domingo, 14 de setembro de 2025

Um breve olhar sobre 19, 25-27, Memória da Bem-aventurada Virgem Maria das Dores.

A contemplação da dor de Maria ao pé da cruz é celebrada na Memória da Bem-aventurada Virgem Maria das Dores, instituída liturgicamente para honrar a coragem e a fidelidade da Mãe de Jesus diante do sofrimento. Esta memória remonta à tradição devocional consolidada nos séculos XVII e XVIII, especialmente com a prática do culto das Sete Dores de Maria, que sublinha sua participação ativa e profética na história da salvação. Oficialmente, a Igreja celebra esta memória em 15 de setembro, proporcionando aos fiéis a oportunidade de refletir sobre a profundidade da dor materna unida à obediência e à fidelidade à vontade divina.

O texto de João 19,25-27 é proclamado em diversas celebrações litúrgicas, principalmente durante a Sexta-feira Santa, na Liturgia da Paixão, e em memórias marianas específicas, permitindo contemplar a fidelidade silenciosa de Maria e o cuidado fraterno que ela inspira no novo povo de Deus.

Maria, mãe de Jesus, representa o povo da antiga aliança que se manteve fiel às promessas divinas, aguardando o Messias com esperança ativa. Sua fidelidade ecoa figuras do Antigo Testamento: Ana orava ao Senhor com lágrimas, confiando na promessa que transcende a esterilidade e o sofrimento humano; Raquel chorava seus filhos buscando consolação divina; Miriã conduzia o povo com coragem no deserto, lembrando que Deus caminha com o seu povo; Jeremias clamava ao Senhor no meio da dor, enquanto Sofonias anunciava a restauração que viria mesmo na humilhação do povo. Isaías descreve o Servo sofredor, ferido por nossas transgressões, enquanto Gênesis 3,15 anuncia a descendência da mulher que derrotaria o mal, prefigurando Maria como nova Eva. Jeremias 31,15 ecoa o lamento materno, e os Salmos, em toda a sua riqueza, registram o sofrimento e a esperança: Salmo 22 descreve a angústia do justo, antecipando a cruz; Salmo 34 lembra que muitas são as aflições do justo, mas o Senhor o livra; Salmo 126 celebra a restauração e o retorno da esperança; Salmo 31 reforça a confiança em meio à perseguição; Salmo 73 evidencia que a fidelidade se revela apesar da prosperidade dos ímpios; e Salmo 130 recorda que o Senhor ouve o clamor do justo, transformando a dor em libertação. Lamentações 1 e 3 apresentam o remanescente fiel que persiste na esperança. Miquéias 5,2 aponta Belém como cidade do Salvador, e Habacuque 3,17-19 reforça a confiança no Senhor mesmo diante da escassez e do sofrimento. Isaías 7,14 e 9,5-6 anunciam a vinda do Emanuel, e o livro de Sabedoria destaca que Deus protege os humildes e transforma a dor em justiça. Eclesiastes lembra que há tempo para cada coisa, incluindo sofrimento e consolo, e que o temor do Senhor é princípio de toda sabedoria.

O discípulo amado representa o novo povo de Deus, formado não por laços de sangue, mas pela adesão consciente a Cristo. Ao receber Maria como mãe, ele incorpora o antigo povo na nova aliança, cumprindo a unidade descrita em Gálatas 3,28: “Não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher; todos são um em Cristo Jesus.” João revela que a fidelidade à promessa se realiza na comunhão e no cuidado mútuo, ligando passado e futuro, sofrimento e esperança, antigo e novo povo de Deus.

Nos sinóticos, Mateus 27,55 registra mulheres “de longe, observando”, Lucas 23,49 afirma que “permaneciam ali, observando”, e Marcos 15,40 lembra que eram aquelas que acompanharam Jesus desde a Galileia. Essas mulheres silenciosas e constantes revelam que a fidelidade não se mede pela visibilidade ou pelo protagonismo, mas pelo compromisso, pelo cuidado e pela presença persistente.

A experiência humana, integrando sofrimento e ação. Maria demonstra que a fidelidade é presença ativa, que não se limita ao lamento, mas que se manifesta na permanência e no cuidado. A sociologia e a antropologia destacam que, em contextos patriarcais, sua presença representa resistência cultural: Maria ocupa o espaço do cuidado, da memória e da transmissão da promessa, mostrando que o sofrimento vivido em comunhão gera solidariedade, justiça e transformação social.

O gesto de Jesus ao entregar sua mãe ao discípulo amado revela uma ética relacional profunda: a verdade do ser humano se manifesta na responsabilidade pelo outro. Esta é uma crítica direta às teologias da prosperidade, do domínio, do individualismo e da fé como mercadoria, que reduzem a experiência religiosa a lucro, status ou poder. Maria e o discípulo amado lembram que a fidelidade exige abertura, cuidado e compromisso, não espetáculo ou exibição de poder.

Santo Irineu observa que Cristo “recaptura a humanidade inteira”, e a união com Ele transforma toda a criação, mostrando que a fidelidade de Maria é ato de restituição e reconciliação universal. Orígenes enfatiza que Maria, junto à cruz, revela a profundidade do amor divino e a potência da obediência que gera vida. São João Crisóstomo destaca que o discípulo amado assume responsabilidade e comunhão, evidenciando que a salvação não é individual, mas relacional. Santo Ambrósio identifica Maria como figura do novo Éden, onde o sofrimento se transforma em esperança e a fidelidade em testemunho da promessa. Tertuliano ressalta a dimensão ética do cuidado mútuo, indicando que Maria e o discípulo amado antecipam a missão da Igreja como corpo unido e solidário. 

