O contexto do texto é profundamente social e espiritual. Jesus fala a discípulos e fariseus num tempo em que a riqueza era vista como sinal de bênção divina (cf. Dt 28,1-14), e a pobreza, como castigo (cf. Jó 4,7-8). Sua palavra, portanto, subverte a lógica religiosa dominante, confrontando o sistema econômico e teológico que legitimava a desigualdade. O termo “dinheiro injusto” (mamona tes adikías) é revelador: Jesus não condena o dinheiro em si, mas a estrutura de injustiça que o cerca. A palavra adikías remete à “injustiça estrutural”, o sistema econômico que oprime e exclui. Quando Ele diz “fazei amigos com o dinheiro injusto” (Lc 16,9), está propondo um gesto profético: usar o produto de um sistema desigual para gerar comunhão, libertação e solidariedade. É o mesmo movimento dos profetas, que denunciaram os que “compram o pobre por um par de sandálias” (Am 8,6) e os que “ajuntam casa a casa, campo a campo, até que não reste mais lugar” (Is 5,8). Assim, Jesus se inscreve na linhagem profética que vê a conversão não apenas como mudança interior, mas como transformação das relações sociais. O Evangelho não é um conselho moral; é uma revolução simbólica e espiritual. A sabedoria de Deus sempre desmascara o poder que oprime (cf. Sb 2,10-20), e a verdadeira religião se mede na justiça praticada (cf. Mq 6,8).
Fazer amigos com o dinheiro injusto não é comprar afeto, mas antecipar o Reino. É um gesto escatológico, porque anuncia já na história a comunhão que nos espera nas “moradas eternas” (Lc 16,9b). A caridade aqui é o primeiro ensaio da eternidade. A fidelidade nas pequenas coisas torna-se, então, critério para as grandes: “Quem é fiel no pouco, também é fiel no muito” (Lc 16,10). O “pouco” é o terreno onde se testa o coração, onde o amor se prova (cf. Mt 25,21). O dinheiro, nesse sentido, é um “sacramento profano” que revela a verdade da alma: quem não sabe doar, não sabe amar (cf. 1Jo 3,17). É o mesmo princípio que aparece no julgamento final de Mateus 25, quando o Rei julga os homens não por doutrinas, mas pelos gestos concretos, dar de comer, de beber, acolher, visitar (cf. Mt 25,35-36). As pequenas fidelidades são a matériaprima do Reino, como as duas moedas da viúva pobre (cf. Mc 12,41-44), que se tornaram o símbolo da entrega total.
Jesus, ao concluir com “não podeis servir a dois senhores” (Lc 16,13), utiliza uma linguagem de totalidade. O verbo douleuein (servir) indica não uma obediência parcial, mas a submissão total do coração. Deus e Mamom não são apenas opções éticas, mas sistemas de adoração. Servir a Deus é entrar na lógica do dom; servir ao dinheiro é entrar na lógica da apropriação. E aqui se desmascara o ídolo moderno: o dinheiro é o simulacro de Deus, uma paródia da transcendência. Ele promete o que só Deus pode dar — segurança, poder, reconhecimento —, mas entrega apenas vazio (cf. Jr 2,13). Por isso Jesus o chama de “senhor”, porque o dinheiro escraviza (cf. Jo 8,34; Rm 6,16). A teologia da prosperidade, tão presente em nosso tempo, é a expressão religiosa dessa idolatria: ela transforma Deus em instrumento do sucesso, a fé em investimento e a bênção em mercadoria (cf. At 8,18-20). É a heresia que confunde o Reino de Deus com o lucro terreno, a cruz com o contrato. Em nome de uma falsa promessa de abundância, legitima-se a ganância e consagra-se o egoísmo. A teologia do domínio, que tenta justificar o poder político e econômico como “sinal da bênção”, é sua irmã espiritual: ambas adoram o mesmo ídolo, apenas com liturgias diferentes.
