Há palavras de Jesus que atravessam o tempo com um poder incandescente, incendiando tanto o espírito quanto as estruturas humanas. Entre elas, a que ecoa em Lucas 12,49-53 talvez seja uma das mais desconcertantes e exigentes de todo o Evangelho. Não é um dito doce, nem uma promessa de tranquilidade, mas uma convocação à conversão ardente: “Eu vim trazer o fogo à Terra, e como gostaria que já estivesse aceso!” O próprio Cristo confessa o desejo de ver o mundo abrasado — não por destruição, mas por amor. Um amor que purifica, transforma e divide.
Essa passagem é proclamada na liturgia do 20º Domingo do Tempo Comum (Ano C) e novamente na quinta-feira da 29ª Semana do Tempo Comum, como se o Espírito desejasse reacender em nós a consciência de que a fé cristã não é apaziguamento, mas tensão; não é consenso fácil, mas conflito por fidelidade à verdade. O contexto litúrgico não é acidental: ambos os momentos estão situados em ciclos que falam da maturidade da fé e da missão profética da Igreja no mundo. Jesus caminha rumo a Jerusalém, onde o batismo do sofrimento o aguarda (cf. Lc 12,50), e fala aos discípulos sobre a urgência de uma decisão: ou se deixa consumir pelo fogo do Reino, ou se permanece na frieza das seguranças humanas.
São Maximiliano Kolbe, esse mártir do amor oblativo, intuiu bem o sentido desse fogo quando escreveu: “É o amor, em toda a sua profundidade, que deve transformar-nos, através da Imaculada, em Deus, que deve consumir-nos e, através de nós, incendiar o mundo e destruir e queimar todo o mal que nele se encontra.” O fogo do Evangelho não é metáfora decorativa, é força viva. É o Espírito Santo que, como em Pentecostes (At 2,3-4), desce em forma de línguas ardentes para incendiar corações adormecidos.
Na tradição bíblica, o fogo é sempre ambíguo: purifica e destrói, ilumina e consome. O Senhor se manifesta a Moisés numa sarça que arde sem se consumir (Ex 3,2), sinal de um Deus que é presença ardente e eterna, que aquece sem aniquilar. O fogo que Jesus traz é o mesmo que guiou Israel no deserto (Ex 13,21), símbolo da presença que ilumina o caminho em meio à noite da história. Mas também é o fogo que julga, como aquele que Elias invoca sobre o Monte Carmelo (1Rs 18,38), e que Malaquias anuncia como o fogo do ourives que purifica o ouro (Ml 3,2). Assim, quando Jesus diz que veio trazer o fogo, Ele está evocando toda a pedagogia divina que purifica o povo, separa o verdadeiro do falso e acende o amor onde reinava o medo.
Esse fogo é, portanto, o Espírito do discernimento e da verdade. É o mesmo sopro que João Batista anunciara: “Ele vos batizará com o Espírito Santo e com fogo” (Lc 3,16). Aqui, Lucas ecoa Mateus (Mt 3,11) e Marcos (Mc 1,8), sublinhando que a missão de Cristo não é apenas reconciliar, mas recriar. E toda recriação exige ruptura. Por isso Jesus completa: “Pensais que eu vim trazer a paz à Terra? Não, eu vos digo, mas a divisão” (Lc 12,51). A paz que Ele recusa é a paz falsa — a harmonia superficial dos que se calam diante da injustiça, a serenidade hipócrita dos que preferem templos silenciosos a corações convertidos.
Essa palavra de divisão não é contrária ao mandamento do amor; é sua consequência inevitável. Quando a luz entra, revela as trevas. Quando a verdade se anuncia, desmonta as mentiras. Quando o Reino se aproxima, os poderes do mundo tremem. Aqui está a raiz profética dessa passagem: o Reino de Deus é fogo que desestabiliza o mundo das aparências. Ele não se acomoda às estruturas da religião que se tornou instituição de controle, nem ao mercado que transforma tudo em mercadoria — inclusive a fé
A hermenêutica de Lucas nos ajuda a compreender essa tensão. O evangelista fala a uma comunidade marcada pela perseguição, pela marginalidade e pelo desafio de viver a fé num mundo dividido entre o império e o Evangelho. O “fogo” que Jesus anuncia não é apenas o ardor espiritual, mas também a força histórica do Evangelho que desmascara as injustiças. É o mesmo fogo que Jesus acende no coração dos discípulos de Emaús (Lc 24,32), quando, ao explicar-lhes as Escrituras, faz arder por dentro o sentido da história e da vida.
