A primeira leitura, de Ezequiel, é uma das mais poéticas e proféticas visões do Antigo Testamento: do limiar do Templo, brota uma água que desce para o oriente, fertilizando a terra árida e curando o Mar Morto. Essa torrente, que cresce a cada passo, torna-se rio impetuoso de vida. O profeta contempla o milagre da restauração: “onde o rio chega, tudo reviverá.” (Ez 47,9). Essa imagem atravessa toda a Bíblia e reencontra sua plenitude no lado aberto de Cristo na cruz, de onde jorram sangue e água (Jo 19,34). A exegese patrística sempre viu aí o duplo sacramento do Batismo e da Eucaristia — os dois fluxos de vida que geram e sustentam a Igreja. A hermenêutica espiritual desse texto nos convida a compreender que a água que flui do Templo é a graça que jorra do coração transpassado do Filho, o novo rio do Paraíso que fecunda os desertos da humanidade. A torrente que tudo purifica é o Espírito Santo, que renova o mundo cansado de idolatrias e nos devolve a capacidade de florescer.
O Salmo 45, que responde à primeira leitura, é um hino à presença de Deus no meio de seu povo. “O Senhor dos Exércitos está conosco, nossa fortaleza é o Deus de Jacó.” Mesmo quando as nações se perturbam e os montes vacilam, há um rio cujas correntes alegram a cidade de Deus. Esse rio é o mesmo que Ezequiel viu, agora transformado em canção. É o Espírito que habita no coração da comunidade, fazendo da fé um espaço de alegria e não de medo. O salmista reconhece que a verdadeira segurança não está nas muralhas nem nas armas, mas na presença de Deus que habita. Essa presença é discreta e poderosa, silenciosa e fecunda: não destrói, mas cria; não domina, mas sustenta.
Na segunda leitura, São Paulo, em 1Coríntios 3, retoma essa simbologia e a torna eclesial e pessoal: “Vós sois o edifício de Deus.” A comunidade é o verdadeiro Templo onde Deus mora, não construído por mãos humanas, mas erguido sobre o único alicerce, que é Cristo. A teologia paulina nos convida a abandonar a tentação de imaginar Deus confinado em espaços sagrados e a reconhecer que o Espírito habita na comunhão, na solidariedade e na justiça. O Apóstolo adverte: “Se alguém destruir o templo de Deus, Deus o destruirá.” Não se trata de ameaça, mas de revelação: quem destrói a comunhão, destrói o lugar onde Deus se manifesta. A santidade não é fuga, é construção ética e amorosa de uma morada comum.
Chegamos então ao Evangelho de João 2,13-22, texto que também aparece no 3º Domingo da Quaresma (até o versículo 25), e que nos apresenta um Cristo tomado por um zelo ardente, o Filho que purifica a casa do Pai. João situa esse episódio logo no início de seu Evangelho, em contraste com os sinóticos que o colocam nos últimos dias da vida de Jesus (Mt 21,12-13; Mc 11,15-17; Lc 19,45-48). Essa diferença não é erro histórico, mas chave teológica. João quer revelar que desde o início, Jesus vem instaurar um novo culto, um novo templo, uma nova economia da graça. O gesto inaugural do Messias é um gesto de purificação e ruptura: Ele entra no Templo, faz um chicote de cordas, derruba as mesas dos cambistas e proclama: “Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio.” (Jo 2,16). O Evangelho joanino é construído sobre sinais, e este é o primeiro grande sinal profético: a substituição do Templo material pelo corpo de Cristo, o novo espaço de encontro entre Deus e a humanidade.
O contexto histórico acentua a gravidade da cena. O Templo de Jerusalém, reconstruído por Herodes, era o centro da vida religiosa e econômica do judaísmo. O átrio dos gentios, destinado à oração de todas as nações, havia se transformado em um mercado, onde o lucro eclipsava a piedade. Jesus, ao intervir, não condena o comércio em si, mas a perversão espiritual que transforma o sagrado em instrumento de lucro. Seu chicote é símbolo do discernimento que separa o essencial do supérfluo. A patrística via nisso o gesto do Espírito que purifica a alma. Orígenes escreveu que “o chicote de cordas é a palavra de Deus que expulsa da alma os vícios” (Homiliae in Joannem). Santo Agostinho via o mesmo gesto como a ação da Igreja, chamada a corrigir os seus, purificando-se constantemente.
O zelo de Jesus não é explosão de raiva, mas expressão madura de amor ordenado. O amor verdadeiro não tolera a profanação daquilo que é sagrado. O gesto pedagógico de Jesus é convite à consciência desperta: Ele revela o quanto o ser humano pode degradar o divino quando transforma a fé em moeda e o mistério em espetáculo. A sociologia da religião reconhece nesse episódio uma crítica ao sistema religioso que se torna autorreferencial e opressor, substituindo a relação com Deus por uma relação com o poder. A antropologia simbólica vê no Templo o espelho da alma humana. Na tradição hebraica, o Templo representava o cosmos e o próprio corpo: o átrio, o lugar santo e o santo dos santos correspondiam ao corpo, à alma e ao espírito. Quando Jesus purifica o Templo, Ele purifica o ser humano integralmente.
