O texto de Mateus 17,22-27, proclamado na segunda-feira da 19ª semana do Tempo Comum, encontra-se no ciclo litúrgico como parte do caminho de Jesus para Jerusalém, quando Ele já prepara, com paciência e profundidade, o coração dos discípulos para o escândalo da cruz. Aqui, o segundo anúncio da paixão (vv. 22-23) ecoa o primeiro (Mt 16,21) e antecipa o terceiro (Mt 20,17-19), compondo um tríptico em que Jesus revela que a glória do Reino passa pela entrega e pela humilhação. Marcos 9,30-32 e Lucas 9,43-45 confirmam a cena: “O Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos homens, e eles o matarão; mas, três dias depois, ressuscitará”. A reação dos discípulos — tristeza e incompreensão — lembra Lucas 18,34: “Eles nada compreenderam; o sentido destas palavras lhes ficava oculto e não entendiam o que era dito”. Psicologicamente, é o retrato da resistência humana a aceitar que a vitória divina passe pelo fracasso aparente; como Pedro em Mt 16,22, preferimos afastar do caminho da cruz.
A sequência imediata, o episódio do imposto do Templo (vv. 24-27), exclusivo de Mateus, não é acidental. O mesmo Cristo que aceita ser “entregue nas mãos dos homens” aceita também pagar um tributo que não lhe era devido. Nos dois casos, age movido por um amor que não se apega a direitos, mas que preserva o plano do Pai e evita escândalos inúteis. O “didrachma” (cf. Êx 30,13-16; 38,26; 2Cr 24,6.9; Ne 10,33-34) era contribuição anual para a manutenção do culto, sinal de pertença à comunidade da Aliança. Mas, no tempo de Mateus, depois da destruição do Templo em 70 d.C., essa taxa havia sido desviada por Roma para o templo pagão de Júpiter Capitolino — um símbolo de opressão e humilhação. Nesse cenário, Jesus pergunta a Pedro: “De quem cobram tributos os reis da terra? Dos filhos ou dos estranhos?” (v. 25). A resposta — “dos estranhos” — permite a Jesus afirmar: “Os filhos estão isentos” (v. 26), ecoando Gálatas 4,7: “Já não és escravo, mas filho; e, se és filho, és também herdeiro por Deus”.
A ordem dada a Pedro — lançar o anzol e encontrar a moeda na boca de um peixe — não é truque de mágica, mas gesto pedagógico que inscreve Jesus na tradição bíblica da providência. Como Elias sustentado por corvos (1Rs 17,4-6), Eliseu multiplicando o óleo da viúva (2Rs 4,1-7), ou o maná no deserto (Êx 16,4-15), Deus provê quando a obediência confia na Sua palavra. No Novo Testamento, a pesca milagrosa (Lc 5,1-11; Jo 21,6-11) mostra que o sustento não vem do cálculo humano, mas de colocar as redes onde o Senhor manda. A moeda no peixe é, portanto, sinal de Mt 6,33: “Buscai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas”.
Sociologicamente, o imposto do Templo expõe a relação entre fé e poder. Como nos oráculos de Amós 5,21-24 e Isaías 1,13-17, Deus rejeita o culto que serve de fachada para a opressão. Aqui, Jesus paga não por submissão cega, mas para não escandalizar (v. 27), antecipando a recomendação de Rm 14,19-21 e 1Cor 9,12: renunciar a direitos pelo bem do Evangelho. Essa atitude contrasta com a lógica da teologia da prosperidade e do domínio, que transforma a fé em trampolim para privilégios, reduzindo Deus a fornecedor de bênçãos mediante contribuições, e ignorando que “o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida” (Mt 20,28).
