Nesta parábola, Jesus não exalta a fraude, mas provoca os discípulos a perceberem como os filhos deste mundo sabem agir com decisão quando se trata de interesses terrenos, enquanto os filhos da luz, muitas vezes, permanecem inertes diante do Reino. É um chamado à conversão da inteligência: usar a criatividade, a prudência e a esperteza em favor da justiça, da solidariedade e da vida.
O administrador da parábola é o espelho de uma humanidade que vive entre o cálculo e a compaixão. Jesus o transforma em metáfora da urgência do Reino: se até os injustos sabem planejar seu futuro, quanto mais os discípulos deveriam agir com coragem, sabedoria e amor diante do tempo que lhes é dado. É a esperteza que se converte em fé, o cálculo que se torna partilha.
O Evangelho de hoje, Lucas 16,1-8, também proclamado no 25º Domingo do Tempo Comum (na forma ampliada até o versículo 13) que ja refletimos em setembro de 2022 e 2025, nos apresenta uma das parábolas mais provocantes e desconcertantes de Jesus: a do administrador infiel e astuto. Um texto que, à primeira vista, parece premiar a corrupção, mas que, lido com profundidade, lança uma luz profética sobre a administração da vida, dos bens e do Reino de Deus. É uma parábola que fere nossos hábitos religiosos superficiais, porque convoca a uma fé inteligente, ousada, criativa e responsável naquilo que muitos chamariam de “pequenas coisas” — mas que para o Evangelho são lugares sagrados de fidelidade.
O cenário é o da Palestina do século I, sob o peso econômico e político do Império Romano. A terra, dom que para Israel sempre foi sinal da aliança (cf. Dt 26,1-15), tornou-se objeto de concentração nas mãos de uma elite ligada a Roma. Surgia um sistema de grandes propriedades, geridas por possuidores ausentes e administradores interessados, que beneficiavam-se do empobrecimento de camponeses endividados. Em muitos casos, a dívida levava à perda da terra e à escravidão por contrato. Não é sem razão que Lucas, evangelista da misericórdia e da justiça, é também quem mais denuncia as armadilhas do dinheiro (cf. Lc 6,24; 12,13-21; 18,18-30; At 4,32-35).
É nesse contexto que o administrador da parábola se vê ameaçado: seu patrão o acusa de má gestão. Ele então decide alterar os contratos de dívida para conquistar aliados quando ficar sem emprego. Reduz o valor devido pelo arrendatário do azeite de 100 ânforas para 50, e pelo devedor do trigo de 100 medidas para 80. O gesto é estrategicamente esperto. Ele não rouba mais — apenas renuncia ao que provavelmente era seu ganho ilícito, fruto da exploração. A dívida desses camponeses, antes opressora, torna-se mais suportável. A economia da injustiça é, por um breve momento, atravessada por um gesto de misericórdia interessada. E o patrão — símbolo do sistema — elogia não a corrupção, mas a astúcia. Em termos exegéticos, o verbo grego phronimos indica alguém inteligente na prática, capaz de perceber o que está em jogo e agir com decisão diante do novo cenário.
Jesus não está dizendo: “Sejam desonestos.” Está dizendo: “Sejam inteligentes na construção do Reino”. “Os filhos deste mundo são mais espertos em seus negócios do que os filhos da luz.” (Lc 16,8). Uma crítica dura. Os que servem ao dinheiro se movem com rapidez, estratégia e determinação. Os filhos da luz, muitas vezes, se escondem na espiritualidade conformada e medrosa.
Aqui se encontra a chave hermenêutica: a moral da parábola é a urgência de uma ética ativa, capaz de enfrentar as estruturas injustas com coragem e criatividade. Não basta dizer “não ao mal”; é preciso organizar o bem. Evangelizar é planejar o bem. É agir com inteligência, não ingenuamente. É articular o amor como resistência histórica.
O verso que complementa e ilumina o texto — proclamado no domingo — diz tudo: “Ninguém pode servir a dois senhores.” (Lc 16,13). A oposição radical entre Deus e mamónas (a riqueza absolutizada) revela o núcleo da parábola. Não se trata de “ter dinheiro”, mas de não ser possuído por ele. O dinheiro pode ser meio de vida; jamais pode ser o sentido da vida. Quando o mercado assume o lugar da transcendência, tornam-se possíveis o descarte humano, a violência econômica e a idolatria do lucro — denunciada com força pela Igreja.
São Lucas é coerente com sua teologia: a administração dos bens revela a administração do coração. “Onde está o teu tesouro, aí estará também o teu coração.” (Lc 12,34). É o mesmo horizonte da carta de São Tiago — talvez o texto mais profético contra a riqueza injusta: “O salário que vocês recusaram pagar aos trabalhadores clama, e o clamor chegou aos ouvidos do Senhor dos Exércitos!” (Tg 5,4). A Escritura inteira é unânime: a injustiça econômica é pecado que grita ao céu.
Há também ecos do Antigo Testamento: Amós 8,4-7 denuncia os que “compram o pobre por um par de sandálias”, e Deuteronômio 15 ordena o perdão das dívidas para restaurar a dignidade e a terra dos pobres. A redução da dívida, na lei de Javé, é ato eucarístico: restituição da vida. Lucas conhece essa tradição — e a insere como crítica à economia do Império que, ao contrário do Deus da Aliança, mata.