Historicamente, a presença de Maria ao pé da cruz revela a centralidade das mulheres na preservação da memória e da tradição, subvertendo estruturas de poder que tentam silenciá-las. Sua fidelidade silenciosa confronta diretamente as teologias que prometem riqueza, dominação ou prestígio em vez de vida, solidariedade e amor ao próximo. Os documentos da Igreja reforçam a dimensão comunitária e profética: Lumen Gentium descreve Maria como modelo de fé, esperança e caridade; Redemptoris Mater destaca que ela se une ao sofrimento de Cristo, tornando-se mãe de todos, convocando à solidariedade; o Papa Francisco enfatiza que a Igreja cresce no serviço humilde, alertando contra o clericalismo que transforma a fé em status ou exclusão. O Antigo Testamento amplia a meditação: além dos Salmos e Isaías, os profetas menores como Naum, Sofonias, Amós, Habacuque, Oséias e Joel denunciam injustiças e lembram que Deus protege os humildes e remanescentes fiéis. Jeremias 31,31-34 revela a nova aliança que se cumpre em Cristo; Ezequiel 36 anuncia a purificação e renovação do coração. Provérbios, Eclesiastes e Sabedoria enfatizam discernimento, paciência e temor do Senhor. No Novo Testamento, Lucas 2,34-35 anuncia a espada que traspassará a alma de Maria; Mateus 2,13-18 lembra a fuga para o Egito e o massacre dos inocentes; Atos 1,14 registra Maria com os discípulos em oração após a Ascensão; Romanos 8,35-39 afirma que nada separa os fiéis do amor de Deus; 1Coríntios 12,12-27 reforça a imagem do corpo unido, no qual Maria e o discípulo amado simbolizam cuidado e unidade; Hebreus 12,1-2 lembra de perseverar na fé olhando para Jesus; Apocalipse 12 apresenta a mulher vestida de sol, símbolo de Maria, acompanhando o drama da história da salvação; Filipenses 2,5-11 revela a união de obediência e humildade que Maria encarna; Colossenses 1,24-27 mostra a Igreja como corpo de Cristo, onde cada sofrimento é redentor e comunitário. O Apocalipse projeta a dimensão escatológica: “Eis que a tenda de Deus está com os homens” (Ap 21,3). Maria simboliza essa tenda que acolhe a humanidade em sofrimento, antecipando a comunhão plena com Deus. Sua fidelidade transforma a dor em esperança, a morte em vida, preparando a consumação do plano divino.

Refletindo sobre João 19,25-27, percebemos que a Boa Nova de Jesus Cristo não se realiza na exibição, no lucro, na dominação ou na fé individualista. Ela se manifesta na fidelidade concreta, na presença junto aos crucificados da história, no cuidado pelo outro e na comunhão que transcende gerações. Maria das Dores permanece como sinal de esperança e resistência, e o discípulo amado como modelo de responsabilidade compartilhada, lembrando-nos que a verdadeira herança da promessa não se mede em riquezas, poder ou reconhecimento, mas na capacidade de permanecer, sofrer e amar com fidelidade.

A união entre antigo e novo povo, entre sofrimento e promessa, entre mãe e filho, revela que a história da salvação é contínua e relacional: os fiéis de ontem e de hoje se encontram na cruz e são chamados a viver a fidelidade não como ritual vazio, mas como prática transformadora da vida. Somos convidados a olhar para nossas próprias cruzes, para os sofrimentos alheios, e reconhecer que cada gesto de cuidado, cada permanência no sofrimento e cada ato de solidariedade é uma participação na missão de Cristo.

O texto de João 19,25-27 situa-se no momento culminante da paixão de Cristo, no Calvário, quando o Filho é pregado à cruz e a morte se aproxima. João apresenta a cena com um cuidado minucioso, diferente dos sinóticos: ele enfatiza a presença das mulheres e a relação entre Jesus, sua mãe e o discípulo amado, revelando camadas teológicas profundas. O evangelista descreve: “Junto da cruz de Jesus estavam sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Clopas, e Maria Madalena.”

Este detalhe já revela múltiplas dimensões. Primeiro, Maria não está sozinha; ela está cercada por mulheres que representam a continuidade do antigo povo, a memória das promessas e a fidelidade que não se abate diante da dor. A menção das demais mulheres indica a dimensão comunitária do sofrimento, mostrando que a cruz não é uma experiência individual, mas compartilhada. A presença de Maria Madalena, aquela que seguiu Jesus desde o início de seu ministério, simboliza os discípulos que permanecem mesmo quando tudo parece perdido, ecoando a perseverança de figuras do Antigo Testamento que mantiveram esperança diante da adversidade, como Ana, Débora e Abigail.

Em seguida, João destaca o gesto de Jesus: “Vendo sua mãe e perto dela o discípulo a quem amava, disse à mãe: Mulher, eis aí teu filho. Depois disse ao discípulo: Eis aí tua mãe.” Esta simples declaração contém uma densidade teológica impressionante. Jesus, no momento da própria morte, organiza relações humanas, transfere responsabilidades e cria vínculos que ultrapassam os laços biológicos. Ele entrega sua mãe à proteção do discípulo amado e, ao mesmo tempo, confere a todos os seguidores de Cristo a responsabilidade de acolher Maria como mãe, indicando que a comunidade de fé nasce da comunhão e do cuidado mútuo.

O termo “mulher”, usado por Jesus, é carregado de significado. Não é uma forma distante, mas uma expressão de respeito profundo, que a reconhece como figura de fé e testemunho. Ao chamá-la “mulher”, Jesus remete à linguagem simbólica da Escritura: a mulher é figura do povo de Deus, do remanescente fiel, da nova Eva que participa ativamente na obra de salvação, cumprindo a promessa de Gênesis 3,15.

O discípulo amado, por sua vez, representa todos os que aderem a Cristo em liberdade e fé. Ao receber Maria como mãe, ele incorpora o antigo povo na nova aliança, tornando-se mediador da continuidade entre promessa e cumprimento, entre Antigo e Novo Testamento. Este gesto profético antecipa a missão da Igreja: cuidar, proteger, educar na fé, viver a comunhão.

