A Ovelha Perdida e o Coração que Ama Até o Fim
Na liturgia do Sagrado Coração de Jesus, contemplamos o mistério de um amor que se dá por inteiro, que se consome em fidelidade, e que insiste em amar mesmo quando não é amado (cf. Os 11,1-4; Jr 31,3). Neste dia, a Palavra nos coloca diante de uma das imagens mais conhecidas e paradoxais do Evangelho: o Pastor que deixa noventa e nove ovelhas no deserto para ir em busca da única que se perdeu (Lc 15,3-7). O que parece, aos olhos da lógica racional, uma atitude imprudente ou até negligente, é, na verdade, a mais pura revelação da radicalidade do amor de Deus.
Este texto faz parte de um capítulo profundamente unitário no evangelho de Lucas. Todo o capítulo 15 — com as parábolas da ovelha perdida, da moeda perdida (vv. 8-10) e do filho pródigo (vv. 11-32) proclamado no 4⁰ Domingo da Quaresma e retorna no 24⁰ domingo do Tempo Comum inserido de forma fluida na proclamação de Lucas 15, 1-32 — constitui uma resposta de Jesus às murmurações dos fariseus e escribas, que o criticavam por acolher pecadores e comer com eles (Lc 15,1-2). Não estamos diante de três parábolas soltas, mas de uma tríade pedagógica que revela, em crescendo, o escândalo da misericórdia divina e a centralidade do “buscar e encontrar”. A estrutura é repetida: algo se perde, alguém busca, algo é encontrado, e há festa.
"Qual de vós que, tendo cem ovelhas e perdendo uma..."
Jesus inicia a parábola com uma pergunta que desestabiliza o senso comum. Quem, de fato, deixaria noventa e nove para buscar uma? Nenhum pastor sensato faria isso. E é justamente aí que se revela a diferença entre Deus e o homem. Como diz Isaías, “meus pensamentos não são os vossos pensamentos” (Is 55,8). O que para nós parece irracional, para Deus é sinal de justiça e fidelidade. A justiça de Deus não se mede por quantidade ou mérito, mas por um compromisso visceral com cada vida, especialmente com a que está à margem.
O texto carrega ecos do Antigo Testamento. O próprio Deus, no livro de Ezequiel, se apresenta como pastor que busca a ovelha perdida: “Procurarei a que estiver perdida, reconduzirei a que se desgarrar, enfaixarei a ferida, darei força à fraca” (Ez 34,16). Jesus não apenas narra essa parábola: Ele encarna esse Deus-pastor, que se lança em missão até as periferias humanas (cf. Mt 9,36; Mc 6,34). Não é por acaso que o Bom Pastor da parábola carrega nos ombros a ovelha reencontrada — gesto de ternura, de responsabilidade, de dignidade restaurada (cf. Is 40,11).
Esse reencontro é celebrado com alegria, porque “há mais alegria no céu por um só pecador que se converte” (Lc 15,7). A festa no céu contrasta com a frieza dos religiosos que murmuravam contra Jesus por acolher os pecadores (Lc 15,2). A parábola, portanto, não é apenas doutrina; é denúncia. Ela põe em xeque uma religião que contabiliza fiéis, mas não conhece seus nomes; que exige pureza moral, mas não tem compaixão; que se envergonha dos fracos e bajula os fortes. Jesus, ao contrário, não se envergonhava de se deixar tocar por leprosos, comer com publicanos, dialogar com samaritanas, curar em dia de sábado. Ele é o Coração que sangra por amar (cf. Jo 19,34).
Nesse sentido, a ovelha que se perde pode ser também aquela que não suportou mais a hipocrisia do redil. Talvez não tenha se desviado por rebeldia, mas por fome de sentido. Talvez tenha sido empurrada para fora por uma comunidade que, ao invés de pastorear, policiava. Quantas vezes a ovelha se afasta porque a Igreja falhou em ser refúgio? Quantas vezes nossas estruturas eclesiais — marcadas por clericalismo, legalismo, autorreferência — produziram mais afastamento que comunhão? Como advertia o Papa Francisco, de santa memória, em sua exortação Evangelii Gaudium: “Prefiro uma Igreja acidentada por sair às ruas do que uma Igreja doente por se fechar em si mesma” (EG, 49). Francisco recuperava com força a intuição de que a fé cristã é caminho, dinamismo, travessia. Como a mulher que acende a lâmpada ou o pastor que atravessa o deserto, também a comunidade eclesial é chamada a sair, a iluminar, a buscar com perseverança — mesmo aquilo que outros julgariam perdido para sempre.
A pastoral do coração não calcula perdas, mas busca o que falta. A missão do Cristo, revelada no próprio evangelho de Lucas, é “buscar e salvar o que estava perdido” (Lc 19,10). O mesmo verbo usado para descrever a missão de Jesus reaparece aqui na ação do pastor: ele vai atrás da ovelha. A fé cristã não é estática. É movimento, saída, peregrinação. O amor do Sagrado Coração é dinâmico, inquieto, sempre em busca.
