sábado, 19 de julho de 2025

Um outro olhar sobre Lucas 10, 38-42 - 16º Domingo do Tempo Comum

O Senhor, porém, lhe respondeu: "Marta, Marta! Tu te preocupas e andas agitada por muitas coisas. (Lc 10, 41)

Já fizemos a reflexão  do 16º Domingo do Tempo Comum neste blog em   2022 em nosso canal do YouTube 2024,  2022, 2021 e 2020 . A  liturgia de hoje nos convida à hospitalidade, ecoando nas palavras das Escrituras. A primeira leitura, de Gênesis 18,1-10, nos apresenta Abraão e sua generosa acolhida aos três visitantes misteriosos, que se revelam a própria presença divina. O Salmo de resposta 14(15), com seu refrão “Quem habitará, Senhor, no vosso santuário?”, nos convida à reflexão sobre a pureza de coração necessária para a verdadeira comunhão com Deus. Em Colossenses 1,24-28, a segunda leitura, Paulo nos revela o mistério de Cristo em nós, a esperança da glória. E o Evangelho segundo Lucas 10,38-42 proclamado no 16º Domingo do Tempo  Comum do ano "C" e  na  terça-feira  da 27ª semana  do tempo comum do ano par,  nos situa na casa de Marta e Maria, em Betânia, onde a tensão entre a ação e a escuta se manifesta de forma marcante. Em todas essas passagens, percorre-se o fio invisível da escuta, do acolhimento e da revelação do mistério de Deus no ordinário da vida. Não se trata apenas de hospitalidade doméstica ou de práticas religiosas, mas da abertura existencial à presença divina que se revela quando nos dispomos a sair de nós mesmos e criar espaço para o outro – inclusive para o Outro com maiúscula, que é o próprio Deus que se faz hóspede em nossa história.

O Evangelho de Lucas situa Jesus na casa de Marta e Maria, em Betânia, um território de amizade e confiança. Essa casa não é um lugar qualquer; ela se configura como um espaço de refúgio e intimidade, já referida em João 11 e 12 como a morada de Lázaro, amigo do Senhor. Betânia representava um ponto de apoio no caminho de Jesus rumo a Jerusalém, onde sua Páscoa se consumaria. Ali, Jesus não é apenas mestre ou profeta; é um amigo que visita, compartilha da vida e entra no espaço feminino de duas irmãs com quem mantém uma relação próxima e verdadeira. E justamente neste ambiente de intimidade, surge um conflito que, à primeira vista, parece meramente doméstico, mas que transcende para tocar em uma tensão espiritual, social e até política, revelando nuances profundas da condição humana: Marta corre para garantir a hospitalidade prática, enquanto Maria se coloca aos pés do Mestre para escutá-lo.

