A ausência que mata?
No dia 20 de junho de 2025, a jovem brasileira Juliana Marins caiu na cratera do vulcão Rinjani, na Indonésia. Ela sobreviveu por quase quatro dias, ferida, sozinha, esperando por ajuda. Lutou porque queria viver. Queria viver com intensidade, amava as montanhas, a natureza e a liberdade. Sua última imagem mostra o rosto de alguém que ainda acreditava — mesmo em meio ao abismo.
A ajuda, no entanto, não chegou a tempo. As decisões foram lentas. A presença falhou. Juliana morreu não porque desistiu da vida, mas porque foi deixada sozinha. Sua morte expõe uma realidade mais ampla: a ausência como prática social naturalizada. A partir dela, precisamos refletir sobre a banalização do abandono em nossa cultura.
Vivemos numa sociedade em que o abandono foi normalizado. Netos não visitam mais seus avós. Pais e mães não têm tempo para seus filhos. Filhos adultos ignoram os pais em nome da autonomia. Há lares emocionalmente desconectados, marcados por silêncios prolongados e afastamentos justificados por agendas ou ressentimentos. Esse distanciamento causa o colapso de vínculos afetivos fundamentais, gerando o que podemos chamar de “morte social”: a sensação de que se está vivo, mas esquecido, ignorado, descartado.
O abandono, portanto, não se restringe ao âmbito privado. Ele é estrutural, cultural e espiritual. Em muitos contextos, quem sofre passa a ser visto como incômodo. Pessoas que expressam dor ou tentam restaurar vínculos são frequentemente taxadas de exageradas. A recusa em dialogar, a desvalorização do cuidado mútuo e o desprezo pelas pequenas presenças revelam uma sociedade doente pela indiferença.
As Escrituras não silenciam diante disso. Os profetas denunciam o abandono como infidelidade à aliança. Jeremias acusa o povo de abandonar a fonte de água viva (Jr 2,13). Isaías mostra um povo que honra com os lábios, mas vive longe de Deus no coração (Is 29,13). Oseias revela o sofrimento divino com a pergunta: “Como posso te abandonar, ó Efraim?” (Os 11,8). Jesus, por sua vez, chorou sobre Jerusalém porque ela recusou o cuidado e a escuta (Lc 13,34).
Na sabedoria dos povos indígenas, a ideia de abandono é inconcebível. Os Guarani falam do teko porã, o bem viver coletivo, onde cada pessoa é parte do equilíbrio de todos. Os Yanomami ensinam que escutar é um ato espiritual e que a dor de um membro afeta o corpo inteiro da comunidade. Ailton Krenak, pensador indígena contemporâneo, alerta que a humanidade está adoecida por não conseguir mais sentir junto com o outro.
Na tradição greco-romana, o abandono é frequentemente retratado como tragédia. Antígona, Édipo, Medeia — todos são figuras atravessadas por rompimentos e pela incapacidade da cidade de sustentar os vínculos fundamentais. A pietas romana, que exigia fidelidade aos pais, aos deuses e à pátria, mostrava que abandonar era também perder a própria humanidade.
A teologia profética nos alerta que o abandono não é apenas negligência: é idolatria. É preferir o conforto à compaixão, o individualismo ao vínculo, a produtividade ao cuidado. Quando os pequenos são ignorados, o projeto de Deus é traído. Quando o sofrimento é normalizado, a presença divina é banida dos relacionamentos.
Diante disso, precisamos reconhecer que há momentos em que encerrar vínculos é um ato de maturidade. Buscar continuamente quem não quer ser encontrado, insistir onde há apenas indiferença, é tornar-se cúmplice do próprio esvaziamento. Chega o tempo de parar de explicar o óbvio: que o amor exige reciprocidade, e a presença, comprometimento.
Assim como Oxóssi que se retira para proteger o sagrado, como Iansã que recolhe o vento quando a palavra é violada, e como Jesus que se cala diante do desprezo, também nós aprendemos a nos afastar. Não por mágoa, mas por dignidade. Não por desamor, mas por sanidade. Não por derrota, mas por fé.
Quem quiser estar, que esteja de verdade. Quem quiser amar, que apareça com integridade. Quem continua ausente, que aceite perder o lugar que recusou ocupar.
Porque já enterramos demais. E há vivos que continuam respirando, mas vivem sepultados na memória dos que um dia os amaram com verdade, entrega e coragem.
DNonato – Teólogo do Cotidiano
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