Este texto é proclamado na 3ª feira da 32ª semana do Tempo Comum, mas seu eco ultrapassa o calendário litúrgico: ressoa sempre que o discípulo precisa recordar que o serviço não é moeda, mas vocação. A parábola é breve, mas corta fundo — é bisturi espiritual que separa o serviço do interesse, o amor da autopromoção.
O contexto lucano é fundamental. Jesus segue em direção a Jerusalém, onde o Servo de Deus se fará o Servo sofredor de Isaías (Is 53,11-12). Lucas, médico e historiador sensível às tensões sociais, compõe este trecho como parte do grande discurso sobre o discipulado. O Mestre ensina que a fé autêntica não busca glória nem recompensa; é serviço gratuito que nasce da gratidão.
O termo grego achreios, traduzido por “inútil”, não descreve um servo sem valor, mas aquele que reconhece não ser o centro da obra. Ele é instrumento, não autor. É útil, mas não indispensável, porque a obra é de Deus, não do servo. É a consciência do limite humano diante da graça divina: o servo sabe que tudo o que faz é pequeno diante do amor que o precede.
Este ensinamento desestabiliza tanto a espiritualidade narcisista quanto as teologias de prosperidade que transformam Deus em empregador e a fé em moeda de troca. Jesus revela que o verdadeiro discipulado não negocia com Deus; serve. A mentalidade moderna — e infelizmente também clerical e eclesiástica — acostumou-se a associar missão com status, ministério com prestígio, vocação com poder. Assim, o altar se converte em palco, o púlpito em vitrine, o Evangelho em produto, e os pregadores, em celebridades. Mas o Cristo do Evangelho não é influencer de milagres; é Servo sofNo campo sociológico, o texto denuncia o mesmo impulso que move as estruturas de dominação: a busca por reconhecimento. Vivemos numa sociedade de autopromoção, onde o “eu” se torna centro do universo e o outro é meio de ascensão. A lógica do consumo infiltrou-se até na linguagem da fé: “se eu der, Deus me dará”; “se eu servir, Deus me recompensará”. O Evangelho, porém, desarma esta relação mercantil e proclama que o servir é, por si, a recompensa. Como escreve São João Crisóstomo: “Aquele que serve com amor não espera prêmio, porque o amor é o próprio prêmio.”
A antropologia cristã aqui apresentada por Lucas reconhece o ser humano como colaborador, nunca como autor da salvação. A imagem do servo que volta do campo remete ao cotidiano do campesinato palestino do século I — um trabalhador que servia o patrão e depois ainda preparava o jantar. Jesus não está legitimando a exploração, mas ressignificando o serviço: não se trata de servidão imposta, mas de liberdade amadurecida no amor. Em um mundo regido pela lógica da troca e do poder, o discipulado é ato de subversão — a contracultura do Evangelho.
O pretexto imediato desta parábola é o diálogo anterior (Lc 17,5-6), no qual os apóstolos pedem: “Aumenta a nossa fé!” Jesus responde com a parábola do servo, como quem diz: a fé cresce na prática do serviço humilde. Fé sem serviço é ideologia. A verdadeira fé é movimento, ação, entrega. Assim como o grão de mostarda contém potencial de árvore, o coração humano contém potencial de Reino — mas só germina quando se torna terra de servir.
Os paralelos sinóticos reforçam o mesmo ensinamento: em Mateus 20,26-28, Jesus afirma que “quem quiser ser grande, seja o servo”; e em Marcos 10,45, Ele próprio se apresenta como modelo: “O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por muitos.” O eco veterotestamentário é o Servo de Javé de Isaías, aquele que “não clamará, não gritará, não quebrará a cana rachada” (Is 42,2-3). A espiritualidade do servo é silenciosa, perseverante, fecunda.
A hermenêutica do texto nos conduz a um ponto decisivo: o Reino de Deus não é lugar de privilégios, mas de partilha. A ética do serviço desmonta a teologia do domínio e da prosperidade, porque revela que o valor da vida não está no ter, mas no ser-para-o-outro. São Basílio Magno já denunciava que “o pão que tu guardas pertence ao faminto; a roupa que tu escondes pertence ao nu; o dinheiro que tu conservas pertence ao pobre”. Essa consciência comunitária, retomada pela Gaudium et Spes (n. 63-66), denuncia as estruturas econômicas que transformam o ser humano em instrumento de lucro e alerta que “a economia deve estar a serviço do homem, não o homem a serviço da economia.”
A psicologia profunda ajuda a compreender o impulso de querer reconhecimento. O ego humano busca gratificação e validação constante, mas o Evangelho convida a transcender o ego. Servir sem buscar aplausos é sinal de maturidade espiritual. O servo inútil é aquele que venceu o narcisismo religioso — a necessidade de ser visto, elogiado, aplaudido. Freud via no trabalho uma forma de sublimação, mas aqui, Jesus propõe algo ainda mais radical: o serviço como renúncia do ego, como libertação interior.
A filosofia de Emmanuel Lévinas encontra eco nesta passagem: “O eu só se descobre verdadeiramente no rosto do outro.” Servir é existir para o outro. A liberdade se realiza no amor. Nietzsche via o cristianismo como moral de escravos, mas erra por não perceber que o servo do Evangelho é livre precisamente porque não é escravo do próprio desejo de domínio. Servir, em Cristo, é afirmar o valor infinito do outro e, portanto, da própria vida.
