É comum, até hoje, que muitos cristãos transformem a Bíblia em um livro de premonição. Diz-se que “Deus quis assim” diante de tragédias ou doenças, como se a graça e o amor divinos se limitassem a premiar uns e punir outros. A história mostra essa leitura equivocada: mães que perdem filhos, famílias destruídas por violência, trabalhadores esmagados pelo sistema econômico, sobreviventes de catástrofes naturais — todos transformados em “amaldiçoados” por interpretações casuísticas da fé. Lucas desafia essa visão reducionista: Deus não é limitado, nem seu plano se restringe à vida individual de cada um; ele é Amor criativo e paciente, que nos convida à conversão e à produção de frutos.
Jesus, ao invés de confirmar o fatalismo, pergunta: “Pensais que esses Galileus eram mais pecadores do que todos os outros Galileus porque sofreram tais coisas? Não, eu vos digo; mas, se não vos arrependerdes, todos igualmente perecereis” (Lc 13,2-3). Esta frase nos confronta com a lógica da responsabilidade pessoal e coletiva. Não se trata de predestinação para o sofrimento, mas de um chamado à vigilância, à reconciliação com Deus e com o próximo. Cada evento de tragédia é oportunidade para reflexão e conversão, nunca justificativa de indiferença ou acusação.
O paralelo com outros evangelhos sinóticos revela consistência no ensinamento de Jesus. Em Mateus 23,37-39, Ele lamenta sobre Jerusalém, mostrando que o sofrimento não é sinal de condenação automática, mas reflexo da rejeição à vida que Deus oferece. Em Marcos 4,30-32, a parábola da semente nos lembra que a paciência e o cuidado são necessários para a transformação: Deus não impõe, mas acompanha o crescimento da vida e da fé, respeitando o tempo e a liberdade humana. O mesmo se encontra implicitamente em João 9,1-3, quando Jesus rejeita a ideia de que a cegueira do homem seja castigo, reafirmando que a manifestação do poder divino visa a glória de Deus e a conversão do coração humano.
A narrativa da figueira estéril (Lc 13,6-9) é rica em símbolos e merece atenção detalhada. A figueira representa Israel, o povo de Deus, mas também cada indivíduo chamado à produção de frutos de justiça. O dono da vinha exige frutos, e o agricultor intercede com paciência, pedindo mais um ano para cuidar da árvore até que dê frutos. Este diálogo entre urgência e paciência revela o equilíbrio da ação divina: Deus não é apressado nem destrutivo, mas paciente, oferecendo oportunidades de conversão. Na tradição bíblica, a figueira simboliza prosperidade, justiça e vida plena (cf. Miquéias 4,4; Jeremias 24,1-10; Mateus 21,18-22). Sua esterilidade é advertência, não maldição.
A leitura crítica e hermenêutica do texto nos convida a repensar práticas religiosas contemporâneas que deformam a fé em função de interesses individuais ou de grupos privilegiados. A teologia da prosperidade transforma a graça em prêmio individual: quem é fiel prospera, quem sofre é pecador ou amaldiçoado. Lucas, ao apresentar vítimas coletivas — Galileus mortos, torres desabando — desconstrói esse discurso e nos lembra que a fé verdadeira não se mede em bens ou vantagens, mas na conversão do coração, no compromisso com a justiça e na solidariedade com os que sofrem. O mesmo alerta se estende à teologia do domínio, que vê a fé como ferramenta de poder ou controle, e ao individualismo religioso que transforma Deus em algo funcional às necessidades do ego. A mensagem de Lucas é coletiva, profética, libertadora.
A psicologia da religião ajuda a compreender os efeitos danosos de leituras casuísticas e fatalistas da Bíblia. Quando se acredita que tragédias são castigos específicos, gera-se culpa, ansiedade e paralisação moral. O enfoque de Lucas promove responsabilidade, ação e esperança: é o convite à conversão ativa. A sociologia nos mostra que estas interpretações tendem a sustentar estruturas de opressão, favorecendo elites que se apresentam como “escolhidas” enquanto promovem o sofrimento de muitos. No contexto atual, crises como a guerra na Ucrânia ou desastres naturais, acompanhadas de narrativas teológicas equivocadas, revelam a necessidade urgente de uma fé crítica, humanizadora, que promova solidariedade e denúncia das injustiças, sem reduzir o sofrimento a um “plano divino” particular.
Historicamente, os textos sobre tragédias em Israel e Galileia revelam que Lucas escreveu para uma comunidade que enfrentava perseguições e catástrofes naturais. Sua mensagem é de alerta: é necessário discernir, agir e transformar a realidade, não apenas aceitar passivamente. Este ensinamento encontra eco na patrística. Santo Agostinho, ao comentar passagens sobre sofrimento, enfatiza que Deus permite o mal como oportunidade de crescimento espiritual, mas não como predestinação fatalista. Orígenes, por sua vez, ressalta a necessidade da interpretação espiritual e moral da Escritura, lembrando que os sinais do mundo chamam à conversão, não à culpa injusta.