João descreve a cena com economia de palavras, mas cada elemento é simbólico. A posição junto à cruz indica proximidade e fidelidade. A ordem das palavras mostra intencionalidade: primeiro Maria, depois o discípulo. A dor de Maria é central, mas não é descrita em termos de sofrimento passivo; ela é ativa na contemplação, na fidelidade e na entrega à vontade de Deus. Este foco revela o papel de Maria como mediadora e modelo de adesão ao plano divino, cumprindo a função do remanescente fiel do Antigo Testamento, que manteve esperança e obediência em meio às adversidades. O evangelista não menciona dor física, mas a dor espiritual e emocional é implícita e profunda. A espada que atravessa a alma de Maria, anunciada em Lucas 2,35, se cumpre aqui: cada gesto de Jesus a toca, cada palavra exige dela fidelidade ativa. Maria permanece firme, testemunhando que a fé não é fantasia ou conforto, mas compromisso que se mantém mesmo diante da morte.

A cena de João 19,25-27 também serve como crítica implícita a qualquer compreensão distorcida da fé. Ela denuncia a fé como mercadoria, a religião como poder ou espetáculo, o individualismo que ignora o sofrimento do outro. Jesus, ao criar vínculos de cuidado, subverte as lógicas de dominação e prosperidade, indicando que a verdadeira salvação se manifesta na presença, na solidariedade e na comunhão.

O texto revela ainda um profundo aspecto antropológico e psicológico: Maria representa a capacidade humana de permanecer junto ao sofrimento sem ceder à desesperança; o discípulo amado mostra a dimensão relacional da vida humana, na qual cada um é responsável pelo outro. Historicamente, a narrativa evidencia o papel das mulheres como guardiãs da memória, mantenedoras da fé e sustentáculo da comunidade, desafiando estruturas patriarcais que tentam silenciá-las.

Assim, João 19,25-27 não é apenas relato histórico: é catequese teológica e ética, modelo de espiritualidade, referência comunitária e convite à ação. Cada palavra, cada gesto, cada presença ilumina a relação entre sofrimento, promessa, fidelidade e cuidado, convidando o leitor a assumir seu papel no corpo de Cristo, mantendo a esperança, a solidariedade e a fidelidade ao plano divino.

A contemplação de Maria ao pé da cruz nos desafia: não é suficiente professar fé ou repetir palavras; é preciso viver, sofrer, amar e permanecer. É preciso transformar o lamento em esperança, a dor em ação e a fidelidade em testemunho. João 19,25-27 nos lembra que a Boa Nova de Jesus se realiza na presença ativa, na responsabilidade compartilhada e na continuidade da promessa de Deus, revelando o caminho de uma fé orgânica, profética, comunitária e verdadeiramente libertadora, que não se limita ao sagrado, mas se derrama no mundo, tocando a vida dos mais vulneráveis, reconstruindo comunidades e restaurando corações.

DNonato - Teólogo do Cotidiano 

sábado, 13 de setembro de 2025

Um olhar sobre João 3,13-17 - Festa da Exaltação da Santa Cruz

A festa da Exaltação da Santa Cruz, celebrada em 14 de setembro, é um mergulho no mistério paradoxal da fé cristã: aquilo que aos olhos do mundo parecia derrota, humilhação e fim, torna-se sinal de vitória, amor e vida plena, tem a seguinte liturgia: a   1ª leitura Números 21,4b-9;Salmo 77(78),1-2.34-35.36-37.38 (R. cf. 7c); a 2⁰ leitura Filipenses  2,6-11 e Evangelho  de  João 3,13-17 que iremos aprofundar

A primeira leitura (Nm 21,4b-9) recorda a serpente de bronze erguida por Moisés no deserto, pela qual o povo, ao olhar, era curado do veneno da serpente. É um anúncio simbólico: quem contempla com fé o Crucificado encontra salvação e cura para as feridas mais profundas da existência.O hino de Filipenses (2,6-11) mostra a dinâmica da cruz: Cristo, sendo Deus, não se apegou a sua condição divina, mas esvaziou-se, assumindo nossa humanidade até a morte de cruz. Essa humilhação, porém, não é fracasso, mas caminho para a exaltação, pois é no amor radical e na entrega total que Deus manifesta sua glória.

A liturgia deste dia, portanto, não celebra o sofrimento em si, mas a transformação da cruz em fonte de esperança. Olhar para a Cruz é olhar para o amor extremo de Deus, que se faz frágil por nós e nos abre um horizonte de vida e ressurreição.



A Festa da Exaltação da Santa Cruz, tem uma origem que remonta ao século IV, ligada à dedicação da Basílica do Santo Sepulcro, em Jerusalém, construída por ordem do imperador Constantino, após a descoberta da cruz por sua mãe, Helena. Não se trata de um culto à cruz como objeto material, mas da memória viva e celebrativa do mistério pascal: a cruz é exaltada porque nela Cristo não apenas sofreu, mas venceu o pecado e a morte, transformando o que era sinal de humilhação em fonte de vida nova. A liturgia deste dia proclama o Evangelho de João 3,13-17, passagem que coloca em palavras a síntese do amor de Deus: “Deus amou tanto o mundo que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). Aqui, a cruz é interpretada não como derrota, mas como o ápice da revelação do amor, o momento em que Deus assume o abismo da dor humana e o transforma em caminho de salvação.

A liturgia usa este texto também no 4º Domingo da Quaresma, chamado Laetare, justamente como alento no meio do caminho penitencial, recordando que o centro da fé cristã não é a dor, mas a esperança que brota da entrega de Cristo. João apresenta a cena do diálogo com Nicodemos, um mestre da Lei que procura Jesus de noite, movido pelo desejo sincero de compreender, mas ao mesmo tempo cheio de receios. A noite em João é mais que uma referência temporal: é símbolo de incerteza, de ambiguidade, de busca entre sombras (Jo 3,2). Ali, Jesus evoca a serpente erguida por Moisés no deserto (Nm 21,4-9), quando o povo, mordido pelas serpentes, recebia a vida ao olhar para o sinal levantado. O paralelo é direto: “assim como Moisés levantou a serpente no deserto, assim também o Filho do Homem deve ser levantado, para que todo o que nele crê tenha vida eterna” (Jo 3,14-15).

