No coração do mês vocacional, a liturgia nos coloca diante de um Evangelho que começa com um convite que é ao mesmo tempo consolo e missão: “Não tenhais medo, pequenino rebanho, pois foi do agrado do Pai dar a vós o Reino” (Lc 12,32). É a ternura de um Deus-Pastor (Sl 23,1; Ez 34,11-16; Jo 10,1-18) que conhece a vulnerabilidade dos seus, mas também a firmeza com que os chama a uma vigilância ativa. Esse “pequeno rebanho” é herdeiro da promessa feita a Abraão (Gn 15,5; Hb 11,8-10) e da memória pascal do povo que, na noite do Êxodo (Ex 12,11), devia estar pronto para partir. O dom do Reino não nos é dado para ser guardado como propriedade privada, mas para ser cuidado e partilhado — e é aí que ressoa o alerta: “A quem muito foi dado, muito será exigido” (Lc 12,48), ecoando também Tiago 3,1 e 1Coríntios 4,2.
A imagem dos “rins cingidos e lâmpadas acesas” (Lc 12,35) dialoga diretamente com Mateus 25,1-13 (as dez virgens) e com a exortação de Marcos 13,33-37, onde a vinda do Senhor pode acontecer “à tarde, à meia-noite, ao cantar do galo ou pela manhã”. Ela também se liga ao chamado de Paulo em Romanos 13,11-14 para “revestir-se de Cristo” e abandonar as obras das trevas.
No centro da exortação de Jesus está o versículo que revela a raiz do comportamento humano: “Porque onde está o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração” (Lc 12,34). Este versículo é uma chave hermenêutica para compreender toda a passagem: não se trata apenas de vigilância externa, mas de uma conversão interior radical. O tesouro simboliza aquilo que a pessoa mais valoriza, que investe suas emoções, energias e esperanças. A Bíblia frequentemente apresenta o coração como o centro da vontade, da inteligência e da afetividade (Provérbios 4,23; Jeremias 17,9-10). Se nosso tesouro está nas riquezas materiais, no poder ou no status, nosso coração se prende a eles, tornando-nos escravos da vaidade, da ansiedade e do egoísmo. Jesus contrapõe esse apego com o chamado a acumular tesouros no céu, onde a corrupção e o ladrão não alcançam (Mt 6,19-21).
Na sociedade atual, marcada pela cultura do consumo e da mercantilização, essa advertência ganha uma urgência especial. Psicologicamente, a busca desenfreada por bens materiais gera uma insatisfação crônica, como evidenciam estudos sobre o vazio existencial e a síndrome do burnout. Sociologicamente, ela alimenta as desigualdades e a exclusão, porque o tesouro terreno se concentra nas mãos de poucos, enquanto muitos ficam privados do essencial. A teologia da prosperidade, ao confundir bênção com acúmulo, perpetua essa ilusão, desviando o coração da verdadeira riqueza, que é a comunhão com Deus e com o próximo.
Assim, o chamado à vigilância é também um convite a redirecionar o coração, a desapegar-se dos falsos tesouros para encontrar a liberdade que só Cristo pode oferecer (Jo 8,32). É um convite a viver com o coração voltado para o Reino, que é justiça, paz e alegria no Espírito Santo (Rm 14,17), e que transforma a existência numa doação gratuita, capaz de superar o medo e a ansiedade. Onde está o seu tesouro? Essa pergunta ecoa como um exame profundo da consciência, desafiando-nos a alinhar nosso coração com o Senhor que vem.
Em toda a Escritura, a vigilância é mais que expectativa: é postura ética, compromisso diário. O servo fiel de Lucas 12 se contrapõe ao servo infiel, figura que encarna o alerta de Ezequiel 34,2-10 contra pastores que se apascentam a si mesmos e à denúncia de Isaías 56,10-11 contra sentinelas cegas e mudas.
Do ponto de vista histórico, no tempo de Jesus, a sociedade judaica estava marcada por desigualdades e pela opressão romana. Muitos líderes religiosos se acomodavam ao poder para preservar privilégios, enquanto o povo ansiava por libertação. Jesus denuncia essa corrupção com palavras que lembram Amós 6,1-7, contra os que vivem no luxo despreocupados com a ruína da comunidade. A patrística acolheu essa advertência: Santo Agostinho recordava que o pastor deve buscar o bem das ovelhas, não o próprio, e São João Crisóstomo, comentando este trecho, dizia que a responsabilidade do servo fiel é maior que qualquer honra que possa receber.
No hoje da Igreja, a Evangelii Gaudium (n. 93-97) denuncia a tentação do clericalismo e do carreirismo e chama a comunidade a uma conversão pastoral que recuse a indiferença social e a colonização ideológica da fé. A Lumen Gentium (n. 18, 20, 29) lembra que todo ministério é serviço, e que a autoridade, à luz de Cristo, é caridade em ação. A Gaudium et Spes (n. 63-66) convoca a Igreja a enfrentar as desigualdades econômicas e sociais que ferem a dignidade humana, enquanto a Fratelli Tutti (n. 115-127) insiste que a verdadeira política e liderança devem nascer da caridade social, e não de interesses egoístas.
À luz do mês vocacional, a figura do diácono permanente assume um valor especial na leitura deste domingo. Desde os primórdios da Igreja, conforme narra Atos 6,1-6, o diaconato nasceu para servir às mesas e cuidar dos mais necessitados, garantindo que a comunidade permanecesse fiel ao mandamento do amor. Como recorda o Concílio Vaticano II, em Lumen Gentium 29, o diácono é ordenado “não para o sacerdócio, mas para o serviço”, sendo sinal sacramental de Cristo Servo, presença viva daquele que “veio para servir e não para ser servido” (Mc 10,45).