Gregório Magno recorda que o servo verdadeiro não busca louvor, porque sabe que “a boa obra só é perfeita quando a humildade a acompanha” (Homiliae in Evangelia, 17,1). A humildade, para os Padres da Igreja, não é anulação, mas consciência: o servo reconhece que tudo é dom, e por isso nada exige.
Na teologia, esta passagem aponta para a kenosis — o esvaziamento do Filho descrito em Filipenses 2,6-8: “Ele se humilhou, tornando-se obediente até a morte.” O servo inútil é ícone do Cristo obediente, que nada retém para si. Santo Agostinho comenta: “Quando fazemos o bem, Deus age em nós; e quando nos gloriamos, roubamos a glória de Deus.” Aqui está a essência da humildade cristã: reconhecer-se servo da graça.
O clericalismo, denunciado repetidas vezes pelo Papa Francisco, nasce da tentação oposta: confundir serviço com poder. O Evangelho de hoje desmonta o pedestal do ministério e devolve o altar ao seu lugar original — mesa do serviço. O ministro que serve buscando prestígio trai o Evangelho. O verdadeiro pastor, lembra o Papa na Evangelii Gaudium (n. 24), “deve ter cheiro de ovelha.” O servo inútil tem cheiro de campo, de caminho, de humanidade. O clericalismo não é apenas um desvio de poder, mas uma negação do Cristo servo. O altar se torna trono quando esquecemos que o Mestre se ajoelhou para lavar pés. Cada vez que buscamos honra no ministério, repetimos o erro dos discípulos que disputavam quem seria o maior.
A sociologia do trabalho ajuda a perceber como o mundo atual cultua o sucesso, o mérito, o empreendedorismo até mesmo espiritual. Mas Jesus inverte esta lógica: o Reino não é meritocracia, é graça. Em termos antropológicos, o ser humano só se realiza quando se descentra. A missão é tarefa, não troféu. O servo que volta do campo sabe que a colheita não é dele. Ele apenas cuidou da vinha. Assim também nós: a Igreja é vinha do Senhor, não propriedade de quem a administra.
Essa parábola é também denúncia profética às igrejas-empresa, aos pregadores de likes e seguidores que transformam o Evangelho em espetáculo. Servir não é performar. Não é “ter palco”, mas ter cruz. A fé que busca retorno econômico ou visibilidade pública trai a essência do Reino. A Fratelli Tutti (n. 115) recorda que “o amor que se expressa no serviço não busca recompensas, mas constrói fraternidade.”
Há ainda um detalhe simbólico profundo: o servo que serve primeiro o senhor e depois come é imagem da Eucaristia. Na Ceia, Cristo inverte os papéis: Ele, o Senhor, é quem serve. Lava os pés dos discípulos (Jo 13,1-15) e distribui o pão. A liturgia torna-se então exercício de humildade, não de poder. O altar é mesa de serviço, não trono de domínio. Por isso, o discípulo que serve com amor experimenta já aqui a antecipação do Reino — o “Céu que começa agora”, como dizia Dom Adriano.
Lucas escreve para comunidades que viviam tensões entre ricos e pobres, líderes e servidores. O autor deseja purificar a mentalidade dos primeiros cristãos, lembrando que o Reino não se edifica com hierarquias sociais, mas com fraternidade. A Igreja primitiva, narrada em Atos 2,42-47, expressava isso na comunhão dos bens, no partir do pão e na oração. O servo inútil é, portanto, imagem da comunidade que não busca vantagem, mas comunhão.
Do ponto de vista pastoral, este texto desafia ministros ordenados e leigos a repensarem a noção de missão. Servir é participar da dinâmica divina do dom. A vida cristã não é carreira, é caminho. E neste caminho, o discípulo não mede esforços nem busca medalhas. Basta saber que está na estrada com o Mestre. Tudo o que fazemos — pregar, celebrar, acompanhar, consolar — é resposta amorosa a um amor primeiro.
A Lumen Gentium recorda que “a Igreja segue o mesmo caminho de humildade e pobreza de seu Fundador” (LG 8), e que “os leigos, procurando o Reino de Deus, devem ordenar as coisas temporais segundo Deus” (LG 31). O servo inútil é imagem viva dessa Igreja pobre e serva, que serve porque ama e ama porque reconhece que tudo é graça.
Ao final, a parábola ecoa como libertação: “Quando tiverdes feito tudo, dizei: somos servos inúteis.” Não é resignação, mas libertação do orgulho. É dizer: “Tudo é graça” (cf. 1Cor 15,10). É reconhecer que, mesmo cumprindo o dever, nossa dívida com o amor permanece infinita.
O Evangelho nos convida, pois, a ser servos alegres, não empregados ansiosos; servidores, não senhores. Em um mundo que idolatra o sucesso, o Cristo nos chama a ser fiéis. Em uma Igreja tentada pelo clericalismo, o Cristo nos chama à humildade. Em uma fé tentada pelo lucro, o Cristo nos chama ao serviço. E quando compreendermos que servir é amar, então o Reino já estará em nós — como semente, fermento e luz.
No fim, o servo inútil descansa não porque terminou a obra, mas porque descobriu que é a própria obra de Deus. Quando o serviço se faz gratidão, o céu começa — e o amor se torna pão repartido no chão do mundo.
DNonato – Teólogo do Cotidiano


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