A cruz, portanto, é a nova serpente: sinal paradoxal, escândalo para uns, loucura para outros (1Cor 1,18), mas força de Deus para os que creem. Na carta aos Gálatas, Paulo insiste: “Quanto a mim, longe esteja gloriar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo” (Gl 6,14). E aos Filipenses ele escreve: “Humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz. Por isso Deus o exaltou sobremaneira” (Fl 2,8-9). A exaltação da cruz já está inscrita no próprio movimento pascal: humilhação e glória se entrelaçam no mesmo mistério.

Nos sinóticos, a cena da crucifixão é relatada com intensidade. Marcos e Mateus sublinham o clamor de Jesus: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15,34; Mt 27,46), ecoando o Salmo 22, que começa em tom de lamento, mas termina em confiança. Lucas nos dá outra chave, mostrando o crucificado que perdoa: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23,34) e que se entrega confiante: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46). João, por sua vez, mostra Jesus como quem reina do alto da cruz, entregando sua mãe ao discípulo amado (Jo 19,26-27) e consumando a missão: “Tudo está consumado” (Jo 19,30). A cruz é o centro da revelação: nela se encontra a justiça do Servo sofredor de Isaías 53, que levou sobre si as nossas dores e foi traspassado por causa de nossas iniquidades.

Na antropologia, toda cultura humana lida com símbolos de dor e superação. A cruz, no Império Romano, era o símbolo máximo da humilhação pública, reservado aos escravos e subversivos. Que um crucificado seja proclamado Filho de Deus é uma inversão radical da lógica social. Por isso Paulo escreve aos Coríntios: “Pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos, mas para os que são chamados, força e sabedoria de Deus” (1Cor 1,23-24). A sociologia da religião mostra que símbolos assim podem ser instrumentalizados: quantas vezes a cruz foi usada para legitimar conquistas coloniais, cruzadas, discursos nacionalistas e até práticas de exclusão? Mas o Cristo da cruz é aquele que se identifica com os pobres e pequenos (Mt 25,31-46), que se fez servo (Mc 10,45), que não tinha onde reclinar a cabeça (Lc 9,58).

Na filosofia, Hegel dizia que a cruz revela a reconciliação dos contrários: a morte gera vida, a finitude abre para o infinito. Nietzsche, por sua vez, via na cruz um símbolo de negação da vida. Mas a teologia cristã responde que, longe de negar a vida, a cruz é a afirmação plena de que nenhuma dor é inútil quando se torna oferta de amor. O próprio Jesus declarou: “Se o grão de trigo não cair na terra e não morrer, ficará só; mas se morrer, produzirá muito fruto” (Jo 12,24). Para os Padres da Igreja, a cruz é árvore da vida. Santo Irineu já dizia: “A glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a visão de Deus”. São João Crisóstomo pregava: “A cruz é mais luminosa que o sol”. Santo Agostinho comentava: “A paixão de Cristo é suficiente para ser modelo de toda a vida” (In Ioannem, tr. 84).

O texto joanino nos convoca a romper com a visão mercantilizada da fé. A teologia da prosperidade reduz a cruz a um amuleto contra sofrimento, quando na verdade ela denuncia sistemas que geram dor. A teologia do domínio transforma a cruz em bandeira política, quando deveria ser memória da entrega gratuita. O individualismo a reduz a símbolo decorativo no peito, sem compromisso comunitário. A fé-mercadoria vende crucifixos caros, mas silencia diante dos crucificados de hoje: pobres, negros, indígenas, mulheres violentadas, jovens sem futuro, trabalhadores descartados. Mas a Escritura é clara: “Se alguém disser: ‘Eu amo a Deus’, mas odeia o seu irmão, é mentiroso” (1Jo 4,20). O clericalismo também trai a cruz: quando o clero se coloca acima do povo, esquece que o Cristo da cruz lavou os pés dos discípulos (Jo 13,14-15) e se fez servo.

O Papa Francisco denuncia isso na  Evangelii Gaudium, ao afirmar que a Igreja deve ser “casa paterna onde há lugar para todos” (EG 47), e em Fratelli Tutti, quando chama à fraternidade que rompe exclusões: “Ou nos salvamos todos, ou ninguém se salva” (FT 137). O Concílio Vaticano II, em Gaudium et Spes (63–66), recorda que o ser humano só se realiza no dom de si.

A psicologia nos mostra que a cruz toca também nossa dimensão interior. Carregar a cruz, no sentido evangélico, não é buscar sofrimento, mas aprender a lidar com nossas sombras, limites e perdas. É o convite à resiliência, à capacidade de transformar a dor em sentido, o luto em memória fecunda, a perda em solidariedade. O próprio Jesus, ao falar da cruz, convida a seguir com liberdade e entrega: “Quem quiser vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz cada dia e siga-me” (Lc 9,23).

A ciência histórica recorda que a festa surgiu não como devoção intimista, mas como celebração pública da vitória do cristianismo sobre a perseguição. Mas, em tempos de cristandade, o risco foi usar a cruz como símbolo de poder político. Hoje, em tempos de neoliberalismo, a cruz pode ser reduzida a símbolo de mercado religioso. Daí a necessidade de recuperar seu sentido original: não objeto de ostentação, mas sinal do amor de Deus que se esvazia e se dá.

A antropologia nos lembra que povos indígenas e africanos, ao se encontrarem com a cruz, reinterpretaram-na em chave de resistência: a cruz erguida em quilombos e aldeias não era símbolo de colonizador, mas sinal de esperança e força espiritual. A cruz, assim, pode ser ressignificada como símbolo de libertação, como eco da palavra de Jesus: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei” (Mt 11,28).

