quinta-feira, 26 de junho de 2025

A Questão do sentimento e o Respeito por si mesmo - XXXI


Amor é verbo, não pronome: entre a ilusão da fala e a verdade do gesto

"Amor não é alguém dizendo ‘eu te amo’. Amor é tudo o que a pessoa faz por você. Amor é ação." Essa frase, simples e direta, desmonta muita da encenação sentimental que chamamos amor. Há quem diga "eu te amo" com a boca, mas se ausenta na hora do cuidado, da escuta, do cansaço, da partilha da dor. O amor não mora na garganta — ele se abriga nos gestos. Na canção popular, ouvimos promessas eternas: “te amarei até o fim dos meus dias”, “você é tudo pra mim”. Palavras que encantam, mas que, por vezes, traem a realidade. Porque amar é mais que sentir — é decidir permanecer. É saber partir quando o outro precisa ir. É sofrer a ausência e, ainda assim, desejar o bem.

São Paulo, em sua carta aos Coríntios, já denunciava o amor vazio de conteúdo: “Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, sou como bronze que soa ou címbalo que retine.” E o apóstolo vai além: o amor é paciente, é benigno, não busca os próprios interesses. O verdadeiro amor não aprisiona, não sufoca, não exige a posse do outro para se sentir seguro. O amor, quando amadurece, não grita, não acusa, não se impõe. Como o pai da parábola do filho pródigo, ele permite que o outro parta. E sofre — não de raiva, mas de silêncio. Ele permanece de pé, à porta, esperando não o retorno do controle, mas o reencontro da liberdade amada. Esse é o amor que deixa ir... e ainda assim permanece inteiro.

Na psicologia, aprendemos que a paixão — esse arrebatamento inicial — é marcada por projeções, idealizações, desejos de fusão. Mas o amor maduro é diferente: ele reconhece o outro como outro. E, por isso mesmo, aprende a deixar ir. Amar, às vezes, é ver o outro partir... e ainda assim amar. É respeitar a decisão, mesmo que ela nos despedace. É orar pelo bem do outro, mesmo quando nosso nome já não mora em sua vida. Erich Fromm dizia: “O amor é uma decisão, um julgamento, uma promessa.” Mas também é uma ferida aberta — não por desamor, mas por excesso de presença silenciosa. A psicologia do luto nos mostra que há mortes simbólicas que doem tanto quanto as biológicas: o adeus não dito, a ausência que não se explica, o carinho que virou silêncio. Há lutos sem túmulo, dores sem nome. Amar, nesses casos, é resistir à amargura. É não deixar que a dor nos transforme em quem nunca fomos.

Quem ama de verdade, sofre quando perde — mas não fere para manter. A ausência dói, mas não destrói o que foi vivido com verdade. Como dizia Rubem Alves, “o amor é quando o tempo se transforma em memória e ninguém consegue apagar.” O amor real sobrevive até à distância, porque não é só presença física — é raiz que sustenta, mesmo invisível. Há amores que permanecem mesmo quando tudo mudou. Há presenças que continuam mesmo na ausência. E há distâncias que, em vez de romper, revelam a profundidade do vínculo. Amar é isso também: sangrar sem amargura. Permitir que o outro cresça, mesmo que o crescimento o leve para longe de nós. Não aprisionar nem condenar. Como Maria, mãe de Jesus, guardar tudo no coração — inclusive a dor.

Nas tradições indígenas e africanas, amar é cuidar. É partilhar o alimento, vigiar o sono do outro, respeitar o tempo do silêncio. O amor não se diz — se vive. E esse amor, feito de gesto e presença, talvez seja mais cristão que muitos sermões eloquentes e vazios.

Vivemos tempos em que tudo é efêmero. Amar com verdade é quase um escândalo. É insistir na permanência num mundo de liquidez. É ser raiz em tempos de vento. É lutar contra a espiritualidade performática que reduz o amor a música alta e promessas baratas. O amor, como Cristo mostrou, não se grita no templo — se encarna no gesto escondido, no perdão sem plateia, na dor sem revanche.

Na cruz, Jesus amou sem exigir resposta. Perdoou sem se defender. Ali, o amor mostrou sua face mais pura: a de quem permanece, mesmo sendo rejeitado. Quem ama de verdade sabe que às vezes o maior milagre é não deixar o coração endurecer. Talvez, no fim, o amor seja isso: a capacidade de seguir amando mesmo quando o outro já não está. Como Deus faz conosco desde o Éden. Amar é isso: não apagar o outro da alma, mesmo que ele já tenha ido embora da vida.

Porque o amor, quando é real, não morre — ele se crucifica em silêncio, ressuscita em gestos e ascende toda vez que escolhe permanecer... mesmo quando tudo em volta parece ter partido.

Que eu ame mesmo quando perco.

Que eu cuide mesmo à distância.

Que eu deixe ir, sem deixar de amar.

Que minha ausência seja presença que abençoa.

E que o amor, mesmo ferido, continue sendo

carne, sangue e gesto em mim.

 

DNonato – Teólogo do Cotidiano, Amar é também saber partir, e ainda assim permanecer no mistério da entrega.

Leia também. Não precisa de uma sequência  para essa leitura, escolha ou faça a sua 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pelo seu comentário.