Na vida, há amores que se constroem sobre promessas vistosas. Firmam contratos emocionais, calculam reciprocidade como se amar fosse um comércio delicado. Vivemos tempos em que o afeto foi colonizado pelo mercado: tudo precisa dar retorno, tudo precisa performar. Até o amor, em muitos casos, foi reduzido a desempenho emocional e capital de validação social.
Mas também existem outros tipos de amor. Mais raros, mais silenciosos, quase subversivos em tempos de afeto condicionado.
Amores que não exigem, apenas precisam. Que não têm pressa, não cobram retorno, mas se sustentam na simples alegria de estar com o outro. Amores que se bastam na presença partilhada — seja na rua, na chuva, na fazenda, ou numa casinha de sapê, como canta a banda Kid Abelha. Esse amor não nasce do ideal, mas da realidade. Ele brota nas rachaduras da vida comum, na partilha da escassez, nos silêncios prolongados, nos dias em que nada acontece e, ainda assim, a companhia basta. Ele não se apoia no que se tem, mas no que se é. E no que se escolhe ser, todos os dias.
Às vezes, esse amor é marcado por uma assimetria dolorosa. Como canta a mesma canção: “Não estou disposto, a esquecer seu rosto de vez e acho que é tão normal. Gostar de quem não gosta de mim...”
Amar assim é aceitar a vulnerabilidade de não ter controle, de não possuir o outro, de não exigir garantias. É amar como o Deus de Oséias (cf. Os 2,16-25), que, mesmo traído, não desiste da aliança. Um Deus que transforma o deserto em lugar de encontro e a dor em nova esperança. É amar como quem planta sabendo que talvez nunca colha. Como quem ama sabendo que talvez nunca seja correspondido — mas ama mesmo assim.
Esse amor atravessa o tempo e a dor, resiste ao cansaço e à ausência, e sobrevive mesmo quando tudo parece perdido. Ele não se adapta à lógica do consumo, nem à estética da perfeição. Num tempo em que o amor virou performance nas redes e os afetos se medem por curtidas e respostas rápidas, esse amor desacelera. Desafia o algoritmo, resiste à descartabilidade, permanece sem espetáculo.
Amar assim é ser herege do sistema, profeta da permanência, louco por continuar acreditando que estar com alguém — em silêncio, sem brilho, sem garantias — ainda é a forma mais humana de viver. Esse amor humaniza. Devolve sentido, restitui inteireza. Constrói pontes onde antes havia muros.
E quando o outro se vai — pela morte, pela distância, pelo tempo — esse amor não morre. Ele muda de forma. Torna-se memória, oração, espaço interno. Torna-se casa.
Porque o amor verdadeiro não termina com a ausência. Ele é semente que permanece, mesmo enterrada, à espera da ressurreição.
Como no Cântico dos Cânticos, onde o amor é busca, ausência e presença ao mesmo tempo: “Procurei aquele a quem minha alma ama...
Encontrei-o, e não o deixei mais” (Ct 3,1-4)
Esse amor é místico e concreto, carnal e espiritual. É amor que faz do corpo templo e do outro, morada. O Evangelho de João usa o verbo μένω (menô) para falar desse tipo de amor: “Permanecei no meu amor” (Jo 15,9). Esse “permanecer” é mais do que ficar. É habitar. Tornar-se casa um do outro. É ternura que resiste à perda, que permanece mesmo quando o leito se esvazia.
Mas há um risco silencioso que espreita: o de se tornar uma casa vazia. Um corpo que ainda se move, mas que não abriga mais ninguém. Quando trancamos os sentimentos, quando tentamos matar o amor para evitar a dor, algo em nós morre junto. Ficamos de pé, mas não inteiros. Tornamo-nos estrutura sem alma, voz sem calor, abraço sem morada.
Como canta outra canção: “Naquela casa ninguém mais mora...”
E essa casa, tantas vezes, é o corpo de quem desistiu de sentir. De quem apagou memórias por medo da saudade. De quem preferiu o vazio ao risco de lembrar. Mas há rostos que não se esquecem. Não por fraqueza, mas por reverência. Porque o amor que passou por nós com verdade deixa marcas que não queremos apagar. E quando a música insiste:
“Jogue suas mãos para o céu Agradeça se acaso tiverAlguém que você gostaria que estivesse sempre com você. Na rua, na chuva, na fazenda Ou numa casinha de sapê...”
Ela não fala apenas de romance. Fala de um desejo profundo: o de ter onde morar. Ter um rosto que seja casa. Uma presença que seja abrigo, mesmo quando a ausência toma o lugar do corpo.
O amor que lembra é também o amor que permanece. Aquele que, mesmo quando tudo se desfaz, insiste em sussurrar: “eu ainda sou casa pra você.” Não casa de tijolos, mas de memória. Não morada fixa, mas presença que nos visita no cheiro do café, na dobra da música, no silêncio que pulsa no meio da madrugada.
Se você tem alguém cuja presença fez o mundo parecer mais inteiro, agradeça. Mesmo que esteja longe. Mesmo que só reste a lembrança. Mesmo que só haja saudade. Porque há ausências que não são abandono. São permanências disfarçadas. Sementes enterradas que continuam vivas, à espera da primavera.
Amar assim é contrariar o tempo e zombar das lógicas do descarte. É transformar o ordinário em altar, a falta em fé, a ausência em altar de permanência. É seguir acreditando que ainda vale a pena abrir espaço, ainda que doa. Porque a dor, quando atravessada com verdade, revela a profundidade do que foi vivido. O amor verdadeiro não termina, ele se transforma. Continua morando na gente, como uma oração que nunca se encerra. Como um perfume que o tempo não apaga. Como um fogo que não consome, mas aquece em silêncio.
Tal amor não exige. Só precisa. Precisa do outro — do seu jeito, da sua risada, da sua lembrança. Não para possuir, mas para habitar. No fim, é isso que salva: amar sem negociar. Continuar amando, mesmo no escuro, mesmo sozinho, mesmo na saudade.
Até que o próprio amor se torne abrigo. Até que o próprio amor se torne casa.
Não precisa de uma sequência para essa leitura, escolha ou faça a sua
- A Questão do Sentimento e o Respeito a si mesmo.
- A Questão do Sentimento e Respeito a si mesmo II
- A Questão de sentimento e o Respeito por si mesmo III
- A Questão do Sentimento, Respeito por si mesmo IV
- Questão do sentimento, Respeito a si mesmo V
- Questão do sentimento, respeito a si mesmo VI
- Questão do sentimento, respeito por si mesmo VII
- Questão do Sentimento, respeito si mesmo VIII
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- A Questão do sentimento e o Respeito por si mesmo - XXV
- A questão do Sentimento e o respeito por si mesmo XXVI
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- A Questão do sentimento e o respeito a si mesmo XXVIII
- A Questão do Sentimento e Respeito a si mesmo XXIX
- A Questão do sentimento e o Respeito por si mesmo - XXX
- Questão do sentimento e o Respeito por si mesmo - XXXI
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