Sob a luz da ciência histórica e da antropologia bíblica, podemos compreender que esse fogo é também símbolo da transformação interior e social. No contexto do mundo greco-romano, a mensagem de Jesus rompe com a cultura do conformismo e da dominação, reacendendo o ideal de uma comunidade fraterna onde o amor é critério e não o poder. O fogo é metáfora da consciência desperta, do desejo que deixa de ser egoísta para tornar-se oblativo. Por isso, quando Lucas fala de divisão entre pai e filho, mãe e filha, sogra e nora, não se trata de incentivo à discórdia doméstica, mas da denúncia de toda forma de aliança com o sistema opressor. É a mesma ruptura de que fala o profeta Miqueias (Mq 7,6), texto que Jesus evoca para mostrar que o seguimento do Reino exige libertar-se dos laços que escravizam a consciência.
Há, portanto, uma pedagogia do fogo: ele queima as falsas seguranças, purifica os vínculos e ilumina os caminhos. A psicologia espiritual pode ajudar-nos a compreender que esse processo de purificação é doloroso, pois implica confrontar o próprio ego. O “batismo” de que fala Jesus (Lc 12,50) é imagem desse mergulho na dor redentora — o batismo da cruz. Todo amor verdadeiro passa por esse batismo: morrer para o ego, renascer para a comunhão. A alma humana, muitas vezes dividida entre o desejo de Deus e o apego ao mundo, é o campo onde esse fogo precisa acender-se.
Ao expandirmos a exegese de Lucas 12,49-53, torna-se inevitável confrontar os paralelos sinóticos que ampliam a compreensão desse fogo profético. Em Mateus 10,34-36, Jesus declara: “Não vim trazer paz, mas espada; vim pôr em conflito o homem contra seu pai, a filha contra sua mãe, a nora contra sua sogra.” Marcos (Mc 3,24-25) também apresenta a tensão: o Reino de Deus se insere na história como força de ruptura, separando o verdadeiro do falso, a fidelidade da acomodação. Lucas não apenas conserva esta ideia, mas a situa no contexto do batismo e da divisão inevitável que o Reino provoca. Mateus sublinha a espada como instrumento pedagógico de discernimento moral; Lucas, o fogo como purificação e ardor interior. Ambos convergem: a fé cristã é transformadora e disruptiva
Os Padres da Igreja, em particular Orígenes e Santo Agostinho, ofereceram leituras que iluminam o simbolismo do fogo. Orígenes via no fogo a presença ativa de Deus que ilumina e consome os vícios da alma, enquanto Agostinho comentava que o verdadeiro amor de Deus, uma vez aceso no coração, não se contenta em permanecer inerte; ele queima o mal, ilumina os caminhos do justo e provoca uma conversão contínua. Gregório Magno associa o fogo do Evangelho à disciplina e à renovação espiritual: o discípulo que aceita ser abrasado por este fogo não busca segurança, mas purificação radical do próprio ser.
O diálogo com os documentos da Igreja ilumina ainda mais o sentido social desse fogo. A Gaudium et Spes (n. 63-66) fala de uma Igreja chamada a iluminar o mundo com os valores do Evangelho, denunciando injustiças, promovendo a dignidade humana e fomentando a comunhão entre os povos. O fogo de Jesus, nesse contexto, é um fogo social e histórico: ele arde nos corações, mas se manifesta nas estruturas que promovem ou negam a justiça. O Evangelii Gaudium (n. 259) denuncia a fé-mercadoria, a religião transformada em espetáculo, enquanto Fratelli Tutti (n. 215) lembra que encontros e desencontros são inevitáveis na vida comunitária, e que o amor autêntico, abrasado pelo Espírito, é capaz de reconciliar e purificar, mesmo diante da divisãoDo ponto de vista psicológico, esse fogo representa o conflito interno entre o apego às seguranças humanas e a entrega radical ao amor de Deus. O ego resiste, o medo paralisa, a rotina conforta — mas o fogo do Evangelho exige ruptura. Aqui, a psicologia existencial dialoga com a hermenêutica bíblica: só há crescimento espiritual quando a pessoa enfrenta a tensão entre o que é confortável e o que é verdadeiro. É a coragem de optar pelo Reino, mesmo que isso cause divisão, sofrimento ou rejeição social.