Por tudo isso, a Festa da Exaltação da Santa Cruz é chamada a ser um ato de memória e profecia. Memória, porque nos recorda a raiz da fé, o amor incondicional de Deus que entrega o Filho. Profecia, porque denuncia todos os sistemas que ainda crucificam e conclama a Igreja a estar junto dos crucificados. Como dizia São Romero da América: “Se me matarem, ressuscitarei no povo”. A cruz é exatamente isso: morte e ressurreição, derrota e vitória, fragilidade e potência do amor.

Celebrar este dia é fazer a pergunta que Nicodemos fez no silêncio da noite: “Como pode ser isso?” (Jo 3,9). E ouvir de Cristo que só o Espírito pode gerar a vida nova. É perguntar-nos se estamos dispostos a deixar que a cruz não seja apenas adorno, mas critério de vida, modo de amar, compromisso com os últimos. É deixar-se iluminar pela palavra de Paulo: “A linguagem da cruz é loucura para os que se perdem, mas para nós que somos salvos é força de Deus” (1Cor 1,18). A cruz exaltada é o espelho em que a Igreja deve se olhar, não para se enfeitar, mas para se converter


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DNonato – Teólogo do Cotidiano


sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 6, 43-49

A passagem de Lucas 6,43-49 é proclamada no sábado da 23ª semana do Tempo Comum, conforme o Leccionário Litúrgico da Igreja Católica. Neste sábado, a Palavra nos chama a refletir sobre a solidez de nossa vida espiritual e a coerência entre fé e prática, lembrando que ouvir a Palavra sem vivê-la é como construir sobre areia: fragilidade diante das tempestades da vida. Jesus nos apresenta duas imagens profundas: a árvore que se conhece pelos frutos e a construção que se mantém ou desmorona conforme o alicerce. O vento que sacode a árvore, a chuva que inunda a terra, o barro que cede sob os pés são imagens das tempestades internas e externas que todos enfrentamos. Como afirma o Salmo 1,3: “Ele é como árvore plantada junto a correntes de águas, que dá fruto no tempo certo, e cuja folha não murcha; tudo o que fizer prosperará.”

Quando Jesus fala da árvore boa que produz frutos bons e da árvore má que produz frutos ruins, ele nos convida a um exame profundo do coração. Lucas 6,45 afirma: “Do coração procedem as más intenções e as boas intenções; é disso que a boca fala.” Mateus 7,16-20 reforça: “Pelos frutos os conhecereis.” Isaías 5,1-7 denuncia o fracasso de uma vinha que deveria produzir frutos de justiça, mas que apenas produz clamor e sangue; Jeremias 17,7-8 contrapõe a confiança em Deus à esterilidade daqueles que se afastam da rocha divina. Provérbios 11,30 lembra que “o fruto do justo é árvore de vida, e quem ganha almas é sábio”, enquanto Salmo 92,13 descreve: “O justo florescerá como a palmeira, crescerá como o cedro do Líbano.” Lucas enfatiza que os frutos se manifestam concretamente: justiça, misericórdia e solidariedade são sinais de uma fé viva, não meras palavras.

Jesus elogia os pobres, denuncia os ricos e satisfeitos, e instrui seus discípulos a amar inimigos, abençoar os que os maldizem, fazer o bem sem esperar retribuição (Lc 6,20-36). A árvore boa transforma relações e denuncia injustiças; a fé encarnada desafia o individualismo, a fé como mercadoria e a teologia da prosperidade que promete sucesso em troca de dízimos. Líderes que vendem bênçãos financeiras podem parecer frutíferos, mas suas raízes apodrecem. A árvore ruim, por sua vez, produz frutos de aparências e envenena a vida alheia, seja pelo clericalismo opressor, seja por fé espetáculo que entretém sem formar, como alerta Amós 5,21-24: “Não quero a vossa festa, nem me agrada o vosso culto; traga-me justiça como água, e retidão como riacho perene.”

A parábola da casa construída sobre a rocha e sobre a areia convida à profundidade. Lucas 6,48 enfatiza que o homem que constrói sobre a rocha cavou fundo e pôs o alicerce sobre a pedra firme. O cavar simboliza esforço, discernimento e compromisso. No Oriente Médio, casas sobre areia eram vulneráveis às cheias; apenas o alicerce profundo resistia. A rocha é Cristo, a Palavra encarnada que sustenta a vida diante das tempestades (Mt 7,24-25; Mc 4,1-20; Is 28,16). A areia representa falsas seguranças: riqueza, prestígio, autoridade clerical, fé como investimento pessoal. Ouvir sem praticar gera fragmentação, angústia e hipocrisia (Tg 1,22-25). Kohlberg observa que a maturidade ética se mede na ação; ouvir sem agir mantém a moral em estado infantil.

A árvore que produz frutos bons e a casa firme sobre a rocha revelam a integração de fé, razão, emoção e ação. Comunidades que constroem sobre areia – luxo ritualístico, poder clerical, fé espetáculo – desmoronam diante de crises. A crítica de Jesus é direta à teologia do domínio e da prosperidade: fé que se transforma em mercadoria promete sucesso, mas não sustenta vidas. Kierkegaard lembra que a fé exige salto existencial; Hannah Arendt alerta que superficialidade conduz à banalidade do mal. Como Mateus 23,23-24 adverte, não se deve negligenciar justiça, misericórdia e fé.

A patrística reforça essa perspectiva: Santo Agostinho ensina que ouvir sem praticar é olhar o reflexo sem entrar na água; São João Crisóstomo destaca a importância da firmeza do fundamento; Orígenes afirma que o que não está enraizado na rocha divina será levado pela maré da vaidade; Gregório de Nissa reforça que a sabedoria divina constrói alicerces invisíveis, mas firmes. A tradição da Igreja confirma que fé autêntica se manifesta na coerência entre palavra, ação e comunidade. O Concílio Vaticano II denuncia a busca de riqueza e poder em detrimento da dignidade humana; Evangelii Gaudium enfatiza que a fé transforma o mundo e convoca à ação concreta; Fratelli Tutti alerta para sociedades construídas sobre egoísmo e exclusão.