É crucial recordar que o encontro de Jesus com Marta e Maria acontece imediatamente após a parábola do Bom Samaritano, compondo uma sequência narrativa intencional que Lucas constrói com maestria teológica e pedagógica. O samaritano, estrangeiro e marginalizado, torna-se exemplo de amor concreto, de ação compassiva, mostrando que o verdadeiro culto a Deus passa pelo cuidado com o próximo ferido na estrada da vida (Lc 10,25-37). Mas o Evangelho não termina aí: a ação precisa ser sustentada por uma escuta profunda, como a de Maria, que se senta aos pés de Jesus. Esse encadeamento evangélico recorda Deuteronômio 6,4-5 — o “Shema Israel”: “Escuta, Israel! O Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e com todas as tuas forças.” O amor ao próximo nasce da escuta do Deus único. A hospitalidade, nesse horizonte, não é mera gentileza cultural, mas uma das obrigações centrais da Torá, repetidamente enfatizada em textos como Levítico 19,33-34: “Se um estrangeiro habitar convosco, no vosso país, não o oprimireis. O estrangeiro será para vós como o natural dentre vós; tu o amarás como a ti mesmo, pois fostes estrangeiros na terra do Egito.” A tradição judaica entendia o acolhimento como expressão da santidade (Lv 19,2), um gesto que atualiza a memória da libertação e expressa a fidelidade à Aliança. Não por acaso, Abraão corre ao encontro dos três visitantes em Mambré (Gn 18,1-10), Maria de Betânia oferece sua escuta, e o samaritano para para cuidar do caído. Esse mesmo princípio aparece na ordem de Jesus em Marcos 12,29-31, ao unir o mandamento do amor a Deus com o amor ao próximo. Não há serviço verdadeiro sem contemplação, nem contemplação autêntica que não se traduza em serviço. Isaías 50,4 já anunciava essa espiritualidade integral ao declarar: “Cada manhã ele desperta o meu ouvido para que eu escute como um discípulo.” E é essa escuta que antecede o envio. Como Elias no Horeb (1Rs 19,11-13), que reencontra a voz de Deus não no terremoto ou no fogo, mas no “sopro suave”, também nós somos chamados a reencontrar no silêncio orante e na escuta humilde a fonte da ação profética. Marta e Maria, o Samaritano e Abraão, Maria de Nazaré e Paulo: todos se movem por esse dinamismo do encontro, onde escutar e servir não se opõem, mas se iluminam mutuamente, revelando que a hospitalidade verdadeira começa na escuta do coração. E o gesto de Maria não é irrelevante, mas profundamente revolucionário para sua época. Na cultura judaica do século I, as mulheres não podiam sentar-se aos pés de um rabino para aprender. Essa era uma prerrogativa exclusiva dos homens, dos discípulos formais. Maria rompe corajosamente com essa barreira cultural, e Jesus, em um ato de profunda subversão às normas sociais vigentes, legitima sua escolha. A expressão “sentar-se aos pés” é técnica, indicando a posição de um discípulo ávido por aprender, como vemos em Atos 22,3, onde Paulo afirma ter sido instruído “aos pés de Gamaliel”. Maria, portanto, assume, diante de todos e de si mesma, a postura de quem quer aprender, de quem deseja não apenas servir a Jesus com tarefas práticas, mas compreender a Palavra em sua essência. Essa postura, contraintuitiva para a época, causa desconforto à irmã Marta, que ainda está presa a um modelo de espiritualidade baseado no fazer incessante, no ativismo que, ironicamente, muitas vezes nos afasta da escuta silenciosa e atenta ao mistério.

Jesus, no entanto, não desvaloriza Marta nem exalta Maria como se houvesse um antagonismo entre elas. Sua intervenção é um convite à introspecção, um apontamento para a desordem interior de Marta: “Anda inquieta e agitada com muitas coisas” (v. 41). O problema não reside no serviço em si, que é nobre e necessário, mas no serviço que se transforma em angústia, em cobrança, em comparação, em uma tentativa, muitas vezes inconsciente, de impor ao outro a própria forma de viver a fé. Não por acaso, muitos líderes religiosos hoje agem como uma “Marta desfigurada”: exigem dos outros adesão ao seu próprio ritmo frenético, confundem discipulado com desempenho e medem a espiritualidade pela quantidade de atividades desenvolvidas, e não pela qualidade do encontro transformador com o Senhor. Aqui ressoa com força a crítica profética do Papa Francisco, que nos recorda em Evangelii Gaudium, n. 14: “A Igreja não cresce por proselitismo, mas por atração”. E essa atração só ocorre quando deixamos de lado o ativismo vazio e cultivamos uma escuta autêntica, contemplativa e comprometida, capaz de gerar vida e sentido.