A crítica de Jesus é dura porque vai ao núcleo da idolatria humana: o coração dividido. Aquele que tenta servir a dois senhores se despedaça interiormente, vive em permanente tensão entre o ser e o ter (cf. Mt 6,24). A psicologia profunda reconhece esse conflito. Viktor Frankl, ao falar do vazio existencial, observou que o homem moderno, privado de sentido, busca preencher o abismo interior com bens materiais. O consumo se torna um anestésico espiritual. Erich Fromm, em sua obra Ter ou Ser?, já havia percebido que a sociedade contemporânea se estruturou sobre o verbo “ter”: ter sucesso, ter dinheiro, ter prestígio. Jesus, porém, propõe a lógica do ser: ser livre, ser fiel, ser dom. A fidelidade, nesse contexto, não é apenas disciplina moral, mas modo de existir. Ser fiel no pouco é resistir ao fascínio do acúmulo, é viver com o essencial (cf. Mt 6,19-21; Lc 12,33-34).
O capitalismo moderno, por sua vez, criou uma nova religião: a do mercado. Suas catedrais são os shoppings, suas liturgias são as transações, seus sacerdotes são os economistas e seus demônios, a pobreza e a lentidão. Ele promete liberdade, mas entrega servidão; oferece abundância, mas multiplica o vazio. É a anti-beatitude: “Ai de vós, ricos, porque já tendes vossa consolação” (Lc 6,24). O capitalismo moderno repete Babel: constrói torres de lucro e ergue muros de indiferença (cf. Gn 11,4), esquecendo-se que toda edificação sem Deus desaba (cf. Sl 127,1).
O capitalismo, em sua forma atual, tornou-se uma liturgia blasfema do egoísmo. O “deus mercado” ocupa os altares que antes pertenciam à vida, exige sacrifícios humanos e dita as orações da sociedade de consumo. Suas promessas são falsas e suas bênçãos custam caro: crianças famintas (cf. Lm 4,4), trabalhadores exaustos (cf. Ecl 5,10-12), terras devastadas e corações adoecidos pela indiferença (cf. Rm 8,22). Ele transforma o corpo humano em engrenagem, o tempo em mercadoria e o pobre em estatística. A idolatria do mercado é a nova forma de politeísmo: adoramos índices, lucros e ações como se fossem deuses imortais (cf. Sl 115,4-8). Mas o Evangelho desmascara esse culto e proclama que “não se pode servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6,24). O “deus mercado” não tem compaixão, apenas cálculo; não conhece amor, apenas lucro. É o bezerro de ouro reerguido com cartões de crédito e algoritmos (cf. Ex 32,1-6), sustentado por templos de vidro e liturgias de consumo. Contra essa idolatria global, o cristão é chamado a ser profeta: denunciar a mentira do lucro infinito e anunciar a verdade do dom, onde cada pessoa vale mais do que qualquer balanço financeiro (cf. Mt 10,31; Lc 12,7).
Jesus não foi socialista no sentido ideológico, mas o seu Evangelho é incompatível com o capitalismo que diviniza o lucro e transforma pessoas em coisas. Ele não propôs a luta de classes, mas a superação das classes pela fraternidade (cf. Mt 23,8; Gl 3,28). Quando anunciou: “Bem-aventurados vós, os pobres” (Lc 6,20), não canonizou a miséria, mas revelou a inversão do Reino, onde o último é o primeiro (cf. Mt 20,16) e o que nada tem é o verdadeiro herdeiro de Deus (cf. Tg 2,5). Ele não pregou a estatização dos bens, mas a comunhão dos corações (cf. At 4,32-35). O que Jesus condena não é a propriedade, mas a idolatria da posse (cf. Mc 10,23-25). Quando disse ao jovem rico: “Vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres” (Mt 19,21), não impôs um programa econômico, mas desvelou a verdade espiritual de quem é escravizado pelo ter. A multiplicação dos pães (Jo 6,1-15) é o maior manifesto contra o capitalismo: não há mercado, há partilha; não há lucro, há mesa; não há competição, há comunhão. O Evangelho é o contrário do acúmulo: é a ética da sobra repartida (cf. 2Cor 8,13-15), da justiça encarnada e da economia do amor. Jesus não fundou um sistema político, mas instaurou o Reino — e este Reino é a antítese de qualquer lógica que exclua, explore ou acumule às custas da vida alheia. É por isso que a cruz é o maior protesto contra o mercado: nela, o amor se entrega sem cálculo, sem juros, sem retorno (cf. Fl 2,6-8; Hb 9,26).
