Essa é a palavra proclamada na liturgia da Quarta-feira da 2ª Semana do Advento (Ano Par) e da Quinta-feira da 15ª Semana do Tempo Comum (Ano Ímpar). Mas sua força ultrapassa o ciclo litúrgico. Ela continua viva nos becos onde a esperança respira por aparelhos. É uma palavra que não conhece calendário, pois ressoa sempre que houver cansaço acumulado, opressão normalizada e fome de sentido. Seja no ventre do Advento que espera, seja no coração do Tempo Comum que caminha, este grito de Jesus é refúgio para os esgotados e desafio aos opressores.
Há uma ternura revolucionária neste convite. Não se trata de um consolo sentimental, mas de uma convocação libertadora. Jesus não fala aos poderosos ou bem-sucedidos. Ele se dirige aos exaustos da alma, aos esmagados pelo peso da religião sem misericórdia, pelos impérios que cobram sem perdoar, pelas exigências sociais que matam em silêncio. Fala aos que, como no tempo do Êxodo, ainda hoje gemem sob fardos impostos por Faraós modernos. Como ouvimos em Êxodo 3,7-8: “Vi a aflição do meu povo... ouvi o seu clamor... e desci para libertá-lo”.
Nesse mesmo espírito, o convite de Jesus é dirigido também aos que vivem sob a lógica do desempenho, da meritocracia espiritual, do medo disfarçado de doutrina. Fala aos que são esmagados por religiões que vendem Deus como prêmio e tratam a fé como moeda de troca. “Vinde a mim” — Ele diz — e não a um sistema, nem a uma elite espiritual, nem a um mercado da fé. Jesus é o repouso em pessoa. O evangelho de Mateus coloca esse apelo logo após Jesus lamentar a rejeição das cidades (Mt 11,20-24) e louvar o Pai por se revelar aos pequenos (v.25). Aqui já se delineia o conflito entre os que dominam a fé e os que a acolhem com humildade. Como os salmistas que, em meio à opressão, clamavam: “Bendito seja o Senhor, dia após dia: Ele carrega por nós o nosso fardo” (Sl 68,20). Ou ainda: “Entrega o teu fardo ao Senhor e Ele te sustentará” (Sl 55,23). O Deus de Jesus é esse que carrega conosco. Não aquele que impõe pesos para medir fidelidades. “Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim...” (Mt 11,29)
O jugo (zygos, em grego) simboliza tanto o vínculo com um mestre quanto a carga compartilhada com outro. O jugo de Jesus é nova aliança, nova leitura da Lei, novo modo de estar com Deus e com os outros. Ele mesmo nos alerta contra os que “atam fardos pesados e os colocam nos ombros dos outros, mas não querem movê-los com um dedo” (Mt 23,4). Ao contrário, Jesus compartilha o peso. Ele mesmo entra na carga. Ele mesmo se abaixa.
Essa imagem evoca a profecia de Isaías 53,4: “Em verdade, Ele tomou sobre si as nossas dores e carregou as nossas enfermidades”. O Cristo que chama os cansados é o Servo que se faz ferido pelos feridos, o Deus que sangra conosco, o Pastor que carrega a ovelha nos ombros (cf. Lc 15,5). Por isso, Seu jugo é leve: não por ser fácil, mas por ser carregado com amor, como ensinou Paulo: “Levai os fardos uns dos outros e assim cumprireis a lei de Cristo” (Gl 6,2).
A Igreja, quando fiel a esse Cristo manso, torna-se extensão do Seu convite. Como Pedro afirmou após a cura do paralítico: “Por que colocais sobre os discípulos um jugo que nem nossos pais puderam suportar?” (At 15,10). O verdadeiro Corpo de Cristo não acrescenta peso: oferece alívio, cura e partilha.
“...porque sou manso e humilde de coração” (Mt 11,29)
Jesus não diz “sou exigente e justo”, nem “sou forte e puro”, mas “manso e humilde”. Essa não é uma declaração de fraqueza, mas a revelação de uma força que não oprime. Como na profecia de Zacarias 9,9: “Eis que teu rei vem a ti... manso, montado num jumento”. Ele é o Rei do paradoxo: domina servindo, vence entregando-se, reina lavando os pés.
