Jesus, ao retomar o princípio de Deuteronômio 19,15 — “pelo depoimento de duas ou três testemunhas se estabelecerá a causa” — o ressignifica, não como um instrumento de condenação, mas como um caminho de misericórdia. Primeiro, o convite é para falar a sós com o irmão; depois, para envolver dois ou três; por fim, para apresentar a questão à ekklesia — termo grego que significa assembleia convocada, um espaço dinâmico e ativo de discípulos e não uma instituição burocrática rígida.
O verbo grego usado para “repreender” (ἐπιτιμάω) traz a conotação de chamar à conversão, ao ajuste de rota, mais do que uma acusação implacável. A estrutura tripartite do processo é cuidadosamente articulada para evitar injustiças e favorecer a reconciliação. O diálogo pessoal preserva a dignidade e evita expor publicamente a falha; a intervenção de duas ou três testemunhas traz equilíbrio e imparcialidade; e a intervenção comunitária simboliza a responsabilidade da Igreja como corpo de fiéis para manter a unidade. Essa progressão espelha a pedagogia do amor paciente que quer reconstruir e não destruir.
Quando Jesus diz que, se necessário, o irmão “seja para ti como um pagão ou publicano”, não autoriza a exclusão definitiva, mas um recomeço missionário. A palavra grega ethnos (“pagão”) remete a quem está fora da aliança, e “publicano” lembra aqueles marginalizados por colaborarem com Roma. Contudo, Jesus acolheu esses grupos e elogiou a fé da mulher cananeia (Mt 9,10-13; 15,21-28), indicando que esse “excluir” é um convite à conversão e reintegração.
O processo de correção fraterna, longe de ser fechado, é um caminho que impulsiona a comunidade para fora de si mesma, reafirmando sua missão de testemunhar o Reino. A exclusão temporária é sempre um “estado transitório”, uma pausa para conversão e reconciliação.
A promessa: “onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou no meio deles” é uma afirmação fundamental da presença real de Cristo na comunhão fraterna e reconciliadora. Essa presença não depende do número, mas da qualidade da comunhão e da intenção sincera de seguir Jesus e restaurar relações. A Shekiná judaica, presença divina entre o povo reunido, é retomada como sinal de que Deus habita onde reina a unidade e o perdão. Essa promessa inspira a Igreja a confiar no poder transformador da oração comunitária e do perdão mútuo, fundando sobre essa experiência o anúncio do Reino.
Os paralelos nos Sinóticos reforçam essa pedagogia: Lucas 17,3-4 convoca ao perdão reiterado; Marcos 11,25 vincula o perdão à eficácia da oração; Levítico 19,17 do Antigo Testamento reforça a exigência moral de confrontar o irmão para evitar o cúmplice silêncio que permite o pecado persistir.
Essa pedagogia confronta as distorções modernas da fé: a teologia da prosperidade que transforma a comunhão em espetáculo e negócio; a teologia do domínio que subjuga com discursos autoritários; o individualismo que se exime da responsabilidade comunitária; e a fé-mercadoria que reduz oração a contrato de troca. Também desafia o clericalismo denunciado pelo Papa Francisco, que concentra a correção como prerrogativa exclusiva dos líderes, enquanto toda a comunidade é responsável.
O Papa Francisco insiste no espírito sinodal que deve animar a Igreja hoje, enfatizando que “a responsabilidade pela vida da comunidade é de todos, não só de uns poucos” (Evangelii Gaudium, 32). Santo João Crisóstomo ensina que a correção deve ser sempre temperada pela paciência e caridade, pois “corrigir é um ato de amor que quer a cura e não a punição”.
Gaudium et Spes (n. 27) afirma que “tudo o que se opõe à vida envenena a convivência humana”. Santo Agostinho já ensinava: “Corrigir é amar, calar-se é odiar” (Sermão 82). Santo Ambrósio, refletindo sobre a Igreja, exorta que “a caridade corrige, mas jamais destrói a comunhão”.
No dia 13 de agosto, celebramos Santa Dulce Lopes Pontes a "Santa Dulce dos Pobres", canonizada em 2019, exemplo vivo deste Evangelho. Quando sua irmã Dulcinha enfrentou uma gravidez de risco, em 1956, Irmã Dulce fez um voto: se a irmã sobrevivesse, dormiria sentada pelo resto da vida, como sinal de gratidão e penitência. Cumpriu-o por 30 anos, até ser convencida pelos médicos a parar, pois sua saúde já estava fragilizada por enfisema pulmonar. A cadeira simples onde dormia está hoje no Memorial Irmã Dulce, em Salvador. Esse gesto encarna João 15,13: “Ninguém tem amor maior do que aquele que dá a vida pelos amigos”. Santa Dulce não corrigia com discursos vazios, mas com gestos concretos que restauravam dignidade. Fundou obras que acolhem milhares de pobres e doentes, sem discriminação, denunciando a fé-espetáculo e proclamando a presença real de Cristo “no meio” daqueles que se reúnem para amar.
A psicologia aponta que a confrontação construtiva nasce da empatia; a antropologia revela que, nas culturas tradicionais, a queda de um membro ameaça o grupo, exigindo reconciliação; a filosofia, de Sócrates a Levinas, lembra que o rosto do outro convoca à responsabilidade ética.
Este Evangelho, iluminado pelo testemunho de Santa Dulce, é antídoto contra a cultura do descarte, como denuncia Fratelli Tutti (n. 215). Ecoa o Salmo 133: “Como é bom e agradável viverem unidos os irmãos! Ali o Senhor concede a bênção e a vida para sempre”.
Corrigir, perdoar, recomeçar: eis o caminho do Reino, vivido com coragem e ternura. Que sejamos, como Santa Dulce, artesãos da paz e da comunhão, porque onde dois ou três estão reunidos em Seu nome, Ele está no meio de nós, sustentando a vida e o amor que permanecem firmes, mesmo quando o corpo cansa e o mundo tenta nos separar.
DNonato – Teólogo do Cotidiano
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