Essa passagem encontra paralelo em Mateus 7,3-5, dentro do Sermão da Montanha, onde a imagem da trave e do cisco aparece em tom igualmente irônico e incisivo. A hipérbole de Jesus é pedagógica: como alguém que tem uma trave no próprio olho ousa apontar o cisco no olho do irmão? O exagero da linguagem denuncia a desproporção entre a falta de autocrítica e a pressa em julgar o outro. O recurso ao humor e à ironia aqui é profundamente sapiencial: lembra os provérbios que alertam contra a insensatez de quem não vê sua própria fragilidade (cf. Pr 14,12; Pr 26,12). Isaías já falava de “sentinelas cegas” incapazes de discernir (Is 56,10), denunciando líderes religiosos que não enxergavam a opressão do povo. Também o Salmo 19,13 reza: “Quem percebe os próprios erros? Purifica-me dos que me são ocultos!”. Jesus insere-se nessa tradição profética de denunciar uma religião sem autocrítica, que aponta dedos para fora mas não olha para dentro. Do ponto de vista histórico, essa crítica tem um endereço imediato: os fariseus e mestres da Lei que, seguros de sua interpretação rigorosa, julgavam os outros como impuros e indignos. Mas seria um equívoco reduzir a denúncia a um grupo do passado. O texto lucano foi preservado e proclamado porque toca em algo universal e permanente: a tentação de todo ser humano e de toda instituição de se colocar como guia sem enxergar suas próprias limitações. A história da Igreja também conhece momentos em que, em vez de ser luz, foi cega, e em vez de conduzir à vida, arrastou para buracos de intolerância e violência. A Inquisição, as alianças com poderes opressores, o silêncio diante da escravidão ou das ditaduras são exemplos históricos de traves que exigem memória penitencial. Por isso, essa passagem é também convite permanente à conversão eclesial, como o Vaticano II pediu em Gaudium et Spes (n. 43), lembrando que a Igreja deve sempre se renovar e purificar.
A antropologia nos ajuda a perceber como a imagem da trave e do cisco revela o modo como comunidades humanas funcionam. É comum que sociedades busquem culpados externos para não enfrentar seus próprios problemas internos. Essa lógica do bode expiatório, já descrita por René Girard, mostra como grupos projetam no outro — estrangeiro, pobre, diferente, minorias — a responsabilidade por suas próprias crises. Assim, a crítica de Jesus continua atual: somos rápidos em apontar pecadores, “inimigos da fé” ou “desviados”, mas não percebemos as estruturas de injustiça das quais participamos. Isso vale também para a política: líderes populistas e autoritários prometem salvar a nação, mas são incapazes de reconhecer as traves do ódio, da corrupção e da desigualdade que eles mesmos alimentam. E o povo, guiado por esses cegos, acaba caindo em buracos de violência e exclusão.
A psicologia ilumina outro aspecto: a projeção. Aquilo que não suportamos em nós mesmos, frequentemente projetamos nos outros. Quando julgamos com dureza os defeitos alheios, muitas vezes estamos tentando fugir de nossas próprias fragilidades. Jung dizia que o inconsciente projeta no outro as “sombras” que não queremos reconhecer. A advertência de Jesus é, então, profundamente terapêutica: antes de tentar “curar” o outro, precisamos enfrentar nossa própria sombra, olhar para dentro com coragem. O Evangelho aqui é antídoto contra a ilusão de pureza. A verdadeira santidade não nasce da negação dos próprios limites, mas da humildade em reconhecê-los diante de Deus e dos irmãos.
A filosofia também ressoa nesse ponto. Sócrates insistia que “a vida não examinada não vale a pena ser vivida”. O autoconhecimento é condição para qualquer sabedoria. Jesus, com a metáfora da trave, coloca o autoconhecimento como pré-requisito para a correção fraterna. Sem olhar para dentro, toda crítica ao outro se torna hipocrisia. Kant, por sua vez, lembrava que o ser humano tende a julgar com rigor os outros e com benevolência a si mesmo — daí a necessidade de uma razão ética que seja universal e coerente. A incoerência que Jesus denuncia é justamente o oposto: rigor contra o outro, complacência consigo mesmo.