Do ponto de vista filosófico, Lucas 13 nos confronta com questões de liberdade, responsabilidade e temporalidade. O livre-arbítrio não é mera abstração; é exercício contínuo de escolha, discernimento e ação no mundo. Reduzir os acontecimentos à vontade individual de Deus seria uma limitação do infinito. A teologia católica, particularmente nos documentos do Concílio Vaticano II e na Gaudium et Spes (n. 22, 32-38), reforça que o homem é chamado a co-criar com Deus a história, exercendo responsabilidade ética sobre a sociedade, a economia e o ambiente. A consciência moral, iluminada pelo Evangelho, é a base para enfrentar injustiças e tragédias.
O evangelho, portanto, nos confronta com questões concretas: quem somos no mundo atual? Somos povo de Deus, conscientes da graça do Batismo, ou reproduzimos padrões de indiferença, violência, exploração e injustiça? A figueira estéril nos alerta sobre a necessidade de produzir frutos: não frutos de riqueza, poder ou status, mas frutos de justiça, compaixão e solidariedade. O período litúrgico em que este evangelho é proclamado nos lembra que a conversão é diária: sábado da 29ª semana do Tempo Comum e 3º domingo da Quaresma nos chamam a avaliar a vida, as escolhas, o modo como lidamos com o sofrimento alheio e com as estruturas sociais que perpetuam morte econômica e violência.
A antropologia nos ensina que o ser humano é fruto de relações; portanto, a conversão não é apenas interna, mas social. Lucas nos desafia a agir, a não justificar tragédias, a não reproduzir clericalismos ou leituras de fé que transformam Deus em algo que serve interesses de poucos. O clericalismo, presente em interpretações que eximem a comunidade de responsabilidade, é criticado na Evangelii Gaudium (n. 104-111) e em Fratelli Tutti (n. 98-100), pois distorce o mandato cristão de cuidado com o outro e de construção do bem comum.
Sociologicamente, o evangelho nos mostra a urgência de olhar para os marginalizados, para os economicamente excluídos e para aqueles que sofrem não por castigo divino, mas por estruturas injustas de poder e exploração. A crise econômica, desigualdade e desemprego não são acidentes, e sim resultado de sistemas que priorizam lucro, status e dominação. Lucas nos chama a olhar para esses contextos com compaixão profética, denunciando o pecado social e promovendo a justiça.
A conversão, portanto, é um processo ativo e relacional. Como o agricultor que pede mais um ano à figueira estéril, Deus nos oferece paciência e oportunidades, mas espera frutos concretos: justiça, solidariedade, amor ativo. A Quaresma e o Tempo Comum nos lembram que o tempo da vida é precioso e que cada decisão ética é oportunidade de manifestar a graça recebida no Batismo. Cada ato de justiça e amor é fruto de uma conversão real, que rejeita interpretações casuísticas, clericais ou mercantilistas da fé.
O chamado de Lucas 13 é radical: olhar a própria vida, examinar nossas estruturas sociais, nossa espiritualidade e nossa prática religiosa. Não se trata de se culpar, mas de se despertar, de se engajar, de assumir responsabilidade pessoal e comunitária. Jesus nos mostra que Deus é paciente, mas não inativo; que a misericórdia é oferecida, mas exige resposta; que a liberdade humana não é mera ilusão, mas exercício de amor e justiça.
Portanto, a Boa Nova de Lucas 13,1-9 nos convida a uma leitura ativa, crítica e profética: rejeitar a fé casuística que justifica o sofrimento alheio, denunciar as estruturas de morte econômica e social, resistir à teologia da prosperidade e do domínio, transformar a vida pessoal e coletiva em frutos de amor e justiça. É um convite a cultivar a figueira, a ser instrumento de Deus na história, a ser povo que encarna a liberdade, a compaixão e a esperança, conscientes de que nossa fé é para a vida e não para justificar o caos.
Neste tempo do mundo marcado por guerras, desigualdades e tragédias, Lucas 13 nos lembra que Deus chama cada pessoa e comunidade à conversão, à ação profética, à responsabilidade compartilhada. Não há espaço para fatalismo, nem para uma fé como mercadoria ou espetáculo; a Boa Nova é libertadora, transformadora e exige de nós coragem, discernimento e amor ativo, pois só assim produziremos frutos dignos do Reino de Deus.
A figueira estéril permanece, então, símbolo de advertência e esperança: se não produzirmos frutos, corremos o risco de sermos esquecidos; mas, com cuidado, paciência e ação, podemos transformar nossas vidas, nossas comunidades e nosso mundo, alinhando-nos à Boa Nova de Jesus Cristo, que proclama liberdade, justiça e amor para todos
DNonato – Teólogo do Cotidiano


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