A humildade de Jesus não é retórica, é cruz. Como diz Paulo em Filipenses 2,6-8, Ele “esvaziou-se a si mesmo, fazendo-se servo, obediente até a morte, e morte de cruz”. Quem aprende dEle, aprende a inclinar-se. Aprende que o verdadeiro discipulado não é subir degraus espirituais, mas descer aos abismos do outro. Essa mansidão e humildade são terapêuticas. Num mundo marcado pela autoimagem agressiva, pela competição espiritual e pela comparação constante, Jesus ensina a acolher-se e a acolher. É o antídoto para os que foram esmagados por vozes religiosas adoecidas: “Tu não foste suficiente”, “Tua fé falhou”, “Te faltou santidade”. A mansidão de Jesus rompe essas vozes. Sua presença é bálsamo para a alma ferida, repouso para os que carregam pesos invisíveis. Ele se aproxima como um amigo fiel, como em Eclesiástico 6,14-16: “Um amigo fiel é um refúgio seguro, quem o encontra encontrou um tesouro”.
“E encontrareis descanso para as vossas almas” (Mt 11,29)
O termo grego para “descanso” é anapausis: repouso profundo, cessar de lutas, reencontro com o centro da vida. É o descanso do Gênesis: “E Deus descansou no sétimo dia de toda a obra que havia feito” (Gn 2,2). Não é mera pausa: é repouso habitado, respiro que cura.
Esse descanso é mais que ausência de dor. É presença de amor. É como o que se anuncia em Jeremias 6,16: “Ponde-vos nos caminhos e perguntai pelas veredas antigas... e encontrareis descanso para as vossas almas”. Mas os homens responderam: “Não andaremos por elas”. Também hoje muitos preferem o cansaço do sucesso ao repouso do amor. Preferem os palcos da fé ao silêncio do coração. Mas esse descanso é oferecido a quem tem o corpo cansado, não só a alma ferida. Jesus não fala a fantasmas. Ele fala aos corpos suados das lavadeiras, aos ombros curvados dos garis, às mães que choram diante da fila do hospital público, aos desempregados de currículo na mão. Fala aos corpos invisíveis que o mercado espiritual não quer mostrar no palco da prosperidade. E por isso a Boa Nova também é corpo: “Aos cansados Ele dá vigor, e aos que não têm forças, Ele enche de energia” (Is 40,29).
“Porque o meu jugo é suave e a minha carga é leve” (Mt 11,30)
O jugo de Jesus é leve porque é feito de amor compartilhado. É leve como o amor que suporta tudo (1Cor 13,7), como o gesto da viúva pobre que dá duas moedas (Mc 12,41-44), como o perdão que carrega o fardo do outro sem cobrar troco (Lc 15,20-24). É leve porque não isola. O peso que mais esmaga é o da solidão, o da culpa acumulada, o da espiritualidade sem comunidade. A salvação não é fuga do mundo, mas abraço da realidade, em comunhão. A fé que liberta não é fuga para o céu, mas compromisso com a terra.
Por isso, o jugo de Jesus desafia as igrejas que vendem bênçãos como cambistas no templo (cf. Mt 21,12-13). Confronta os altares enfeitados, mas sem compaixão. Desmonta os púlpitos de ouro que pregam sucesso, mas se calam diante da fome. Jesus não abençoa a fé-circo, nem a fé-bancada, nem a fé-empresa. Seu jugo é leve porque não se vende. Porque é pura doação. Como dizia São João da Cruz: “Onde não há amor, ponha amor, e colherá amor”. Esse é o caminho do jugo suave. Esse jugo não é apenas caminho espiritual. Ele é promessa escatológica. Ele antecipa o repouso do fim. Como diz Hebreus 4,9: “Resta um repouso sabático para o povo de Deus”. E como proclama o Apocalipse: “Felizes os mortos que desde agora morrem no Senhor. Sim — diz o Espírito — descansem dos seus trabalhos, pois as suas obras os acompanham” (Ap 14,13).
O descanso de Cristo é já e ainda não. É pouso agora e plenitude depois. É pão na jornada e festa no fim. É caminho com cruz e chegada com ressurreição. Quem carrega com amor, será carregado no último dia. Porque o Cristo que nos chama para alívio hoje é o mesmo que nos ressuscitará amanhã.
Esse é o Deus de Jesus.
Esse é o Cristo que alivia.
Esse é o jugo que liberta.
Que este trecho de Mateus 11,28-30 seja uma oração constante para os que carregam cansaços sem nome. Que seja lido ao amanhecer pelos pobres que vão ao trabalho. Que seja sussurrado à beira da cama dos doentes. Que seja anunciado nas ruas, nas favelas, nos presídios.
Porque é ali que o jugo de Cristo revela sua verdadeira leveza.
DNonato – Teólogo do Cotidiano
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