Os fariseus, “amigos do dinheiro”, riam de Jesus porque não suportavam ver seu próprio reflexo na parábola. A hipocrisia, aqui, é a máscara da autodefesa. O riso é a zombaria de quem teme a verdade. Jesus os desmascara: “O que é estimado entre os homens é abominação diante de Deus” (Lc 16,15). Essa frase resume todo o escândalo do Evangelho. O que o mundo glorifica — poder, aparência, prestígio — Deus rejeita (cf. 1Sm 16,7). E o que o mundo despreza — pobreza, simplicidade, gratuidade — Deus exalta (cf. Lc 1,52-53). A Igreja, quando se alia ao poder, trai essa inversão. O clericalismo, denunciado pela Evangelii Gaudium (n. 93-97), é o rosto religioso dessa idolatria: o desejo de prestígio, o fechamento em si mesma, a tentação de dominar em vez de servir (cf. Mc 10,42-45). Contra essa tentação, o Papa Francisco recorda que “o dinheiro deve servir, não governar” (Fratelli Tutti, n. 168). Servir a Deus é, portanto, servir ao outro, ao pobre, ao pequeno (cf. Mt 25,40; Lc 22,27). A autoridade evangélica é a que se abaixa para lavar os pés, não a que se eleva para receber honras (cf. Jo 13,14-15)
São Basílio Magno perguntava: “O pão que guardas pertence ao faminto; a roupa que conservas no armário pertence ao nu; o dinheiro que escondes pertence ao necessitado.” Para ele, a avareza não é simples falha moral, mas roubo (cf. Ef 4,28). Santo Ambrósio reforça: “A terra foi feita para todos, e não apenas para os ricos.” A patrística ecoa o próprio Jesus: o uso justo dos bens é critério de salvação (cf. Mt 25,31-46; Lc 12,48). Santo Agostinho via na figura de Mamom o símbolo da escravidão interior: “Servir ao dinheiro é tornar-se servo de um servo.” E São João Crisóstomo adverte: “Quem acumula riquezas enquanto outros morrem de fome é pior que ladrão.” Essa visão patrística, longe de um moralismo ingênuo, é uma teologia da partilha e da comunhão.
A hermenêutica deste texto exige, portanto, uma leitura integral: o que está em jogo não é o dinheiro em si, mas a conversão do coração e a estrutura das relações humanas. A fidelidade no pequeno é o caminho do Reino. Ela começa nas escolhas cotidianas: na forma como tratamos o outro (cf. Lc 10,25-37), no modo como usamos o tempo (cf. Ef 5,15-16), no cuidado com a criação (cf. Gn 2,15), na honestidade com o que administramos (cf. 1Pd 4,10). A Gaudium et Spes (n. 63–66) lembra que “o desenvolvimento econômico deve estar a serviço do homem, e não o homem a serviço da economia.” A crítica de Jesus antecipa essa visão: o dinheiro é instrumento, não fim; servo, não senhor. A verdadeira liberdade nasce quando o ser humano reconhece que tudo é dom e que o amor é o único bem que não empobrece ao ser dividido (cf. 1Cor 13,8).
Servir a Deus é escolher a luz num mundo de sombras (cf. Jo 8,12), é caminhar na contramão das vitrines e das bolsas de valores (cf. Mt 7,13-14), é crer que a verdadeira riqueza é a comunhão (cf. At 2,44-47). O discípulo fiel é aquele que transforma o que passa em eternidade. Que cada gesto de partilha seja uma centelha do Reino, e cada recusa ao ídolo uma semente de liberdade. Porque, no fim, só o amor permanece — e só ele é digno de ser servido (cf. 1Cor 13,13).
DNonato – Teólogo do Cotidiano


Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado pelo seu comentário.