quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Um outro olhar sobre Lucas 17,11–19

Vivemos tão preocupados com a nossa realização neste mundo que, quando somos agraciados por Deus, reagimos com indiferença. O Evangelho de Lucas 17,11–19, proclamado no 28º Domingo do Tempo Comum e também na Quarta-feira da 32ª Semana, nos recorda que a gratidão é o caminho da fé madura. Dos dez leprosos curados, apenas um — o estrangeiro — voltou para agradecer. Muitos buscam a Deus enquanto precisam de um favor, mas poucos permanecem após o dom recebido. A fé que não se torna louvor, reconhecimento e compromisso é fé incompleta.

Hoje, Jesus continua em sua viagem para Jerusalém. Ao passar pela região entre a Galileia e a Samaria, rompe fronteiras religiosas e culturais. Lucas, atento à dimensão universal da missão, mostra que o Reino não se limita a territórios ou tradições. Em Mateus 10,5, Jesus havia proibido seus discípulos de entrar em território samaritano; aqui, Ele mesmo o atravessa, mostrando que o amor de Deus supera as barreiras humanas. Lucas é o único evangelista que narra a cura dos dez leprosos, revelando o rosto de um Deus que se deixa encontrar nas margens.

A lepra, ou hanseníase, no tempo de Jesus, era vista como maldição divina, castigo, pecado. Quem sofria dela era excluído da vida social e religiosa, conforme a Lei do Levítico (13,45): “O leproso andará com roupas rasgadas, cabelos desgrenhados e gritará: impuro, impuro!”. Ser leproso significava ser condenado à solidão. Essa exclusão, porém, não vinha de Deus, mas de uma leitura moralista e ritualista da fé. No Segundo Livro dos Reis (5,14–17), Naamã, o general estrangeiro curado por Eliseu, reconhece a ação de Deus e volta para agradecer. É como se Lucas fizesse eco a essa antiga história: a verdadeira cura não é apenas física, mas espiritual, e passa pelo reconhecimento do dom.

O texto nos convida a perceber que o primeiro movimento da fé é o clamor, e o segundo é a gratidão. Os dez gritam de longe: “Jesus, Mestre, tem compaixão de nós!”. É um grito humano, coletivo, que nasce da dor e do desejo de reinserção. Jesus não toca neles — apenas diz: “Ide e mostrai-vos aos sacerdotes”. E, enquanto iam, ficaram curados. A obediência à palavra antecede a experiência da graça. Mas apenas um deles “cai em si” e volta.

Aqui se revela um detalhe teológico e simbólico de enorme profundidade: os nove que seguiram caminho eram judeus e, portanto, podiam apresentar-se aos sacerdotes e ser reintegrados no templo, recuperando sua posição religiosa e social. Já o samaritano, sendo considerado herege e impuro pelos judeus, jamais seria acolhido naquele mesmo templo. Ele não tinha a quem se mostrar. Sua única possibilidade de adoração era voltar-se para Jesus. E é justamente isso que ele faz: prostra-se diante do Mestre, reconhecendo n’Ele o verdadeiro Templo, a morada da presença divina. Enquanto os nove voltam à instituição, o estrangeiro volta à Fonte. O gesto revela que o culto autêntico não depende de espaços sagrados, mas de corações agradecidos. O que não podia entrar no templo torna-se ele mesmo o novo templo da fé.

A antropologia que emerge aqui é profundamente relacional. O ser humano se define não pelo que possui, mas por como responde ao dom. Os nove seguem seu caminho — imagem da humanidade indiferente, que busca o benefício e não o encontro. O samaritano volta, rompe o ciclo da indiferença e se reconhece agraciado. Ele representa o estrangeiro, o marginalizado, o “outro” que descobre no rosto de Jesus o rosto de Deusa hermenêutica lucana, a viagem de Jesus a Jerusalém é símbolo de sua Páscoa: é a travessia da humanidade rumo à libertação. Cada encontro no caminho é antecipação da Ressurreição. Quando Jesus diz ao samaritano: “Levanta-te e vai! Tua fé te salvou!”, Ele usa o verbo grego anástēthi, o mesmo empregado para indicar a ressurreição. A fé agradecida é já uma forma de ressurgir.

Os Padres da Igreja viam nesta passagem uma chave cristológica. São João Crisóstomo dizia, em suas homilias sobre Lucas, que os dez leprosos simbolizam toda a humanidade: nove representam Israel, e o décimo, o mundo pagão que, ao reconhecer Cristo, encontra a salvação. Já Orígenes afirmava, em seu Comentário sobre Lucas, que a distância dos leprosos é a condição da alma ferida, que clama de longe até que o Logos — o Verbo — venha purificá-la e conduzi-la ao verdadeiro culto. A gratidão do samaritano é, portanto, o início de uma nova liturgia, não centrada no templo de pedra, mas na comunhão viva entre Deus e o ser humano restaurado.

