sexta-feira, 2 de maio de 2025

A Questão do sentimento e o Respeito por si mesmo - XXVII

Uma história que começou como Gênesis e terminou em Apocalipse . No princípio, era o vazio. E então, ela.

Não chegou com alarde. Era apenas um instante, um cruzar de olhares no fundo de um restaurante comum. Mas havia algo de extraordinário naquela presença silenciosa. Ela tocava o copo como quem toca uma promessa. Ria como quem carrega o segredo do mundo entre os dentes. Um perfume — quente, quase antigo — atravessou a mesa e se fez memória. Meu corpo respondeu antes que minha consciência entendesse. E assim começou o encantamento.

Passei a chamá-la de "menina". Porque era isso que ela parecia ser: uma mistura perigosa de juventude sem freios e sensualidade crua. Menina no corpo, mulher no gesto. Uma criatura entre mundos, entre idades, entre escolhas. E eu, homem feito, me vi tomado por uma paixão que misturava desejo e redenção.

Ela dançava ao som de Romance com Safadeza como se a música fosse um convite ao pecado. Seus quadris sabiam segredos ancestrais. Seu corpo falava uma língua mais antiga que qualquer palavra. E eu, que buscava abrigo, encontrei furacão. Ela não era mulher de morada. Era nômade de paixões breves. Beija-flor. Pousava por instantes, bebia o néctar da minha entrega e partia antes que eu dissesse seu nome com verdade.  Mas nome ela tinha — mesmo que eu nunca dissesse. Como Cazuza, eu protegi seu nome por amor. Codinome: beija-flor.

No começo, acreditei que poderia contê-la. Que talvez, comigo, ela quisesse pousar. Que minha firmeza a faria ficar. Que o meu amor teria a força de uma âncora. Mas a menina não queria ser mulher. E ser mulher exige entrega. Exige parar de fugir. Exige crescer. E ela se recusava. Vestia-se de menina para não assumir as dores de ser adulta. Para nunca ter que escolher. Para continuar desejada sem nunca desejar de volta. Ainda assim, me entreguei. Me ofereci. Corpo, afeto, presença. Me deitei com ela como quem reza. Seu toque era um sacramento profano. Sua pele, um altar. Fazíamos amor como se o mundo estivesse prestes a acabar, como se a carne fosse o único caminho até a graça. Ela sabia os sete pecados com o corpo inteiro. E eu comungava de cada um. Ajoelhado. Submisso. Devoto.

Ela vinha em rajadas. Nunca por i

nteiro. Me dava pedaços. Mas pedaços quentes, intensos, com gosto de pele e urgência. Pedaços que queimavam. E eu aceitava. Porque era o que tinha. Porque achava que amor também era isso: resistência. Mas não era. Era abstinência. Era dependência. Era uma espera crônica por alguém que nunca vinha inteira.

Comecei a confundir pureza com liberdade. Porque havia algo de puro nela, sim — mas era uma pureza perversa. Uma inocência sem compromisso, como Eva antes da queda, mas com a ousadia de quem já provou do fruto e gostou. Ela era tentação e castigo. Era serpente e jardim. Me oferecia paraísos momentâneos, mas me deixava sozinho com o exílio. E eu, Adão contemporâneo, aceitava ser expulso sempre que ela partia.

Havia nela um erotismo que não cabia em molduras. Era a dança, o olhar de quem domina, o sorriso de quem sabe que pode destruir e, mesmo assim, é adorada. E eu, entre o prazer e a perda, me via cada vez mais distante de mim. O corpo dela era um mapa onde eu me perdia, cada curva uma promessa e uma cilada. Era ruína em forma de deleite. Era gozo e abandono.

Aos poucos, os dias foram se fechando em silêncios. As mensagens vistas e não respondidas. O frio na cama onde o calor dela já esteve. A saudade como febre. Como faca. E, no meio disso tudo, o refrão de Só Hoje, do Jota Quest, embalava minhas manhãs: “Só hoje eu quero que o dia termine bem...”. Mas não terminava. Terminava com a ausência dela. E com a ausência de mim mesmo. Demorei, mas entendi. Ela não queria amor. Queria admiração. Queria ser o centro sem nunca precisar girar em torno de nada. A menina que se recusa a crescer se torna tirana. E quem ama uma tirana se apaga. Eu me apagava. Um pouco por vez. A cada silêncio, a cada retorno vazio, a cada vez que eu dizia "sim" quando queria gritar "chega".

Veio o deserto. A travessia. O jejum de toque, de gosto, de memória. Como quem quebra um vício. Como quem se desintoxica. No meio do vazio, reencontrei o som da minha própria voz. Redescobri o prazer de um dia que termina bem. Sem ela. Sem a espera. Sem o peso da ausência.

Ela ainda me atravessa. Em sonhos. Em perfumes esquecidos. Em risadas parecidas. Mas hoje, não me destrói. Hoje, eu olho pra trás sem saudade do que vivi, mas com orgulho do que sobrevivi.

A menina segue como lembrança. Um mito. Um furacão. Parte de quem eu fui. Mas não dita mais meu presente. Não ocupa mais meu futuro. Porque eu cresci. Mesmo com todo o vazio da ausência dela. Cresci porque precisei. Cresci porque quis.

Hoje, o dia termina bem. Porque escolhi me amar. Porque deixei de tentar caber em vontades que nunca foram minhas. Porque entendi que amar não é se perder.

E porque, finalmente, quem escreve sou eu.

Mas confesso: em algumas madrugadas, quando o silêncio pesa e corpo ainda guarda a memória, a lembrança daquela menina.  Infelizmente  a reminiscências da sua risada, seu cheiro, sua boca que mentia prazer com tanta verdade volta. como um fantasma.  E, por instantes, ela ainda me tortura. Porque parte de mim ainda se pergunta como teria sido, se ela tivesse escolhido crescer.


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A Questão do sentimento e o respeito a si mesmo XXIV


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