um Messias funcional: para vencer eleições, legitimar impérios religiosos, garantir estabilidade. Também hoje há quem projete sobre Jesus o desejo de um messias gerencial, que administre a ordem e mantenha privilégios. É o Cristo do capital, da estabilidade a qualquer custo, da meritocracia disfarçada de bênção. Mas o Evangelho resiste a essa caricatura: o Crucificado não é coach nem CEO — é o servo sofredor que carrega a dor do outro nos ombros (cf. Is 53). Jesus desmascara essa tentação. A cruz, no seguimento cristão, não é uma metáfora, é um caminho. Um processo. Um critério.

E como recordou  o Papa Francisco, “a conversão pastoral exige que a Igreja saia de si mesma e vá ao encontro das periferias” (Evangelii Gaudium, n. 20). Na lógica da cruz, seguir Jesus é, portanto, deslocar-se da segurança da autorreferência para o risco do amor encarnado, sempre pascal, sempre pascal. O Concílio Vaticano II também reconhece que o ser humano não se realiza plenamente senão pelo dom sincero de si mesmo (cf. Gaudium et Spes, n. 24). E o dom sincero de si passa, necessariamente, pela experiência de esvaziamento, de compaixão concreta e de resistência amorosa às estruturas de injustiça.

Por isso, o seguimento não acontece nos discursos inflamados, mas nos passos que abraçam os últimos. Não nos shows de fé, mas nas escolhas cotidianas de fidelidade, perdão e justiça. E isso, sim, é conversão. É no cuidado das feridas da cidade, no abraço ao pobre, na escuta ao aflito, que o discipulado se torna visível. É ali, onde o mundo despreza, que o Reino se insinua. A cruz não é adereço nem slogan. É praxis pascal. Corpo entregue. Vida fecunda. Esperança que não cede ao cinismo.

Na liturgia da Palavra deste dia — seja no 22º Domingo do Tempo Comum, seja na sexta-feira da 18ª semana do Tempo Comum — a Igreja nos oferece um espelho:

 Que tipo de messias buscamos? 

Que tipo de discípulo estamos dispostos a ser? 

A resposta não está no que dizemos com a boca, mas no que carregamos com o coração. Porque a fé, sem cruz, vira performance. E a cruz, sem amor, vira opressão.

A cruz, quando assumida com ternura, torna-se o sinal da Páscoa em nós. Não há ressurreição verdadeira sem o compromisso amoroso com as dores que crucificam os pequenos. Não há discipulado autêntico sem corpo entregue, sem vida partida, sem esperança que sangra, mas insiste em florescer. E só assim, perdendo-nos no Cristo que se dá, seremos encontrados na Vida que não se explica, mas se revela no amor que permanece. A cruz é o lugar onde Deus nos espera, não para nos culpar, mas para nos transformar. E é ali, onde tudo parece ruína, que começa a ressurreição



DNonato- Teólogo do Cotidiano.


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