domingo, 9 de novembro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 17,1-6

O Evangelho de Lucas 17,1-6  proclamado  na segunda-feira da  32ª semana do Tempo Comum apresenta uma lição condensada e exigente sobre o discipulado, situada no caminho de Jesus rumo a Jerusalém (Lc 9,51–19,27), quando Ele prepara os discípulos para a experiência da fé que se realiza na história concreta, entre tropeços, perdão e pequenas sementes de esperança e convidando-nos a refletir sobre a coerência da vida cristã em meio a desafios cotidianos. É um texto breve, mas de densidade teológica e existencial incomensurável, capaz de confrontar estruturas, costumes e corações endurecidos. Ele

Jesus começa com uma advertência cortante: “É inevitável que aconteçam escândalos; mas ai daquele por quem eles acontecem!” (Lc 17,1). O termo grego skándalon indica uma pedra de tropeço, uma armadilha que faz cair o pequeno, o frágil, o iniciante na fé. Este escândalo não se refere ao pecado trivial ou ao erro inevitável do ser humano, mas ao efeito devastador da incoerência, da hipocrisia e do abuso de autoridade. Na psicologia profunda, entendemos o escândalo como projeção do próprio ego ferido: aquele que não aceita sua sombra acaba ferindo os outros para ocultar suas fraquezas. Na sociedade contemporânea, o escândalo se reproduz nas redes sociais, nos julgamentos instantâneos e na cultura do espetáculo. Jesus denuncia, sobretudo, o escândalo produzido por líderes que usam a fé para acumular poder, dinheiro ou prestígio — a perversão da fé que se transforma em mercadoria, em instrumento de domínio.

A advertência de Jesus é também social e política: o escândalo destrói a confiança dos pequenos, dos marginalizados, daqueles que mais necessitam do cuidado da comunidade. No Antigo Testamento, encontramos ecos dessa preocupação em Ezequiel 33,11: “Não quero a morte do pecador, mas que ele se converta e viva.” E em Levítico 19,17-18, a correção fraterna é vinculada à obrigação moral de não odiar nem buscar vingança, mas amar o próximo como a si mesmo. José, diante de seus irmãos (Gn 45,4-8), exemplifica que o perdão liberta tanto quem erra quanto quem é ferido. A tradição bíblica mostra que Deus não deseja o castigo, mas a conversão e a vida plena.

Segue-se, então, o chamado à misericórdia: “Se teu irmão pecar, repreende-o; e se ele se converter, perdoa-lhe. E se pecar sete vezes no dia contra ti e sete vezes vier dizer: ‘Estou arrependido’, tu o perdoarás.” (Lc 17,3-4). O perdão, do grego aphiēmi, é libertação. Não é esquecimento, mas suspensão do desejo de punição; é abertura para reconstrução e reparação. O número sete simboliza plenitude: o perdão não se mede, não se contabiliza; é contínuo e integral. Mateus 18,21-22 reforça essa lógica, ampliando a resposta de Jesus: “Setenta vezes sete” — a plenitude do perdão, que transborda qualquer cálculo humano. A fé, como mostrará o final do texto, é a fonte do perdão: apenas quem crê verdadeiramente em Deus misericordioso consegue agir com misericórdia real.

Os discípulos, confrontados com essa radicalidade, pedem: “Aumenta a nossa fé!” (Lc 17,5). Jesus responde com uma redefinição da fé: “Se tivésseis fé como um grão de mostarda, diríeis a esta amoreira: ‘Arranca-te daqui e planta-te no mar’, e ela vos obedeceria.” (Lc 17,6). O grão de mostarda, pequeno e aparentemente frágil, contém um potencial de vida descomunal. A fé não se mede em quantidade, mas em qualidade e obediência. O gesto de arrancar e transplantar a árvore simboliza a conversão radical: desapegar-se do ego, do poder e da segurança ilusória, mergulhando na confiança total em Deus. É a fé que move a história, não pelo espetáculo, mas pelo testemunho silencioso e coerente.