A humanidade sempre buscou fundamentos sólidos. A pedra simboliza estabilidade e divindade em diversas culturas. Construir sobre a rocha é gesto existencial: buscar segurança última naquilo que transcende. Pseudorrochas – dinheiro, prestígio, autoridade clerical – conduzem à ruína; Cristo sustenta vidas e gera comunidade. Provérbios 24,3-4 nos lembra: “Com sabedoria se edifica a casa, e com discernimento ela se firma; com conhecimento, os cômodos se enchem de todas as riquezas preciosas e deleitosas.”

O clericalismo é diretamente desafiado: a rocha não é a autoridade humana, mas a Palavra encarnada que exige conversão, serviço e humildade. Verdadeira autoridade é do discípulo que escuta, pratica e constrói com os outros, não do líder que se impõe. A Igreja é casa construída sobre a rocha, não fortaleza sobre areia. A Palavra de Jesus é alicerce que sustenta a vida comunitária; coerência entre fé e prática garante a solidez. O Papa Francisco, já falecido, lembrava que a Igreja deve ser uma comunidade de discípulos missionários, não uma instituição que busca poder ou prestígio. Pergunta-se ao final: 

  • Qual é a raiz da minha vida? 
  • Sobre qual rocha tenho construído meu ser? 

A resposta define não apenas o presente, mas também a resistência às tempestades futuras, reafirmando que a fidelidade à Palavra é a única base que não se abala.



DNonato - Teólogo do Cotidiano 


Um breve olhar sobre Lucas 6,39-42

A passagem de Lucas 6,39-42 proclamada na sexta-feira da 23⁰ semana do tempo comum  nos coloca diante de um dos momentos mais incisivos e desconcertantes do discurso da planície, onde Jesus oferece aos discípulos um ensinamento que toca profundamente a relação entre ética, fé e convivência comunitária. O cenário é marcado pelo anúncio das bem-aventuranças e pelas exigências do amor aos inimigos. Logo em seguida, ele denuncia o perigo da hipocrisia religiosa e da cegueira interior. Não se trata de um detalhe periférico, mas de uma chave hermenêutica para compreender a espiritualidade autêntica que o Evangelho propõe. Ao dizer: “Pode um cego guiar outro cego? Não cairão ambos no buraco?” (Lc 6,39), Jesus está apontando para a gravidade de quem assume o papel de guia sem enxergar a si mesmo. A metáfora é universal: um líder cego, seja religioso, político, cultural ou familiar, arrasta consigo todos aqueles que confiam em sua condução. Não é apenas uma crítica individual, mas uma advertência estrutural, que ecoa ainda hoje em sociedades guiadas por ideologias excludentes, por líderes violentos e por pregadores que negociam a fé como mercadoria.


Essa passagem encontra paralelo em Mateus 7,3-5, dentro do Sermão da Montanha, onde a imagem da trave e do cisco aparece em tom igualmente irônico e incisivo. A hipérbole de Jesus é pedagógica: como alguém que tem uma trave no próprio olho ousa apontar o cisco no olho do irmão? O exagero da linguagem denuncia a desproporção entre a falta de autocrítica e a pressa em julgar o outro. O recurso ao humor e à ironia aqui é profundamente sapiencial: lembra os provérbios que alertam contra a insensatez de quem não vê sua própria fragilidade (cf. Pr 14,12; Pr 26,12). Isaías já falava de “sentinelas cegas” incapazes de discernir (Is 56,10), denunciando líderes religiosos que não enxergavam a opressão do povo. Também o Salmo 19,13 reza: “Quem percebe os próprios erros? Purifica-me dos que me são ocultos!”. Jesus insere-se nessa tradição profética de denunciar uma religião sem autocrítica, que aponta dedos para fora mas não olha para dentro. Do ponto de vista histórico, essa crítica tem um endereço imediato: os fariseus e mestres da Lei que, seguros de sua interpretação rigorosa, julgavam os outros como impuros e indignos. Mas seria um equívoco reduzir a denúncia a um grupo do passado. O texto lucano foi preservado e proclamado porque toca em algo universal e permanente: a tentação de todo ser humano e de toda instituição de se colocar como guia sem enxergar suas próprias limitações. A história da Igreja também conhece momentos em que, em vez de ser luz, foi cega, e em vez de conduzir à vida, arrastou para buracos de intolerância e violência. A Inquisição, as alianças com poderes opressores, o silêncio diante da escravidão ou das ditaduras são exemplos históricos de traves que exigem memória penitencial. Por isso, essa passagem é também convite permanente à conversão eclesial, como o Vaticano II pediu em Gaudium et Spes (n. 43), lembrando que a Igreja deve sempre se renovar e purificar.

A antropologia nos ajuda a perceber como a imagem da trave e do cisco revela o modo como comunidades humanas funcionam. É comum que sociedades busquem culpados externos para não enfrentar seus próprios problemas internos. Essa lógica do bode expiatório, já descrita por René Girard, mostra como grupos projetam no outro — estrangeiro, pobre, diferente, minorias — a responsabilidade por suas próprias crises. Assim, a crítica de Jesus continua atual: somos rápidos em apontar pecadores, “inimigos da fé” ou “desviados”, mas não percebemos as estruturas de injustiça das quais participamos. Isso vale também para a política: líderes populistas e autoritários prometem salvar a nação, mas são incapazes de reconhecer as traves do ódio, da corrupção e da desigualdade que eles mesmos alimentam. E o povo, guiado por esses cegos, acaba caindo em buracos de violência e exclusão.