A sociologia do Evangelho evidencia que o fogo de Jesus não é apenas interno, mas comunitário. Nas comunidades que viviam sob o peso do Império Romano, o seguimento de Cristo provocava divisão: familiares rejeitavam aqueles que abraçavam a fé nova, estruturas tradicionais de poder eram abaladas, a marginalidade dos pobres tornava-se visível. O fogo de Lucas não é ficção dramática; é diagnóstico histórico: o amor de Deus rompe sistemas de exploração, denuncia privilégios e provoca tensões inevitáveis em qualquer estrutura de injustiça.
A filosofia também contribui para compreender a radicalidade dessa mensagem. Inspirando-se em Aristóteles, Tomás de Aquino argumenta que o amor perfeito orienta a vontade para o bem último, que é Deus. Só o amor radical, abrasador, que consome o egoísmo, é capaz de produzir paz verdadeira. Assim, a divisão evocada por Jesus não é arbitrariedade, mas consequência natural do fogo que ilumina e purifica. O amor que não divide não é amor transformador, mas mera complacência.
Historicamente, vemos a manifestação desse fogo em mártires e santos que se opuseram ao poder corrupto, ao lucro desmedido e à injustiça social. São Maximiliano Kolbe é exemplo contemporâneo: consumido pelo amor, ofereceu sua vida pelos outros, incendiando a escuridão do Holocausto com luz de compaixão e justiça. O mesmo padrão se repete nos profetas bíblicos: Isaías denuncia reis corruptos e falsos profetas (Is 1,16-17), Jeremias sofre perseguição por proclamar a verdade (Jr 1,18-19), e João Batista, em sua integridade, prepara o caminho para Cristo, mesmo enfrentando a morte (Lc 3,19-20).
O Evangelho nos desafia a viver o fogo em nossos dias. Cada ato de amor concreto, cada denúncia de injustiça, cada serviço aos marginalizados é fagulha desse fogo. A pedagogia do fogo exige compromisso, coragem e vigilância. Como ensina o Papa Francisco em Evangelii Gaudium (n. 259), a fé não é mercadoria; é missão, é entrega, é força que transforma o mundo. E Fratelli Tutti (n. 215) nos lembra que a verdadeira fraternidade surge não do conforto ou da complacência, mas do enfrentamento de tensões e desencontros, sempre com amor que queima e purifica.
Portanto, Lucas 12,49-53 nos propõe um ideal impossível sem a graça: ser consumidos pelo amor divino. Não se trata de lágrimas sentimentais ou de sentimentos superficiais, mas de vontade radical, ação concreta e fé que não se compra. O fogo que Jesus acende em nossos corações deve incendiar não apenas nossas almas, mas a realidade ao nosso redor: famílias, comunidades, estruturas sociais, sistemas econômicos e políticos. É a profecia viva de Deus no mundo, que denuncia o mal, purifica a injustiça e revela o caminho da verdade.
O profeta que aceita esse fogo sabe que a paz não vem do silêncio ou da omissão, mas da fidelidade à verdade e do compromisso com o amor que transforma. Quem se deixa consumir pelo fogo do Evangelho, como Maximiliano Kolbe, os mártires e os santos, torna-se instrumento de purificação, reconciliação e justiça. O fogo de Lucas não é apenas desafio; é promessa: a promessa de que o amor verdadeiro, radical, oblativo, é capaz de incendiar o mundo e torná-lo digno de Deus.
Concluindo, que este Evangelho nos desperte: não apenas para admirar a chama, mas para nos tornarmos a chama. Que cada decisão, cada gesto, cada palavra, seja fagulha do fogo que Cristo veio trazer à Terra. Que a vontade humana se alie ao desejo divino, e que, através de nós, este fogo se acenda em cada coração, em cada lar, em cada comunidade, até que o mundo inteiro arda na justiça, na verdade e no amor de Deus.
DNonato – Teólogo do Cotidiano
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