A crítica de Jesus não é apenas dirigida a Marta, mas a uma lógica, uma mentalidade, que persiste vigorosamente em nossos dias: o delírio da produtividade espiritual, da fé transformada em tarefa, da missão esvaziada de seu sentido mais profundo e convertida em um empreendimento, muitas vezes motivado por interesses próprios. A teologia da prosperidade, que distorce a mensagem evangélica ao prometer bênçãos materiais em troca de sacrifícios pessoais e ofertas financeiras, instrumentalizando a fé para fins de ganho; a teologia do domínio, que usa o Evangelho para legitimar poder político e autoritário, subjugando consciências em vez de libertá-las; a fé-mercadoria, onde o templo se converte em um mercado de bens e serviços religiosos e o sacramento em uma performance vazia de significado, todas essas distorções nascem da incapacidade de parar, escutar, discernir e deixar que a Palavra de Deus nos interpele em nossa interioridade. Como Marta, muitos hoje querem obrigar os outros a viver a fé segundo seus próprios moldes, confundem o zelo pela casa de Deus com imposição de regras rígidas, e o cuidado com o outro se torna uma cobrança moral asfixiante ou um controle institucional que mina a liberdade do Espírito. Esse clericalismo, que incha o ego e esvazia a alma, é uma das maiores chagas da Igreja contemporânea, sufocando a profecia e a alegria do Evangelho.

Marta é, então, a imagem pungente da espiritualidade agitada que corre o risco de perder o centro, de desviar-se da fonte da verdadeira vida. Maria, por sua vez, representa a escuta radical, o discipulado contracultural, a abertura à Palavra que desinstala, que desafia as convenções e os paradigmas estabelecidos. Mas é crucial entender que ambas são necessárias para uma fé plena e autêntica. A tradição cristã nunca as separou, mas, ao contrário, as integrou em uma tensão criativa. São Gregório Magno, em sua Homilia 33 sobre os Evangelhos, afirmou com sabedoria que “Marta e Maria representam as duas dimensões da vida cristã: a ação e a contemplação. Ambas são necessárias, mas a contemplação é superior, pois é ela que alimenta a ação e lhe dá sentido”. O problema de Marta não reside em seu serviço, que é uma expressão de amor e cuidado, mas em sua tentativa de silenciar a escuta do outro, de sufocar a necessidade de parar e se nutrir da Palavra. Essa dinâmica pode ser analisada sob a ótica da psicologia, onde o ativismo incessante muitas vezes encobre ansiedades e a necessidade de controle, enquanto a capacidade de escuta e contemplação está ligada à inteligência emocional e à paz interior. Sociologicamente, o conflito reflete a tensão entre o pragmatismo e o misticismo, entre a organização social e a busca individual por significado.

Se voltarmos ao Gênesis, na primeira leitura, vemos Abraão acolhendo três visitantes misteriosos com uma hospitalidade generosa e incondicional. Ele não sabia, mas estava diante do próprio Deus, que se manifestava sob a forma humana (Gn 18,1-10). É na escuta atenta, no acolhimento sem reservas, que a promessa divina se revela: "No próximo ano, tua esposa Sara terá um filho". O que parecia apenas um gesto de hospitalidade transforma-se em um encontro com o sagrado, em uma ruptura com a lógica da esterilidade e da impossibilidade. Em Lucas, Maria, como Sara, ouve a promessa da Palavra. A escuta gera vida. A escuta é fecunda. A escuta abre espaço para o novo, para o inusitado, para a graça que irrompe na história.

Infelizmente, muitos hoje preferem gritar do que escutar. Preferem uma fé ruidosa, cheia de eventos, luzes, programações intensas, mas vazia de interioridade, de silêncio, de Palavra que ecoa na alma. As missas, por vezes, se transformam em shows, o altar em palco, e os pregadores em artistas da performance religiosa, buscando aplausos e reconhecimento, em vez de conduzirem à humildade do encontro com o transcendente. E os que ainda buscam silêncio e contemplação são frequentemente tidos como frios, pouco fervorosos ou desengajados. O grito de Marta ecoa nessas práticas: "Senhor, não te importas que minha irmã me deixe sozinha no serviço?" (v. 40). E Jesus, com sua sabedoria divina, responde a todos nós, desafiando nossas prioridades e apegos: “Maria escolheu a melhor parte, e esta não lhe será tirada” (v. 42).