Quando os judeus pedem um sinal, Jesus responde: “Destruí este Templo, e em três dias o levantarei”. Eles pensam no edifício de pedra, mas João esclarece: “Ele falava do Templo do seu corpo.” A palavra “corpo” aqui é chave hermenêutica: o corpo de Cristo é o novo espaço de encontro entre o céu e a terra. Sua ressurreição é a reconstrução do Templo eterno. O Verbo que “habitou entre nós” (Jo 1,14) usa o verbo grego skēnóō — “armar a tenda” — evocando a presença divina que acompanhava Israel no deserto. Agora essa tenda é o corpo do Filho, e pela fé, o nosso próprio ser se torna morada divina.
Assim, o Templo físico se transforma em símbolo do corpo eclesial e humano. São Paulo retoma essa teologia quando afirma: “Não sabeis que sois templo de Deus e que o Espírito habita em vós?” (1Cor 3,16). A purificação do Templo é, portanto, metáfora da purificação do coração. Santo Agostinho interpretava o episódio dizendo: “Cada um tem em seu coração um templo de Deus, se nele viver piedosamente” (Enarrationes in Psalmos). Jesus, com o chicote do Espírito, expulsa de nós os vendedores da alma: o egoísmo, a avareza, o orgulho e a indiferença.
O gesto de Jesus é também uma denúncia profética que atravessa os séculos. Em nossos dias, a teologia da prosperidade, a teologia do domínio e o individualismo espiritual são novas formas de mercantilização do sagrado. Transformam Deus em produto, a fé em espetáculo e o altar em vitrine. É o mesmo mercado instalado no átrio do Templo. Jesus continua a derrubar mesas: mesas de ambição, de ideologia e de vaidade espiritual. Como diz o Papa Francisco, “a Igreja não é uma alfândega, é a casa paterna onde há lugar para todos com as suas vidas cansadas” (Evangelii Gaudium, 47). Purificar o Templo hoje significa libertar a Igreja das lógicas mundanas que obscurecem o rosto misericordioso do Cristo.
A teologia do domínio, travestida de religiosidade, busca poder e prestígio, mas esquece que o Filho de Deus se fez servo. O clericalismo, por sua vez, é a idolatria da função, a tentação de transformar o altar em trono e o ministério em privilégio. Santo Agostinho já advertia: “Para vós sou bispo, convosco sou cristão. O primeiro é ofício, o segundo é graça.” (Sermo 340). A Basílica de São João de Latrão, sede do bispo de Roma, é o lembrete permanente de que a autoridade na Igreja é forma de serviço, não de domínio; é expressão do amor, não do poder.
A filosofia nos ajuda a compreender a profundidade desse gesto. Martin Buber ensinava que o homem só é plenamente humano quando vive na relação “Eu–Tu”, não “Eu–Isso”. Quando o sagrado se torna “coisa”, ele perde o rosto e se transforma em ídolo. O chicote de Jesus é o protesto divino contra a coisificação da fé, contra a religião reduzida a mercadoria ou instrumento de dominação.
Do ponto de vista eclesiológico, a Basílica de Latrão é mais do que pedra consagrada: é sacramento visível da comunhão universal. A Lumen Gentium (n. 1) ensina que “a Igreja é em Cristo como que um sacramento, isto é, sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano”. Celebrar a dedicação dessa basílica é recordar que toda Igreja, e cada coração cristão, deve ser reflexo dessa comunhão. O Concílio Vaticano II, na Unitatis Redintegratio (n. 6), adverte: “A Igreja, enquanto instituição humana e terrena, necessita sempre de reforma.” A purificação do Templo, então, é o apelo constante à conversão institucional e pessoal.
A Gaudium et Spes (n. 63–66) denuncia a idolatria do lucro e do progresso quando afastam o homem de sua vocação espiritual. A Fratelli Tutti (n. 276) chama todos a construir um “novo templo de fraternidade”, onde o amor social substitua o egoísmo e a lógica do descarte. Diante dessas palavras, compreendemos que o gesto de Jesus é mais atual do que nunca: Ele não destrói templos, mas desmascara ídolos; não condena o sagrado, mas restitui-lhe sua verdade.
Hoje, o Cristo do chicote não entra mais nos pátios de Jerusalém, mas nas consciências que transformam a fé em status e nas igrejas que se rendem à estética do sucesso. Ele purifica não para destruir, mas para libertar. Sua ira é o outro nome do amor que não suporta a mentira.
Que cada celebração nesta Basílica, e em cada igreja doméstica do mundo, reacenda o zelo de Jesus em nossos corações. Que nossas comunidades sejam casas de encontro e não de poder; lugares de acolhida e não de ostentação; templos de gratuidade e não de comércio. Que cada um de nós, templo vivo do Espírito, se deixe reconstruir pela Palavra e pela graça. E que, como o rio de Ezequiel, a vida nova que brota do lado de Cristo fecunde toda a criação.
DNonato – Teólogo do Cotidiano


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