A psicologia ilumina outro aspecto: a projeção. Aquilo que não suportamos em nós mesmos, frequentemente projetamos nos outros. Quando julgamos com dureza os defeitos alheios, muitas vezes estamos tentando fugir de nossas próprias fragilidades. Jung dizia que o inconsciente projeta no outro as “sombras” que não queremos reconhecer. A advertência de Jesus é, então, profundamente terapêutica: antes de tentar “curar” o outro, precisamos enfrentar nossa própria sombra, olhar para dentro com coragem. O Evangelho aqui é antídoto contra a ilusão de pureza. A verdadeira santidade não nasce da negação dos próprios limites, mas da humildade em reconhecê-los diante de Deus e dos irmãos.

A filosofia também ressoa nesse ponto. Sócrates insistia que “a vida não examinada não vale a pena ser vivida”. O autoconhecimento é condição para qualquer sabedoria. Jesus, com a metáfora da trave, coloca o autoconhecimento como pré-requisito para a correção fraterna. Sem olhar para dentro, toda crítica ao outro se torna hipocrisia. Kant, por sua vez, lembrava que o ser humano tende a julgar com rigor os outros e com benevolência a si mesmo — daí a necessidade de uma razão ética que seja universal e coerente. A incoerência que Jesus denuncia é justamente o oposto: rigor contra o outro, complacência consigo mesmo.

Do ponto de vista teológico, o texto denuncia falsos guias que obscurecem a luz do Evangelho. Hoje, a teologia da prosperidade é um exemplo dessa cegueira: promete riquezas e curas imediatas em nome de Deus, mas fecha os olhos para a cruz, para a partilha e para o clamor dos pobres. Também a teologia do domínio, que instrumentaliza a fé para conquistar poder político, é expressão da mesma cegueira: transforma a religião em ideologia de controle, sem perceber que arrasta multidões para o buraco da intolerância e do ódio. O individualismo religioso, que reduz a fé a experiência privada, sem compromisso comunitário e social, é outra forma de cegar. E quando a fé se torna mercadoria — vendida em shows, plataformas digitais ou barganhas financeiras —, a trave é tão grande que já não se enxerga a Boa Nova de Jesus. O Papa Francisco denuncia isso em Evangelii Gaudium (n. 93-97), quando fala da “mundanidade espiritual” que busca prestígio, poder e sucesso em nome da religião, mas trai o Evangelho.

O clericalismo, denunciado repetidamente pelo mesmo Papa, é também um exemplo contundente da trave nos olhos da Igreja. Quando padres e bispos se colocam como donos da fé, quando falam de cima para baixo sem ouvir o povo, tornam-se cegos guias de cegos. O povo de Deus, pelo batismo, é sujeito da fé. Como dizia Santo Agostinho, “com vocês sou cristão, para vocês sou bispo”. Esse equilíbrio entre serviço e comunhão é perdido quando o ministério se torna privilégio. Orígenes já advertia que a verdadeira autoridade na Igreja não é domínio, mas serviço humilde. São João Crisóstomo, em suas homilias, dizia que nada é mais temível que um pastor que conduz ao erro. Esses ecos patrísticos reforçam que o alerta de Jesus não é retórico, mas vital: vidas estão em jogo quando os guias perdem a visão.

Na liturgia, esse evangelho aparece na sexta-feira da 23ª semana do Tempo Comum, em um contexto no qual a Palavra nos chama a uma espiritualidade de discernimento e autenticidade. Quando escutamos esse texto durante a missa, não o ouvimos como espectadores, mas como comunidade convocada a olhar para dentro. A liturgia é escola de autocrítica e humildade: antes de comungar, reconhecemos nossas traves ao dizer “Senhor, eu não sou digno”. Só quem se reconhece cego pode pedir a luz de Cristo. Só quem admite sua fragilidade pode guiar com compaixão e verdade.

Esse evangelho, proclamado hoje, é profundamente profético. Ele denuncia pregadores digitais que buscam curtidas mais do que conversões, ministros que se escondem em títulos clericais, líderes que vendem promessas fáceis em troca de dízimos, e comunidades que se conformam ao sistema em vez de questioná-lo. É um chamado à conversão pessoal e estrutural. Jesus não pede que deixemos de ajudar o irmão a tirar o cisco, mas que o façamos somente depois de retirar a trave. Ou seja, a correção fraterna é necessária, mas só é autêntica quando nasce da humildade e do amor, e não do julgamento hipócrita. Isso vale para cada discípulo, mas também para a Igreja como corpo, que precisa constantemente purificar seus olhos para enxergar o Evangelho sem distorções. A pergunta final que a Palavra nos deixa é: quais são as traves que hoje impedem a Igreja e cada um de nós de ver? O comodismo diante da miséria? A indiferença diante dos pobres? A sedução pelo poder político? O apego a estruturas clericais? A fé transformada em mercadoria? Reconhecer essas traves é doloroso, mas necessário. Só quem admite sua cegueira pode abrir-se à luz que vem de Cristo. E só quem passa por essa purificação pode ser guia verdadeiro, capaz de conduzir outros não ao buraco, mas à vida plena.

Assim, a metáfora de Jesus, mais que uma advertência moral, é um convite à conversão contínua, à autocrítica permanente, à humildade radical. Sem isso, qualquer guia, seja pessoa ou instituição, é cego guiando cegos. Mas com isso, o discípulo torna-se luz, capaz de enxergar e conduzir na direção do Reino, onde não há traves nem buracos, mas olhos abertos para a verdade e o amor.