A “melhor parte” não é o ócio ou a inatividade irresponsável. É a escuta que precede a ação. É o discipulado antes da missão. É o saber antes do fazer. É a sabedoria antes do ativismo desmedido. Sem essa base sólida, o agir cristão se torna um ativismo secular com um rótulo religioso, vazio de propósito e de graça. E isso vale para todas as estruturas da Igreja, desde a paróquia mais humilde até as mais altas instâncias: quando a pastoral se torna uma máquina burocrática, a liturgia um espetáculo sem profundidade, a caridade um mero assistencialismo sem empatia, a missão um marketing empresarial e a evangelização um algoritmo frio, perdemos o essencial. A espiritualidade cristã só é autêntica e verdadeiramente libertadora quando integra Marta e Maria em uma tensão criativa, com a escuta como fonte inesgotável de vida e o serviço como sua consequência natural e generosa. Como ressalta a patrística, a união dessas duas dimensões é a chave para a santidade.

Lucas, ao narrar esse episódio logo após a parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37), nos convida a um equilíbrio dinâmico entre ação e contemplação. O samaritano agiu com misericórdia e eficácia, mas agiu porque viu a necessidade, e viu porque teve compaixão. E a compaixão, em sua essência, nasce de um coração que escuta: escuta o clamor dos caídos, escuta a Palavra de Deus, escuta a voz do Espírito Santo que move à ação. Do mesmo modo, em Marcos 3,31-35, Jesus redefine a família espiritual, afirmando: “Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe.” A vontade de Deus, no entanto, só pode ser feita quando é escutada e compreendida em profundidade. Em Mateus 17,5, na Transfiguração, o Pai declara de forma inequívoca: “Este é o meu Filho amado. Escutai-o!” A escuta é, portanto, sempre a primeira e mais fundamental resposta da fé.

Na Carta aos Colossenses, Paulo fala de seu sofrimento como expressão do mistério de Cristo, “Cristo em vós, a esperança da glória” (Cl 1,27). Esse Cristo que sofre e salva é também o que visita nossas casas, nossas feridas mais profundas, nossos silêncios. Precisamos reaprender a receber o Senhor não como um produto litúrgico ou uma peça de um ritual vazio, mas como hóspede sagrado. Como presença viva, e não como ideologia a ser imposta. Como Palavra que interpela e transforma, e não como um slogan religioso vazio. Como rosto dos pobres e marginalizados, e não como símbolo de poder e opulência. A filosofia existencial nos lembra que a verdadeira presença se dá na relação autêntica, não na objetificação.

Neste mundo fragmentado e ruidoso, onde tantos líderes religiosos se tornam administradores de empresas e caçadores de curtidas em redes sociais, confundindo a espiritualidade com a autopromoção, precisamos redescobrir a escuta como ato revolucionário. Escutar a Palavra de Deus que nos nutre. Escutar os clamores dos pobres e oprimidos que nos desafiam. Escutar o silêncio do nosso próprio coração, onde Deus habita. Escutar a voz do Espírito Santo que ainda hoje sussurra em nossas casas, em nossas caminhadas, em nossos desertos. A antropologia cultural nos mostra como o ritmo acelerado da vida moderna, impulsionado pela tecnologia, dificulta essa escuta profunda. Marta e Maria nos ensinam que é possível, sim, servir e escutar, agir e contemplar, viver a fé de forma integrada, coerente e libertadora, abraçando a tensão criativa entre o fazer e o ser, entre a ação e a contemplação.

Qual das duas dimensões, a ação ou a escuta, você sente que precisa cultivar mais em sua vida hoje?



DNonato - Teólogo do Cotidiano 



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