No centro da parábola, o administrador vive uma crise psicológica profunda: perder o status, o ofício, a “vocação” de explorar. Ele reconhece sua fragilidade humana:
“Cavar, não posso; mendigar, tenho vergonha.” (Lc 16,3).
A psicologia contemporânea diria que sua identidade estava construída no poder que exercia sobre os outros. Ao perdê-lo, teme não ser mais ninguém. Quantos de nós choramos a perda de títulos, cargos, salários, como se a vida se esvaziasse? A parábola expõe essa idolatria identitária: confundimos função com vocação, trabalho com valor, dinheiro com dignidade.
Mas sua ação também revela algo luminoso e libertador: ele aprende a depender de relações. A salvação nunca é autossuficiente. O Reino é sempre comunhão. A esperteza do administrador aponta para uma verdade espiritual: O futuro se constrói com vínculos de solidariedade.
Do ponto de vista sociológico, a parábola denuncia o sistema que transforma tudo em mercadoria: pessoas, tempo, fé, sacramentos, ministérios. É contra esse sistema que a Igreja se levanta: Gaudium et Spes 63–66 defende que a economia existe para a pessoa humana, e não o contrário. A Evangelii Gaudium denuncia a economia que exclui e mata (EG 53), e a Fratelli Tutti combate a “globalização da indiferença” (FT 30). A Populorum Progressio afirma com força que “o desenvolvimento é o novo nome da paz”. Portanto, administrar os bens com justiça é missão de construção da paz social.
São João Crisóstomo critica ferozmente os ricos indiferentes: “Não dar aos pobres é roubá-los.” Santo Ambrósio lembra que os bens da terra pertencem em comum a todos. Santo Basílio questiona: “Por que tens múltiplos sapatos, se há pés descalços?” A fidelidade ao Evangelho nunca foi compatível com acumulação egoísta.
Aristóteles chama de phronesis a prudência ética que conduz à ação justa. O administrador tem phronesis instrumental — busca apenas o próprio bem-estar. Jesus quer uma phronesis evangélica — ação resoluta a serviço do bem comum. Como diria Hannah Arendt, a liberdade nasce da ação consciente que transforma o mundo. O Evangelho não nos chama a ser espectadores da história, mas transformadores dela.
A parábola é uma crítica ao clericalismo e à fé-mercadoria. Quando ministros e comunidades administram sacramentos como comércio espiritual, quando pregadores prometem prosperidade em troca de ofertas, quando a Igreja se reduz a instituição de privilégios… estamos diante do administrador infiel na sua forma mais perversa. O clericalismo, denunciado insistentemente pelo Papa Francisco, nasce quando alguém administra as coisas de Deus como se fossem propriedade privada — e não serviço humilde ao Reino.
Por isso Jesus afirma: “Quem é fiel no pouco, é fiel no muito” (Lc 16,10). O Reino é feito de pequenas fidelidades: honestidade em uma compra, respeito por quem limpa a igreja, nome limpo não só no SPC, mas diante dos empobrecidos, transparência nos dízimos, o coração aberto ao migrante, ao dependente químico, ao invisibilizado. A verdadeira administração da vida está no cotidiano. Lucas está dizendo: a salvação passa pela economia doméstica; Deus visita o orçamento familiar; o Evangelho toca o bolso porque toca o coração.
Também é belo perceber que Jesus não coloca um ideal impossível: Ele nos convida a ser fiéis no pouco. Ele sabe que administrar muitas coisas é tarefa progressiva. A santidade se aprende no detalhe, no agora, no possível. O Reino cresce como fermento na massa (Lc 13,20-21): invisível aos olhos dos poderosos, mas transformador na estrutura da vida.
O administrador — que antes explorava — agora se abre à partilha, mesmo que por interesse. O Reino se manifesta até nas dobras de ambiguidade do coração humano. Deus sabe fazer o bem surgir até do cálculo humano. Nada se perde quando há um movimento, ainda que imperfeito, em direção ao amor. Essa é a esperança pascal que sustenta Lucas: Deus transforma a esperteza em sabedoria, o medo em comunhão, o interesse próprio em solidariedade.
A parábola é convite urgente à Igreja: administremos melhor o que não nos pertence. A criação é de Deus. Os pobres são de Deus. A fé é de Deus. A missão é de Deus. Ser administrador fiel é ser servo. Não donos do Reino, mas guardiões de sua justiça. Em Atos dos Apóstolos, Lucas nos dá a concretização dessa parábola: “entre eles não havia necessitados” (At 4,34). A Igreja primitiva entendeu que a economia comunitária é expressão da Eucaristia. A questão é: nós entendemos?
Hoje, diante do neoliberalismo que naturaliza a exclusão, da política que vende vida em troca de votos, da fé convertida em show de consumo religioso… Jesus exige astúcia profética. Viver o Evangelho é ato de subversão contra a economia da morte. A caridade — no sentido mais bíblico — é política de vida. O amor não é ingênuo: ele enfrenta sistemas.
Que esta sexta-feira da 31ª Semana do Tempo Comum desperte em nós a coragem do Evangelho:
- — criatividade para fazer o bem;
- — fidelidade no cotidiano;
- — administração ética do dinheiro;
- — opção preferencial pelos pobres;
- — denúncia pública das idolatrias do mercado e da religião vazia;
- — e confiança radical no Deus que tudo provê.
Amém.
DNonato – Teólogo do Cotidiano


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