Essa busca envolve riscos. O deserto é perigoso. As noventa e nove ficam desprotegidas. Mas o que está em jogo não é uma organização pastoral eficiente; é o coração do Evangelho. Jesus jamais fundou um modelo de controle, mas de compaixão. Ele mesmo diz que o pastor verdadeiro não foge diante do lobo, mas entrega a vida (Jo 10,11-15). E o apóstolo Paulo interpreta esse gesto como loucura do amor: “Cristo morreu por nós quando ainda éramos pecadores” (Rm 5,8). Ou seja, antes mesmo do arrependimento, o amor já nos alcançou. Nesse movimento de busca e encontro, revela-se também a dimensão eucarística da parábola. A festa ao reencontrar a ovelha é um banquete de reconciliação. Lembra o pai do filho pródigo que manda matar o novilho gordo para celebrar o retorno (Lc 15,23). Na Eucaristia, a Igreja revive essa alegria do reencontro, mas ela só é autêntica quando todos têm lugar à mesa. Não podemos comungar o Corpo de Cristo e, ao mesmo tempo, excluir os corpos concretos dos irmãos e irmãs feridos. Não há comunhão sem inclusão.
O drama da religião sem coração, do rito sem vida, é a cegueira diante da ovelha ferida. A extrema-direita religiosa, ao instrumentalizar o cristianismo para justificar políticas de exclusão, violência e supremacia, trai o Evangelho do Pastor que se perde por amor. A verdadeira tradição eclesial está ao lado dos pobres, dos marginalizados, dos que choram (cf. Mt 5,3-12). A ovelha perdida, para muitos desses movimentos, é escandalosa. Mas é ela que provoca a festa no céu e talvez seja necessário ir além: quem disse que a ovelha perdida está fora? E se o redil não for sinal de comunhão, mas de conformismo? E se o que chamamos de “segurança” for, na verdade, o aprisionamento de consciências? O profeta Isaías já dizia: “todos nós andávamos desgarrados como ovelhas, cada um se desviava pelo seu caminho” (Is 53,6). A ovelha perdida, portanto, não é exceção: é espelho. Todos somos, de algum modo, buscados por um amor que se recusa a desistir de nós.
A crítica filosófica pode nos iluminar aqui: Friedrich Nietzsche, embora crítico da religião institucional, intuía que muitas vezes é o doente quem enxerga melhor a doença da sociedade. A ovelha "perdida", nesse sentido, pode ser a mais lúcida. Há uma denúncia implícita contra uma espiritualidade massificada, onde a segurança de estar “dentro” faz com que ninguém mais questione se o caminho é realmente justo. A ovelha perdida pode ser o artista que se afastou porque não havia espaço para sua sensibilidade na rigidez litúrgica; pode ser a mulher excluída por ser mãe solteira; pode ser o jovem que se levantou contra o racismo estrutural da comunidade de fé; pode ser o pobre que se cansou de ouvir sermões sobre obediência enquanto era oprimido.
Nesse sentido, ela não apenas precisa ser buscada — ela nos desafia. O retorno da ovelha perdida não é apenas salvação pessoal, é uma provocação comunitária. Ela carrega consigo o clamor de uma Igreja mais inclusiva, mais humana, mais aberta ao Evangelho como libertação. E é nesse reencontro — com suas feridas, perguntas e esperanças — que o Coração de Jesus se regozija e nos convida a fazer festa.
O Sagrado Coração de Jesus, transpassado e vivo, continua a pulsar por cada um que se distancia. Ele não pergunta o motivo da perda, mas se lança na busca. E o faz com pressa, como a mulher que varre a casa para encontrar a moeda (Lc 15,8-10), como o pai que corre ao encontro do filho (Lc 15,20). Esse Deus corre, busca, carrega, celebra.
Que esta parábola — breve, mas abismal — nos desinstale. Que nos liberte da ilusão de estarmos já salvos só porque permanecemos no “rebanho”. Que nos converta a um cristianismo do coração, onde a prioridade seja sempre o que está fora, ferido, perdido. E que a Igreja, à imagem do seu Senhor, tenha a coragem de deixar os noventa e nove e sair pelas estradas, pelos becos, pelos desertos... até encontrar a que falta. Porque é ela que faz falta ao Coração de Deus e talvez essa saída não seja apenas para buscar, mas para aprender. Talvez o reencontro com a ovelha nos mostre o que esquecemos no redil: o frescor do Evangelho, a dor do povo, o clamor por justiça, o grito de quem nunca foi ouvido. A festa no céu, afinal, começa quando o amor vence o medo, e a misericórdia desfaz os muros da indiferença.
Celebrar o Coração de Jesus é comprometer-se com sua compaixão que não calcula, com sua ternura que não se escandaliza, com sua fidelidade que não desiste. Se nos deixarmos encontrar por esse amor — e se formos capazes de buscá-lo nos caminhos esquecidos — então a parábola deixa de ser apenas palavra e se faz carne em nós e a Igreja se tornará, enfim, o que é chamada a ser: não um curral fechado de justos, mas casa aberta onde até a ovelha mais ferida encontre abrigo, dignidade e pão.
DNonato – Teólogo do Cotidiano
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