Essa leitura patrística dialoga com o sentido teológico mais profundo do texto: a crítica à religião que busca o milagre, mas esquece o milagreiro. A teologia da prosperidade, ao transformar a fé em contrato de recompensas, repete o erro dos nove. Não é o dom que salva, mas o encontro com o Doador. Quando a religião é usada como meio de ascensão social ou sucesso material, ela perde sua essência evangélica. Jesus não promete riqueza, mas comunhão; não oferece isenção da dor, mas sentido para o sofriment

Da mesma forma, a teologia do domínio tenta sequestrar o Evangelho para legitimar o poder. Quando líderes religiosos transformam o nome de Deus em bandeira política, reduzindo a fé a slogan partidário, o Evangelho é traído. O silêncio cúmplice de tantos clérigos e leigos diante da injustiça e da idolatria do mercado revela a lepra moral de nossa época. Como lembrava Martin Luther King Jr., o que mais preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons. O Papa Francisco, na Evangelii Gaudium (n. 183), reforça: “Uma fé autêntica — que nunca é cômoda nem individualista — sempre implica um profundo desejo de mudar o O clericalismo é outra forma de lepra espiritual. É o fechamento dos que se julgam puros, a arrogância de quem transforma o serviço em poder. O Papa Francisco alerta que o clericalismo é uma tentação constante dos ministros que veem o ministério como privilégio, e não como serviço. O samaritano, leigo e estrangeiro, torna-se o verdadeiro adorador, mostrando que a salvação não é monopólio dos que ocupam funções religiosas, mas dom gratuito oferecido a quem ama.

A filosofia ajuda-nos a ler esse encontro como experiência do reconhecimento. Emmanuel Lévinas ensina que o rosto do outro é a primeira revelação de Deus: o samaritano, ao voltar, reconhece o rosto que o reconheceu primeiro. Martin Buber diria que o “Eu” torna-se pleno apenas no encontro com o “Tu”. A fé é sempre relacional, nunca autorreferencial. Aquele que agradece entra na lógica do dom; o que se fecha na autopreservação espiritual torna-se idólatra de si mesmo.

A sociologia nos convida a perceber que Jesus não cura apenas indivíduos, mas denuncia o sistema que produz leprosos. A lepra é também metáfora das estruturas que marginalizam. Em uma sociedade neoliberal, os novos leprosos são os descartáveis: os pobres, os corpos negros, os migrantes, as mulheres violentadas, os povos indígenas esquecidos. A Igreja que se cala diante dessa lepra moderna torna-se cúmplice do sistema que crucifica. A Gaudium et Spes recorda que as alegrias e esperanças dos homens, sobretudo dos pobres, são também as alegrias e esperanças dos discípulos de Cristo.

O episódio dos dez leprosos é, assim, uma parábola política e espiritual. Jesus age nas fronteiras, fora dos centros de poder. O samaritano, figura do excluído, é o protagonista da fé. Sua gratidão pública é um ato de resistência: ele rompe o silêncio imposto aos impuros e proclama que a graça é universal. Em tempos em que se tenta transformar Deus em instrumento ideológico, o gesto desse homem é profundamente subversivo. Ele nos lembra que o Espírito sopra onde quer e que a verdadeira fé se mede não pela pureza do rito, mas pela pureza do coração.

A psicologia também ilumina esse caminho. Os dez representam a massa que busca milagres; o samaritano é o sujeito desperto. À luz de Carl Jung, poderíamos dizer que o retorno dele é o momento da individuação espiritual — a passagem da fé coletiva e inconsciente para a consciência pessoal do dom. A gratidão é consciência desperta da graça. O ingrato permanece na sombra; o agradecido ascende à luz.

No fim, o “Levanta-te e vai!” é mais do que despedida: é envio. Aquele que voltou é agora enviado a viver a fé em movimento, como testemunha do Reino. Jesus não apenas cura corpos, mas restaura consciências, e nos ensina que a salvação é comunhão e missão.

Diante disso, cada um de nós é convidado a se perguntar: sou dos nove que seguem sem olhar para trás ou sou do único que volta para agradecer? A verdadeira fé não termina no milagre, mas começa na gratidão. E quem volta, quem reconhece o dom, torna-se ele mesmo um sinal da graça para o mundo.

A liturgia nos recorda, ano após ano, que ser curado é menos importante do que ser convertido, e que o agradecimento é o primeiro passo da vida nova. A fé que não se expressa em louvor, justiça e solidariedade é estéril. E a Igreja que não volta às periferias, como o samaritano, perde o rosto do Cristo que caminha com os impuros.

“Levanta-te e vai!” — esta palavra é dirigida hoje à comunidade que ainda vive entre fronteiras, marcada por divisões, ideologias e medos. É o convite a renascer, a sair da paralisia do medo, a ser grato, livre e servidor. Só quem reconhece que foi amado é capaz de amar. E só quem volta, de coração agradecido, descobre que o caminho para Jerusalém continua, agora dentro de si.

DNonato – Teólogo do Cotidiano


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