Mas Deus não é mercadoria. Amós já denunciava que viria um tempo de fome – não de pão, mas de ouvir a Palavra do Senhor (Am 8,11). Contudo, essa Palavra não se compra. Ela exige justiça: “Antes corra o julgamento como as águas, e a justiça como um rio perene” (Am 5,24). A semente do Reino só frutifica onde há sede de justiça, não de prestígio religioso. A boa terra, finalmente, é a vida que escuta, compreende e frutifica (Mt 13,8.23). Mas essa terra não nasce pronta: ela é cuidada, arada, convertida. A antropologia bíblica lembra que o coração é o centro da pessoa (Pr 4,23). Escutar com o coração é mais do que entender – é deixar-se transformar. Como diz o Deuteronômio: “Escuta, Israel!” (Dt 6,4). Essa escuta é ativa, ética, política. Pois quem ouve de verdade, resiste ao mal, denuncia a injustiça e transforma a história. Assim foi com os profetas, com Maria, com os mártires de todas as eras.
A Palavra não está longe, nem está no céu, nem além-mar. Ela está “muito perto de ti: está na tua boca e no teu coração, para que a pratiques” (Dt 30,14). Ela está dentro, não apenas como doutrina a ser compreendida, mas como vida a ser vivida. Como afirmam os profetas, o solo precisa ser arado. Jeremias clama: “Lavrai para vós um campo novo, não semeeis entre espinhos” (Jr 4,3). E Oséias ecoa: “Semeai justiça, colhereis amor; lavrai o campo de fallow, pois é tempo de buscar o Senhor” (Os 10,12). A boa terra não nasce pronta – ela nasce do desejo de conversão, da coragem de romper com as estruturas endurecidas do coração.
Deus promete: “Tirar-vos-ei o coração de pedra e vos darei um coração de carne. Porei dentro de vós o meu Espírito” (Ez 36,26-27). A conversão não é apenas moral; é antropológica e espiritual: mudança de centro, de sensibilidade, de direção. Como nos ensina Isaías, “Assim como a chuva e a neve descem dos céus e não voltam sem antes regar a terra, fazendo-a germinar e produzir, assim será a palavra que sair da minha boca: não voltará para mim vazia, mas fará o que me apraz e cumprirá o propósito para o qual a enviei” (Is 55,10-11). Essa Palavra, como água viva, fecunda até mesmo os desertos existenciais, se houver abertura sincera.
Essa parábola também denuncia o clericalismo. O semeador é Cristo, sim, mas também somos nós: leigas e leigos, pobres e indígenas, mães e militantes, catequistas e professores. A Palavra não pertence ao altar; pertence ao povo. O Papa Francisco (†2025), cuja memória viva ainda ecoa em nossos passos, nos alertou contra a “auto-referencialidade da Igreja” (Evangelii Gaudium, n. 95) e insistiu que todos os batizados são chamados a semear, a sair, a ouvir os clamores da terra e dos pobres. O clericalismo endurece o solo; o discipulado o fecunda. Todavia, há uma urgência profética em nos questionarmos sobre aqueles que almejam a missão além-mar, buscando horizontes distantes, quando ao seu redor tantas terras – suas comunidades, seus bairros, suas famílias – clamam por semeadura e cuidado. Essa busca por missões longínquas não pode ser uma fuga que negligencia o campo presente, que jaz árido, esquecido e pedregoso. A missão autêntica nasce do compromisso com o chão onde se vive, do amor ao próximo imediato, da coragem de arar as terras mais difíceis próximas a nós, antes de buscar outros territórios. Como lembra Gaudium et Spes, a Igreja é chamada a “renovar a ordem temporal” (GS 43), e não a terceirizar a transformação para outros lados, enquanto deixa de cultivar a justiça e a esperança onde está plantada. O verdadeiro missionário é aquele que primeiro faz frutificar a sua própria terra, preparando-se assim para, se for chamado, semear além-mar com raiz firme e coração íntegro. Também é urgente criticar o individualismo espiritualizado. O Reino não é projeto privado de salvação, mas horizonte comum de transformação. A semente frutifica para o outro. Como ensina Gaudium et Spes, a missão da Igreja é “unir a fé com a vida” e “renovar a ordem temporal” (GS 43). Não basta rezar; é preciso cultivar justiça. Não basta escutar; é preciso dar frutos. Não basta acolher a Palavra; é preciso torná-la carne no mundo.
A tradição patrística reforça esse caminho. Santo Irineu dizia que “a glória de Deus é o ser humano vivo, e a vida do ser humano é a visão de Deus”. A vida, portanto, é o terreno da glória. Uma terra viva, justa, fecunda, profética. Uma terra onde a Palavra, mesmo quando pequena como semente de mostarda, carrega a força da transformação (cf. Mt 13,31-32).
O Reino cresce mesmo quando não percebemos. Como na parábola do crescimento misterioso (Mc 4,26-29), “a terra por si mesma produz fruto”. Essa confiança no processo lento da Palavra é também um ato de resistência profética contra a lógica do imediatismo e da performance. A Palavra de Deus “é viva, eficaz e mais cortante que qualquer espada de dois gumes; penetra até dividir alma e espírito, juntas e medulas, e discerne os pensamentos e intenções do coração” (Hb 4,12). Ela não é consolo barato, mas cirurgia do Espírito. Não é anestesia; é transformação.
Como diz o Eclesiastes: “Quem observa o vento não semeará; e quem olha para as nuvens não colherá (...) pela manhã semeia a tua semente e à tarde não retires a tua mão, pois não sabes qual delas prosperará” (Ecl 11,4.6). O profeta não semeia para colher aplausos, mas porque acredita na força da Palavra que trabalha no invisível. O semeador continua lançando sementes do barco sobre o mar do caos. A multidão ainda escuta – alguns com pressa, outros com medo, outros com esperança. A Palavra ainda busca solo fértil, não perfeito, mas disponível. O Espírito ainda sopra, como brisa suave (1Rs 19,12), sem espetáculo nem propaganda. Resta a cada um de nós perguntar, com honestidade e tremor: que tipo de solo temos sido? Que tipo de colheita temos oferecido?
Como disse Jesus: “Felizes os que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática” (Lc 11,28). Pois a colheita do Reino não se mede em números, mas em frutos de justiça, partilha, compaixão e profecia. Semeemos, então, mesmo quando o chão parece árido. Pois Deus é especialista em fazer florescer onde ninguém mais acredita
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