quinta-feira, 17 de julho de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 12, 1-8

 
Quero misericórdia, e não sacrifício” (Mt 12,7)
Na sexta-feira da 15ª semana do Tempo Comum do ano impar da liturgia da Igreja temos uma  cena  que se passa no meio de uma seara ressecada pela fome e pela injustiça, Mateus 12,1-8 se ergue como um grito que rompe a secura da letra e anuncia a fecundidade do Espírito. Jesus e seus discípulos, atravessando um campo de trigo, arrancam espigas e se alimentam. Não se trata apenas de um gesto de sobrevivência, mas de uma ação profundamente profética, encarnada, subversiva — um sinal do Reino que irrompe onde a religião perdeu o compasso da compaixão. Como dizia São Romero de América: “Uma semana injusta não pode desembocar em um domingo pascal”. O sábado, isolado da justiça, se torna caricatura.

O pretexto da controvérsia era o sábado. Mas o texto denuncia o endurecimento do coração religioso que prefere preservar a norma do que saciar a fome. O contexto é o de uma Judeia colonizada, com camponeses oprimidos por tributos romanos e leis religiosas reinterpretadas por uma elite sacerdotal cúmplice do Império. Os discípulos famintos simbolizam os pobres do campo, empurrados para a marginalidade por estruturas religiosas e políticas que privatizaram tanto a terra quanto Deus. A sociologia aqui se une à teologia: o gesto de comer espigas não é crime, mas sobrevivência. E a sobrevivência, num sistema que idolatra a ordem, vira delito. A antropologia bíblica nos lembra que o ser humano, na sua vulnerabilidade, é imagem do Deus que sente fome com os que têm fome (cf. Ex 3,7; Mt 25,35). A fome, assim, desvela a verdade mais profunda sobre a lei: se ela não alimenta, ela não serve a Deus.

Jesus não desautoriza a Torá; ele desmascara sua manipulação. Ele remonta à Escritura — como sempre faz quem lê com o Espírito — para revelar que a própria Lei previa o gesto de seus discípulos: “Quando entrares na plantação do teu próximo, poderás colher espigas com a mão; mas não deves usar a foice na plantação do teu próximo” (Dt 23,25).

A Palavra de Deus garante o direito de colher com a mão o necessário para matar a fome — e, portanto, criminalizar o faminto é trair a própria Torá. Os fariseus, cegos pela letra, perderam o espírito. Como dizia Paulo, “a letra mata, mas o Espírito vivifica” (2Cor 3,6). E como já alertava o profeta: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. Em vão me adoram, ensinando doutrinas humanas” (Is 29,13; cf. Mt 15,8-9). Jesus rompe com essa liturgia do vazio, com a religião do acúmulo, com a fé como vigilância. Ao dizer que é “Senhor do sábado”, Ele se apresenta como intérprete fiel do coração de Deus, que é misericórdia, não sacrifício.

O episódio se desdobra como uma denúncia profética contra a idolatria da norma. Os discípulos de Jesus, ao saciarem a fome no campo, fazem o que a religião oficial condena, mas o que o Deus da Aliança aprova. Pois, como ensinava Oséias, “Quero amor, e não sacrifícios; conhecimento de Deus, mais do que holocaustos” (Os 6,6; cf. Mt 9,13; 12,7).

O eco dessa palavra, repetida por Jesus, revela seu projeto: um retorno à origem da fé como vínculo, não como prisão. A espiritualidade que Ele propõe é a do profeta Isaías, que sonhava um sábado que libertasse os cativos e repartisse o pão com o faminto: “Acaso o jejum que prefiro não é este: soltar as correntes da injustiça, desfazer as cordas do jugo, pôr em liberdade os oprimidos e despedaçar todo jugo? Não é partilhar teu pão com o faminto, e acolher em tua casa os pobres sem abrigo?” (Is 58,6-7).

Não há culto verdadeiro sem justiça social. A liturgia que não se traduz em compaixão é apenas performance estética ou encenação doutrinária.

No plano psicológico, a rigidez dos fariseus se revela como sintoma de uma fé defensiva, ansiosa, que precisa de controle porque não confia no Espírito. O apego à norma é muitas vezes medo da vida. A norma oferece segurança, mas o amor exige entrega. O clericalismo, que vigia em nome de Deus, na verdade teme a liberdade de Deus. E, como advertia Jesus, “vocês fecham o Reino dos Céus diante dos homens” (Mt 23,13). Há um tipo de religiosidade que se especializa em trancar portas que o próprio Deus deseja escancarar.