Do ponto de vista teológico, o texto denuncia falsos guias que obscurecem a luz do Evangelho. Hoje, a teologia da prosperidade é um exemplo dessa cegueira: promete riquezas e curas imediatas em nome de Deus, mas fecha os olhos para a cruz, para a partilha e para o clamor dos pobres. Também a teologia do domínio, que instrumentaliza a fé para conquistar poder político, é expressão da mesma cegueira: transforma a religião em ideologia de controle, sem perceber que arrasta multidões para o buraco da intolerância e do ódio. O individualismo religioso, que reduz a fé a experiência privada, sem compromisso comunitário e social, é outra forma de cegar. E quando a fé se torna mercadoria — vendida em shows, plataformas digitais ou barganhas financeiras —, a trave é tão grande que já não se enxerga a Boa Nova de Jesus. O Papa Francisco denuncia isso em Evangelii Gaudium (n. 93-97), quando fala da “mundanidade espiritual” que busca prestígio, poder e sucesso em nome da religião, mas trai o Evangelho.
O clericalismo, denunciado repetidamente pelo mesmo Papa, é também um exemplo contundente da trave nos olhos da Igreja. Quando padres e bispos se colocam como donos da fé, quando falam de cima para baixo sem ouvir o povo, tornam-se cegos guias de cegos. O povo de Deus, pelo batismo, é sujeito da fé. Como dizia Santo Agostinho, “com vocês sou cristão, para vocês sou bispo”. Esse equilíbrio entre serviço e comunhão é perdido quando o ministério se torna privilégio. Orígenes já advertia que a verdadeira autoridade na Igreja não é domínio, mas serviço humilde. São João Crisóstomo, em suas homilias, dizia que nada é mais temível que um pastor que conduz ao erro. Esses ecos patrísticos reforçam que o alerta de Jesus não é retórico, mas vital: vidas estão em jogo quando os guias perdem a visão.
Na liturgia, esse evangelho aparece na sexta-feira da 23ª semana do Tempo Comum, em um contexto no qual a Palavra nos chama a uma espiritualidade de discernimento e autenticidade. Quando escutamos esse texto durante a missa, não o ouvimos como espectadores, mas como comunidade convocada a olhar para dentro. A liturgia é escola de autocrítica e humildade: antes de comungar, reconhecemos nossas traves ao dizer “Senhor, eu não sou digno”. Só quem se reconhece cego pode pedir a luz de Cristo. Só quem admite sua fragilidade pode guiar com compaixão e verdade.
Esse evangelho, proclamado hoje, é profundamente profético. Ele denuncia pregadores digitais que buscam curtidas mais do que conversões, ministros que se escondem em títulos clericais, líderes que vendem promessas fáceis em troca de dízimos, e comunidades que se conformam ao sistema em vez de questioná-lo. É um chamado à conversão pessoal e estrutural. Jesus não pede que deixemos de ajudar o irmão a tirar o cisco, mas que o façamos somente depois de retirar a trave. Ou seja, a correção fraterna é necessária, mas só é autêntica quando nasce da humildade e do amor, e não do julgamento hipócrita. Isso vale para cada discípulo, mas também para a Igreja como corpo, que precisa constantemente purificar seus olhos para enxergar o Evangelho sem distorções. A pergunta final que a Palavra nos deixa é: quais são as traves que hoje impedem a Igreja e cada um de nós de ver? O comodismo diante da miséria? A indiferença diante dos pobres? A sedução pelo poder político? O apego a estruturas clericais? A fé transformada em mercadoria? Reconhecer essas traves é doloroso, mas necessário. Só quem admite sua cegueira pode abrir-se à luz que vem de Cristo. E só quem passa por essa purificação pode ser guia verdadeiro, capaz de conduzir outros não ao buraco, mas à vida plena.
Assim, a metáfora de Jesus, mais que uma advertência moral, é um convite à conversão contínua, à autocrítica permanente, à humildade radical. Sem isso, qualquer guia, seja pessoa ou instituição, é cego guiando cegos. Mas com isso, o discípulo torna-se luz, capaz de enxergar e conduzir na direção do Reino, onde não há traves nem buracos, mas olhos abertos para a verdade e o amor.
DNonato – Teólogo do Cotidiano