Quando eu era criança, aos domingos, lá em casa era sempre festa. O cheiro da galinha com batata feita pela minha mãe, Dona Iracilda, se espalhava pela cozinha e se misturava ao barulho das panelas. A mesa, coberta com a toalha de flores já um pouco desbotada, recebia o riso fácil e o calor da família.
Depois do almoço, eu ia até a fruteira, pegava uma tangerina e sentia, na ponta dos dedos, a casca fria e levemente áspera. Corria até meu pai, seu Francisco — pedreiro de mãos calejadas e olhar sério, que trazia no peito a dificuldade de entender o amor paterno, porque sua própria história com o pai fora marcada por ausências e silêncios.
Eu me aproximava e dizia:
— Pai, começa o começo!
Ele sorria. Às vezes descascava toda a fruta, entregando-me os gomos como quem oferece uma pequena oferenda de cuidado. Outras vezes, fazia apenas aquele primeiro rasgo providencial, e eu completava o resto. Era o suficiente: a parte mais difícil já estava vencida.
O tempo passou. Meus pais se separaram e ficamos mais de doze anos sem conviver. Houve dias em que precisei dizer a ele verdades guardadas como cascas duras no peito. Houve dias em que ele precisou de mim — e eu fui, como filho da emergência. Até que, em abril de 2015, ele voltou para os braços do nosso Pai comum.
Já não sou criança há muito tempo. Mas, quando a vida me coloca diante de grandes “tangerinas” — ou, pior, de espinhosos “abacaxis” —, ainda sinto vontade de ter meu pai por perto, só para “começar o começo” das cascas duras que preciso enfrentar.
Hoje, minhas tangerinas são outras: descascar as dificuldades do trabalho, atravessar obstáculos nas amizades, cuidar de feridas e conflitos familiares, lutar para manter viva a vida comunitária eclesial, buscar sabedoria para que minhas filhas cresçam realizadas e felizes. E, às vezes, encarar o peso de doenças, perdas, traumas, separações, dificuldades financeiras, decisões que parecem ter mil camadas antes de chegar ao coração doce.
Nessas horas, lembro-me da segurança que sentia quando meu pai atendia ao meu pedido. Bastava aquele primeiro gesto para eu acreditar que chegaria ao último gomo. Foi assim que aprendi a pedir ao meu Pai do Céu — o Deus eterno, que nunca morre e está sempre ao nosso lado. Como Isaías ouviu o Senhor dizer: “Não temas, porque eu te ajudo” (Isaías 41,13), também eu aprendi que o primeiro rasgo na casca é sempre obra d’Ele.
Mas esse gesto também carrega ecos mais antigos que minha fé cristã. Entre os povos indígenas, há histórias em que o alimento não é apenas sustento, mas sinal de vida compartilhada — como no mito tupi da mandioca, que nasceu do corpo de Mani para que o povo nunca passasse fome. Entre os saberes afro-brasileiros, Iansã, senhora dos ventos e tempestades, ensina que é preciso romper a casca do medo para que a vida se renove. Xangô, com seu machado, parte o que é duro para revelar a justiça escondida.
Percebo que, em todas essas histórias — bíblicas, indígenas, afro-brasileiras — existe sempre um gesto inaugural: alguém que dá o primeiro passo, que abre caminho, que “começa o começo” para que outros possam continuar. Moisés levantando o cajado diante do mar (Êxodo 14,16), o pajé que sopra palavras de proteção antes da caça, o ancião que conta histórias em volta da fogueira para que a memória não se perca, a mãe-de-santo que oferece a folha sagrada para afastar o mal.
Tive um pai terreno que, com suas limitações, me ensinou a amar e respeitar a vida. Hoje sei que o Pai do Céu é o único capaz de começar todos os começos. Por isso, quando a vida parece dura como a casca de uma tangerina nas mãos frágeis de uma criança, lembro-me de Romanos 8,15 e digo:
— Pai, começa o começo!
Não sei quais cascas eu e você ainda teremos que enfrentar. Mas sei que o Amor Eterno será sempre meu primeiro rasgo, meu ponto de partida.
Na eternidade, onde meu pai terreno foi morar em 2015, ele sabe que foi o início de tudo o que sou. E as minhas meninas também hão de saber que eu sou o início de tudo o que elas são. Só posso continuar a caminhar porque me foram confiadas pelo grande Abba, na sagrada missão de ser pai — imperfeito, mas chamado a refletir, mesmo com minhas limitações, a perfeição do Pai do Céu. E, quando as cascas forem grandes demais e minhas mãos parecerem pequenas, lembrarei das mãos do meu pai, das histórias ancestrais e do Deus que é Pai de todos os começos. E direi:
— Pai… começa o começo.
DNonato
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