Mateus 12 é ainda mais eloquente quando lido em paralelo com os outros sinóticos. Em Marcos 2,27-28, Jesus diz: “O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado. Assim, o Filho do Homem é Senhor também do sábado.” E em Lucas 6, Ele cura a mão ressequida de um homem justamente no sábado, para mostrar que a lei que não cura, mata.

O profeta Ezequiel também recorda que o povo profanou o sábado, não por detalhes litúrgicos, mas por abandonar a justiça: “Rejeitaram as minhas normas e não andaram segundo os meus estatutos, profanaram os meus sábados, pois o coração deles seguiu os seus ídolos” (Ez 20,16).

E o profeta Amós expõe a falsidade de um sábado que finge santidade, mas esconde ganância: “Quando passará o sábado, para podermos vender o trigo? Para reduzir a medida, aumentar o preço e usar balanças fraudulentas?” (Am 8,5).

O sábado tornou-se intervalo entre duas explorações. E isso é blasfêmia.

O Templo, símbolo da presença de Deus, também é questionado por Jesus. Ele afirma que ali está alguém “maior que o Templo” (Mt 12,6), uma ousadia que ressoa o gesto profético de Jeremias, ao denunciar:

“Não confiem em palavras enganosas, dizendo: 'Templo do Senhor, Templo do Senhor, Templo do Senhor é este!’ [...] Se não oprimirdes o estrangeiro, o órfão e a viúva, [...] então vos deixarei habitar neste lugar” (cf. Jr 7,4-7).

O verdadeiro santuário, diz Jesus, não é feito de pedra, mas de gestos de misericórdia. Deus não habita em ritos, mas em relações. Ele não se contenta com sacrifícios, mas quer corações atentos. E assim, toda fé que não se converte em ternura é fé morta.

A crítica à religião como espetáculo é contundente. Jesus denuncia a fé que se tornou mercado, que calcula, vende e se autopromove. Denuncia os que fazem da piedade uma vitrine, da doutrina uma trincheira e da missão um palco. Isso ressoa nas palavras do Apocalipse: “Tens fama de estar vivo, mas estás morto” (Ap 3,1).

A teologia da prosperidade, que transforma bênção em bem de consumo, é o avesso do evangelho do pão partilhado. A teologia do domínio, que busca conquistar e subjugar em nome de Deus, trai o servo que lava os pés. O individualismo, que reduz a fé a uma experiência privada, rompe com a dimensão comunitária do Corpo de Cristo. E o clericalismo, que concentra poder nas mãos de poucos, é exatamente o sistema que Jesus combateu ao formar discípulos em comunhão itinerante. Jesus caminha com os seus por campos de espigas — e não por corredores palacianos. Ele compartilha o pão arrancado com as mãos e transforma esse gesto em liturgia viva. Ele não consulta normas antes de acolher, não exige credenciais antes de curar, não exige pureza ritual para amar. Ele sabe que o templo vivo de Deus é o pobre que come, a criança que brinca, a mulher que resiste, o pecador que volta. Por isso, diz: “O Reino de Deus está entre vós” (Lc 17,21).

O campo de trigo é mundo aberto ao Reino. As espigas arrancadas são sinais da partilha escatológica. E Jesus, o grão que cai na terra, é o Messias do povo faminto: “Se o grão de trigo não cai na terra e morre, permanece só; mas se morre, produz muito fruto” (Jo 12,24).

Seu sábado não é descanso para os que acumulam, mas libertação para os que carregam fardos. Seu culto é feito de compaixão. Ele não quer sacrifício, mas misericórdia. Ele não exige méritos, mas oferece graça. E quando os fariseus perguntam por que os discípulos transgridem, Jesus responde com a Palavra viva — que, como trigo colhido, alimenta os que têm fome de justiça. A profecia se cumpre. A nova presença de Deus já não está no Templo de pedras, mas no corpo rasgado da humanidade faminta. Deus habita com os homens. Ele enxuga lágrimas, remove pesos, abre campos e mesas. E se alguém ainda pergunta “quem deu a esses o direito de colher?”, o próprio Cristo responde:

“O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres...” (Lc 4,18). Que cada mesa posta sem exclusão, cada pão repartido sem medo, cada gesto que rompe o legalismo em nome da vida, seja sinal da nova criação. Porque: “Eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21,5).

E nesse campo sagrado da história, onde os pequenos colhem espigas e os profetas denunciam as semanas injustas, o sábado reencontra seu sentido: descanso para os cansados, pão para os famintos, justiça para os esquecidos. Ali, e só ali, Deus é verdadeiramente adorado.

DNonato - Teólogo do Cotidiano 


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