O kairos, distinto do chronos, nos fala de urgência, oportunidade e abertura à ação de Deus. É tempo de conversão e compromisso. Paulo ecoa essa urgência: “Conheceis o tempo: é hora de despertar do sono” (Rm 13,11). A Escritura insiste em diversos pontos sobre a leitura dos tempos: em Mateus 16,2-3, encontramos a mesma crítica: “Sabeis discernir o aspecto do céu, mas não os sinais dos tempos.” Em Lucas, a advertência é clara: saber prever o clima e não perceber a ação de Deus é hipocrisia. É a religião que conhece os rituais e ignora o amor, que calcula fenômenos e esquece a misericórdia.
O contexto histórico e social reforça essa crítica. Os discípulos e as multidões viviam em comunidades marcadas por desigualdade, exploração e medo. Precisavam de líderes capazes de interpretar o tempo com sabedoria, mas, muitas vezes, encontravam religiosos comprometidos com poder, status e riqueza. É nesse cenário que Jesus denuncia a cegueira e a omissão. Hoje, como ontem, é comum ouvir interpretações apocalípticas para eventos naturais ou crises sociais. Muitos relacionam desastres ambientais à iminência do fim do mundo ou atribuem tragédias pessoais ao juízo final. O discernimento, porém, não se mede por previsões espetaculares, mas pela capacidade de agir com responsabilidade e consciência no tempo presente.
Jesus amplia a crítica, dirigindo-se também aos líderes religiosos: “Quando fores com teu adversário ao magistrado, procura reconciliar-te com ele no caminho, para que o juiz não te entregue ao oficial de justiça e este te lance na prisão” (Lc 12,58). A parábola do adversário e do juiz é uma chamada à reconciliação e à justiça. A vida é um caminho em direção ao tribunal. Não é ameaça distante, mas metáfora da responsabilidade moral cotidiana. Reconhecer a dívida, reconciliar-se e agir com justiça enquanto ainda há tempo é a mensagem central. É um convite à conversão ativa, à reconciliação com Deus, com o próximo e consigo mesmo.
O Evangelho nos ensina que a responsabilidade do cristão não se limita à esfera privada; ela é social, política e ecológica. Ignorar o sofrimento do outro, a destruição da criação ou a injustiça social é forma de omissão, um pecado silencioso. A modernidade trouxe desafios novos: a idolatria do consumo, a fé mercantilizada, o clericalismo, o individualismo religioso. A teologia da prosperidade oferece bênçãos como mercadoria, enquanto a teologia do domínio busca poder e controle. Ambas distorcem o Evangelho. Lucas 12,54-59 nos lembra que discernir os sinais do tempo significa confrontar essas distorções, assumir responsabilidade ética e espiritual, e praticar a justiça e o amor na vida cotidiana.
Santo Agostinho, comentando o tempo e a eternidade, afirma que o tempo existe como distensão da alma entre passado e futuro, mas o presente é o único momento que permite ação verdadeira. São João Crisóstomo, em suas homilias, advertia que muitos sabiam interpretar as nuvens e os ventos, mas não reconheciam Cristo em meio ao povo. Orígenes sublinhava que a leitura dos sinais do tempo exige disciplina espiritual, atenção e discernimento da vontade de Deus. Essa tradição fortalece a exortação de Jesus: olhar o mundo com olhos abertos, mas com coração vigilante e sensível.
A cegueira espiritual e social muitas vezes corresponde à resistência humana à mudança e ao confronto com a própria responsabilidade. Freud chamaria isso de projeção, Jung de sombra; a teologia chama de pecado. A incapacidade de discernir o tempo revela medos, preconceitos e dificuldade de enfrentar limitações próprias. O Evangelho nos convida a superar essas barreiras, perceber os sinais de Deus na história e na vida cotidiana, agir com consciência e liberdade.
O kairos é o instante decisivo, o momento da autenticidade. Discernir o tempo é assumir a responsabilidade de agir, não adiar decisões. A ação ética, a reconciliação e o compromisso com o bem são a realização concreta do discernimento. A vida não é apenas contemplação; é decisão, caminho, tribunal, reconciliação.