Hoje, a relação entre fé, poder e opressão se reveste de formas mais sutis, mas não menos cruéis, na manipulação política e econômica global. Tal como o imposto do Templo, desviado para um templo pagão para subjugar o povo de Deus, assistimos à imposição de tarifas arbitrárias — como as adotadas por Trump — que aprofundam desigualdades e fragilizam nações soberanas. Instrumentos legais, como a chamada “lei Magnitsky”, são manipulados como armas para subjugar sistemas judiciais e dobrar a justiça às vontades de interesses políticos, incluindo tentativas escandalosas de favorecer líderes autoritários como Bolsonaro, corroendo a autonomia democrática e lançando sombras sobre a legitimidade dos processos. O uso deliberado e massivo de fake news torna-se um imposto invisível, mas brutal, imposto à verdade, à convivência social e à fé, criando um ambiente tóxico de desinformação, medo e polarização. Essas práticas são um escândalo que trai a essência do Evangelho, transformando a fé em instrumento de poder, em moeda de troca para agendas mesquinhas e egoístas. O gesto de Jesus, que paga o tributo para não alimentar divisões e escândalos vãos, é um chamado urgente para que a Igreja e os discípulos denunciem essas manipulações com coragem profética, rejeitando o clericalismo conivente e a fé domesticada, que se rende aos poderes deste mundo. A verdadeira liberdade só pode florescer na fidelidade à justiça, à verdade e ao serviço humilde, e não na conivência com os interesses opressores que exploram o povo e destroem a fraternidade.
É preciso lembrar que a ligação entre o anúncio da paixão e o imposto do Templo não é mera coincidência narrativa, mas pedagogia divina que ensina a profunda unidade entre o caminho da cruz e a vida cotidiana do discípulo. O mesmo Cristo que aceita ser entregue e humilhado, aceita também pagar um tributo para evitar escândalos, demonstrando que a liberdade no Reino não é uma licença para confrontar ou isentar-se irresponsavelmente, mas um equilíbrio maduro entre a fidelidade ao Pai e o respeito às estruturas do mundo. Essa lição vai na contramão das ideologias do individualismo radical, que veem toda concessão como fraqueza, e da fé como mercadoria, que usa a espiritualidade como instrumento de poder ou enriquecimento. Em vez disso, Jesus mostra que a liberdade do filho é serviço, renúncia e sabedoria em meio às exigências concretas da convivência social — uma liberdade que, longe de ser fuga da realidade, mergulha na vida e na missão com coragem e amor.
Teologicamente, a moeda no peixe proclama que “do Senhor é a terra e tudo o que nela existe” (Sl 24,1), e que a missão do Reino não depende de conchavos com o poder (cf. Jo 18,36) nem da exploração da fé (cf. 2Pd 2,3), mas da confiança no Deus que “abre a mão e sacia de bens a todos os viventes” (Sl 145,16). A Gaudium et Spes (n. 76) recorda que Igreja e sociedade civil, embora autônomas, devem colaborar para o bem comum, sem transformar tributo ou culto em instrumento de opressão. Os Padres da Igreja perceberam isso: Orígenes alertava para que a Igreja não se tornasse cobradora de dívidas espirituais, mas mãe que sustenta; João Crisóstomo via na atitude de Jesus um modelo de prudência, que paga para fechar a boca dos acusadores e manter o foco na missão.
Este texto é, portanto, um convite a viver na tensão fecunda entre a liberdade dos filhos e a responsabilidade dos cidadãos. É viver Gl 5,1 — “Para a liberdade Cristo nos libertou” — mas também 1Cor 9,19 — “Livre para com todos, de todos me fiz servo, para ganhar o maior número possível”. É advertência contra a religião-negócio, contra o poder eclesial blindado, contra a fé usada como autopromoção. E é chamado para que, como Pedro, lancemos o anzol onde o Senhor manda, certos de que até o tributo exigido pelo mundo pode se tornar sinal do Reino, se for oferecido com fé, discernimento e amor. Essa é a liberdade que não foge da vida, mas a abraça — mesmo quando o caminho passa, inevitavelmente, pela cruz.
DNonato - Teólogo do Cotidiano
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