No Brasil, o Dia do Diácono é tradicionalmente celebrado no dia 10 de agosto, em homenagem a São Lourenço, um dos primeiros diáconos da Igreja e mártir, cuja memória litúrgica é celebrada justamente nesta data. São Lourenço é um exemplo magnífico do serviço e da fidelidade que caracterizam o ministério diaconal e essa conexão entre o ministério de serviço e a entrega total à causa do Evangelho, lembrando a todos os fiéis a importância do diaconato como um chamado à missão e à solidariedade prática.
Celebrar essa data é valorizar o compromisso dos diáconos que, no cotidiano das paróquias, hospitais, movimentos sociais e comunidades, vivem esse chamado de serviço, anunciando o Reino de Deus com ações concretas de amor e justiça.
Essa dimensão de vigilância e prontidão no serviço ressoa no Evangelho de hoje, em que o Senhor exorta: “Felizes os empregados que o senhor encontrar acordados quando chegar” (Lc 12,37). O diácono, assim, encarna a postura daquele que vigia não por medo de punição, mas por amor e zelo pelo Reino.
Historicamente, o diaconato floresceu nos primeiros séculos como ministério de fronteira, articulando a liturgia, a caridade e o anúncio da Palavra. Ao longo do tempo, acabou sendo reduzido a uma etapa transitória para o sacerdócio, até que o Vaticano II restaurou-o como grau próprio e permanente do sacramento da Ordem, devolvendo-lhe a força original. Gaudium et Spes (n. 1) recorda que “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje […] são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo”, e o diácono, em especial, é chamado a viver essa proximidade radical com o povo, sendo ponte entre o altar e a vida. É nesse espírito que o Evangelho deste domingo nos interpela: quem vigia de fato não é quem espera sinais extraordinários, mas quem permanece fiel nas pequenas tarefas do cotidiano, como o servo que guarda a casa e reparte o pão.
A vigilância bíblica e espiritual não é medo de um juiz severo, mas a fé que sustenta o serviço como dom de si, na linha da kenosis cristológica (Fl 2,6-8). Em um mundo marcado por teologias da prosperidade, do domínio e do individualismo, que transformam a fé em mercadoria e o poder em privilégio, esse chamado se torna ainda mais profético. O Papa Francisco, em Evangelii Gaudium (n. 93-97), denuncia essas distorções que se alimentam do clericalismo e da indiferença social, exortando a Igreja a uma missão que seja sinal visível da compaixão de Deus. A vigilância cristã é, assim, uma resistência contra a redução do Evangelho a fórmula de sucesso ou instrumento de controle.
Psicologicamente, a ausência aparente do Senhor testa o coração humano: há a tentação do abuso, da omissão e da autossuficiência. A autoridade que se fecha em si mesma degenera em tirania, como mostram as análises sociológicas de Hannah Arendt sobre poder e dominação, e as reflexões de Byung-Chul Han sobre a cultura da performance. O verdadeiro poder nasce do serviço e do cuidado, não da imposição ou da medição quantitativa da fé.
Por isso, ser servo vigilante é recusar a fé como mercadoria e viver atento às visitas inesperadas de Deus — que pode vir à madrugada ou ao meio-dia, na alegria ou na dor, no encontro comunitário ou no silêncio do deserto. É viver como Abraão, sustentado pela promessa (Hb 11,13-16), e como Maria, que guardava e meditava a Palavra no coração (Lc 2,19). É resistir à tentação de transformar a missão em palco e a autoridade em domínio. É encarnar a kenosis de Cristo, que se esvaziou para servir. Ao contemplar esse chamado à vigilância e serviço, recordemos também o exemplo dos profetas do Antigo Testamento que denunciaram a infidelidade dos líderes (Jeremias 23,1-4; Ezequiel 34,1-16) e convocaram a conversão do povo. Eles foram vigilantes contra as injustiças, corajosos diante dos poderes e fieis à promessa do Senhor. Como eles, os servos do Reino devem ser luz que não se apaga (Is 42,6), sal que dá sabor à terra (Mt 5,13-16) e fermento que transforma (Mt 13,33).
Finalmente, o apóstolo Paulo nos recorda que a vigilância é uma luta constante: “Revesti-vos da armadura de Deus, para poderdes resistir às ciladas do diabo” (Ef 6,11), permanecendo firmes na fé e na esperança, “olhando para Jesus, autor e consumador da fé” (Hb 12,2).
Que neste 19º Domingo do Tempo Comum, dia em que celebramos os pais e recordamos a vocação dos diáconos, sejamos desafiados a uma vigilância que não se reduz a esperar passivamente, mas que se traduz em serviço concreto, amor fiel e justiça profética. Que o Senhor encontre em nós servos despertos, que guardam a casa, repartem o pão, amam sem calcular, e vivem como o “pequeno rebanho” confiado a seus cuidados.
Não permitamos que a demora aparente do Senhor se converta em pretexto para o desleixo, o abuso ou o individualismo. Antes, deixemo-nos arder pelo Espírito, revistamo-nos da armadura divina e sigamos firmes, com os rins cingidos e as lâmpadas acesas, testemunhando que o Reino de Deus não é futuro distante, mas já presente na fidelidade cotidiana.
Como o Pai confiou a Abraão uma promessa que sustentou sua peregrinação, assim também nos confia a missão de ser luz nas trevas, voz para os silenciados, mãos estendidas para os excluídos. Que a intercessão de São José e o exemplo dos primeiros diáconos fortaleçam nossa vocação à vigilância ativa e ao serviço humilde, em comunhão com toda a Igreja.
Que o Deus da fidelidade nos encontre vigilantes e generosos, não apenas na espera do encontro final, mas na construção incansável do Seu Reino aqui e agora. Amém.
DNonato - Pai da Desiree e da Maria Clara
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