A sociologia da religião mostra que a fé que não lê os sinais torna-se irrelevante. Uma igreja que ignora justiça, solidariedade e cuidado com a criação perde a vitalidade do Evangelho. A indiferença às crises sociais e ambientais reflete espiritualidade fragmentada, centrada no ritual e no conforto, não no serviço e no amor. A Laudato Si’ lembra que tudo está interligado e que a ação ética na vida social e ecológica é expressão de fé viva. A Fratelli Tutti acrescenta que o amor social transforma a história; a fé não pode se restringir ao privado nem ser reduzida a produto de consumo.
O clericalismo é outra distorção que impede o discernimento. Líderes que se colocam acima do povo, transformando serviço em privilégio, bloqueiam a leitura do tempo de Deus. O Papa Francisco, em Evangelii Gaudium, alerta que a autoridade ministerial deve ser serviço, não poder. O discernimento do tempo depende da humildade, da escuta e da proximidade com os necessitados.
No plano litúrgico, a proclamação deste Evangelho nos prepara para o domingo seguinte. A liturgia nos chama à vigilância e à consciência do momento presente, à prática da justiça e da reconciliação, à atenção aos sinais de Deus na história. O Evangelho não é espetáculo, não é previsão de desastres; é convite a assumir o presente como campo de ação e conversão. Discernir o tempo é ouvir Deus no clamor dos pobres, na dor da natureza, no grito silencioso da humanidade. O Evangelho também nos desafia culturalmente. Muitos ainda rejeitam músicas, artes ou expressões culturais como “mundanas”, esquecendo que tudo pertence a Deus. O discernimento do tempo implica perceber a presença de Deus no mundo, transformando-o em espaço de graça e serviço. A fé encarnada não se separa da vida; ilumina, denuncia e reconcilia. O cristão é chamado a agir com coragem, ser fermento e luz no mundo, reconhecer que o juízo acontece a cada escolha, cada ação, cada omissão.
Lucas 12 lembra que a omissão é pecado silencioso. Ignorar injustiças, sofrer calado ou permanecer neutro diante de crises sociais é faltar com o Evangelho. Jesus nos chama a sair do comodismo, a agir antes que seja tarde. A reconciliação, a justiça e a misericórdia não podem esperar. O tempo do discernimento é agora. A história da Igreja adverte sobre os riscos de uma fé transformada em tribunal e punição. A Inquisição católica, formalizada no século XIII por Gregório IX e consolidada no século XV com Tomás de Torquemada, perseguiu com rigor heréticos e dissidentes, aplicando censura, prisões e execuções. Paralelamente, a Inquisição protestante, durante a Reforma e a Contra-Reforma nos séculos XVI e XVII, com figuras como João Calvino e em Genebra puritana, perseguiu hereges e opositores com processos, confinamentos e mortes. Ambos os movimentos transformaram a fé em instrumento de poder e controle, eclipsando misericórdia e justiça. Hoje, embora raramente de forma oficial, esses mecanismos persistem veladamente: tribunais morais internos, censuras digitais, exclusões e perseguições ideológicas ainda ocorrem em muitas comunidades de fé, criando medo e silenciamento. O Concílio Vaticano II, em Dignitatis Humanae, e a Gaudium et Spes 14 recordam que a liberdade de consciência é princípio inviolável da dignidade humana; qualquer tentativa de coagir, punir ou silenciar em nome da fé contradiz o Evangelho que Jesus proclama. Que saibamos discernir essas continuidades históricas e atuais, reconhecendo sinais de autoridade desviada e poder injusto, e escolhamos agir com coragem, justiça e misericórdia, para que nossa fé seja instrumento de vida e não de opressão.
Que a liturgia de hoje nos desperte para o discernimento do kairos, que saibamos ler os sinais de Deus no mundo, que possamos reconciliar-nos enquanto há tempo, e que a fé nos conduza a agir com justiça, coragem e amor, transformando o presente e preparando o encontro definitivo com o Senhor.
DNonato – Teólogo do Cotidiano


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