DNonato – Teólogo do Cotidiano


quinta-feira, 11 de setembro de 2025

7 de Setembro, Romaria e o Falso Patriotismo

Mais um 7 de setembro atravessa a história recente do Brasil. No Santuário Nacional de Aparecida, os passos de trabalhadores e trabalhadoras se transformaram em oração e denúncia, na 38ª Romaria dos Trabalhadores e Trabalhadoras. Ali, o clamor não era por desfiles ou armas, mas por soberania, justiça social e dignidade. Enquanto isso, em tantas cidades, os desfiles oficiais se misturavam a gritos de rua: de um lado, o 31º Grito dos Excluídos, que pedia o fim da jornada desumana 6x1, a defesa do trabalho, da terra e da vida; do outro, grupos que, sob a máscara de patriotismo, gritavam pela manutenção de privilégios e erguiam bandeiras estrangeiras como se fossem mais importantes do que o verde e amarelo.

É preciso dizer com clareza: ali, em Aparecida, estava o verdadeiro sentido da pátria. Porque pátria não se resume a um pano colorido tremulando ao vento, mas se encarna na vida concreta de quem acorda cedo, enfrenta ônibus lotado, sustenta a casa com salário mínimo e ainda assim encontra forças para lutar. É esse povo que constrói o Brasil, não aqueles que se travestem de patriotas enquanto servem a interesses externos, carregando com orgulho bandeiras de outros países como se fossem extensão de nossa identidade.

A contradição chega a ser gritante. Muitos repetem como mantra: “Minha bandeira jamais será vermelha.” Mas, se tiver vermelho, branco e azul com estrelas, tudo bem. O falso perigo do comunismo se tornou espantalho útil, alimentado por décadas de propaganda ideológica e medo. Desde os tempos da ditadura militar, disciplinas como Educação Moral e Cívica e OSPB tentaram forjar uma noção de patriotismo domesticado: cantar o hino, decorar símbolos, mas nunca aprender a questionar as estruturas sociais que mantinham a desigualdade e a exclusão. O amor à pátria virou cartilha para silenciar e adestrar, não para libertar.

Hoje vemos os frutos desse ensino torto. Uma parte da população acredita que defender soberania, direitos trabalhistas e justiça social é sinal de “ameaça comunista”. Como se pedir pão fosse subversão. Como se a luta pelo SUS, pela escola pública e pela dignidade do trabalho fosse conspirar contra o Brasil. O mais irônico é que os mesmos que gritam contra o “vermelho” da bandeira não enxergam que, ao se ajoelharem diante do vermelho, branco e azul dos Estados Unidos, rasgam a soberania que dizem defender.

A filosofia política já nos ensinou que o verdadeiro patriotismo não é obediência cega ao poder, mas compromisso com a liberdade e a justiça. Rousseau diria que não há pátria onde há miséria. Marx lembraria que a pátria dos trabalhadores é o mundo inteiro, mas que, antes de tudo, é preciso conquistar dignidade em sua própria terra. Paulo Freire mostraria que o amor à pátria nasce na consciência crítica, não na repetição de hinos em salas de aula militarizadas. O patriotismo sem justiça social é apenas máscara para esconder privilégios.

Neste 7 de setembro, vimos duas pátrias se confrontando: uma pátria viva, feita de povo em marcha, trabalhadores e trabalhadoras em romaria, gente que grita porque sabe que silêncio é cumplicidade; e uma pátria falsa, de quem veste verde e amarelo como fantasia, mas se curva diante de bandeiras estrangeiras. A pergunta que ecoa é: 

  • Quem ama mais o Brasil? 
  • Quem denuncia a exploração e exige soberania, ou quem se contenta em ser colônia de interesses alheios?

O profetismo da Romaria e do Grito dos Excluídos revela que a bandeira verdadeira não é de tecido, mas de carne e sangue, de suor e esperança. Ela é tecida nas fábricas, nas roças, nas periferias, nas mãos calejadas que constroem a nação dia após dia. E essa bandeira, sim, pode ser vermelha: não do comunismo temido, mas do sangue derramado por aqueles que nunca deixaram de lutar por justiça.

No fim, o falso patriotismo se desmancha como pó, porque amar o Brasil não é temer o vermelho, mas cuidar do verde das florestas que ainda resistem, do amarelo das riquezas que não podem ser entregues a poucos, do azul do céu que não se negocia, e do branco da paz que só se constrói com justiça. A bandeira não é um pedaço de pano, mas um compromisso vivo. Ela pulsa nas mãos dos que lutam, nas vozes que gritam, nos pés que caminham, nos olhos que ainda sonham.

Sim, a bandeira verdadeira pode ser vermelha — não do fantasma do comunismo inventado para amedrontar corações ingênuos, mas do sangue que escorreu de homens e mulheres que tombaram em greves, marchas, lutas pela terra e pela dignidade. Vermelho como o coração que insiste em bater, mesmo quando a pátria o sufoca.

E o grito dos excluídos ecoa como profecia: não haverá independência enquanto houver fome, não haverá soberania enquanto houver miséria, não haverá pátria enquanto houver trabalhadores tratados como descartáveis. O desfile oficial pode encher as avenidas de fardas e canhões, mas o verdadeiro 7 de setembro está nas ruas, nas romarias, nos clamores que se levantam contra a injustiça. O tempo das cartilhas de OSPB e de Educação Moral e Cívica passou; não precisamos mais repetir hinos de olhos fechados, precisamos abrir os olhos para enxergar o Brasil real, aquele que os livros oficiais tentaram esconder. Não há civismo sem crítica, não há moral sem justiça, não há pátria sem povo.

Por isso, que neste tempo de sombras ressoe a palavra dos profetas: ai dos que confundem idolatria com fé, que trocam soberania por submissão, que preferem bandeiras estrangeiras ao compromisso com o seu próprio povo. Ai dos que dizem amar o Brasil, mas se alimentam da sua miséria.

Mas benditos são os que caminham em romaria, os que gritam nas ruas, os que insistem em sonhar com um país onde a vida seja maior do que a morte, a justiça maior do que o lucro, a esperança maior do que o medo.

Essa é a bandeira que merece ser hasteada. E ela não se rasga, não se vende, não se cala. Porque ela é feita do tecido indestrutível da esperança.

DNonato