No Antigo Testamento, encontramos ecos do mesmo dinamismo: a travessia do Mar Vermelho (Ex 14,21-31) exige fé que é movimento, abandono e coragem. O discípulo que perdoa e crê não busca milagres, mas participa do poder transformador do Reino. A psicologia contemporânea reforça essa ideia: a fé verdadeira é integração da alma, coragem para atravessar o medo e reestruturação do ego. A sociologia confirma que, em tempos de descrédito institucional e exploração religiosa, a fé coerente é resistência ética, denuncia da fé como mercadoria e da religião exibicionista.

O texto de Lucas denuncia explicitamente a fé performática das teologias da prosperidade, do domínio e do individualismo. A fé convertida em espetáculo, a oração como contrato e a misericórdia transformada em produto são distorções do Evangelho. A graça não se compra; a fé não se exibe; o perdão não se contabiliza. É nesse contraste que o Evangelho se torna profético: ele recupera a simplicidade do grão de mostarda e da semente que germina na humildade, mostrando que a força de Deus se manifesta nos gestos pequenos e constantes.

São João Crisóstomo afirma que “quem escandaliza o pequeno escandaliza o próprio Cristo”; Santo Agostinho sustenta que o amor deve odiar o pecado, mas amar o pecador; Orígenes enfatiza que o perdão contínuo nasce da experiência do amor divino; São Gregório Magno lembra, na Regula Pastoralis (I,2), que “não é pastor quem se alimenta das ovelhas, mas quem dá a vida por elas”. Esses ensinamentos ecoam na crítica ao clericalismo, ao abuso de autoridade e à busca de prestígio dentro da comunidade. A Igreja, quando se fecha em si mesma, torna-se escândalo e não semente.O Magistério contemporâneo reforça a mesma dimensão. Na Evangelii Gaudium (n. 94-97), o Papa Francisco adverte sobre a mundanidade espiritual e a fé exibicionista; na Fratelli Tutti (n. 222-224), lembra que o perdão e a reconciliação são pilares da convivência humana; na Gaudium et Spes (n. 63-66), sublinha que a Igreja deve acompanhar a história, participando de suas alegrias, dores e esperanças, e não se enclausurar no poder. O Evangelho de Lucas confronta a Igreja e cada discípulo: a fé verdadeira liberta, não domina; cura, não destrói; une, não exclui.

A antropologia e a história revelam que os “pequenos” a quem Jesus protege não eram apenas crianças, mas pobres, marginalizados, mulheres e enfermos — aqueles que a sociedade e o sistema religioso marginalizavam. O escândalo, portanto, é também social: é o abuso de poder que impede a vida plena. O perdão é reconciliação, e a fé é resistência ética e moral. A ciência histórica mostra que a prática do amor e do perdão constrói comunidades sustentáveis, enquanto a fé instrumentalizada perpetua a violência simbólica e estrutural.

Assim, a reflexão de Lucas 17,1-6 é um convite contínuo à conversão: não escandalizar, perdoar sem medida e cultivar a fé do grão de mostarda. Não precisamos de milagres espetaculares, mas de coerência, ternura e coragem para mover as pequenas árvores do mundo: o orgulho, o ego, a injustiça, a violência e o abuso. A fé, quando vivida assim, transforma não apenas o indivíduo, mas o tecido social e espiritual. O grão de mostarda germina, e o perdão é a chuva que o faz crescer. Onde há misericórdia, a terra do mundo respira novamente. Pequenos gestos, pequenas sementes, pequenas árvores movidas pela fé podem não mudar o planeta inteiro, mas mudam o clima espiritual da história — e nisso já se realiza o Reino de Deus.

Que esta palavra nos ensine a caminhar com Jesus, a sermos coerentes, misericordiosos e firmes na fé. Que aprendamos a ser pequenos em aparências, grandes em amor; que o perdão seja constante, e que a fé, mesmo mínima, seja capaz de transformar o mundo, um coração de cada vez.

DNonato - Teólogo do Cotidiano 


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