A patrística reforça essa perspectiva: Santo Ambrósio afirmava que não dar aos pobres é roubá-los (De Nabuthe 12,53); São João Crisóstomo alertava que quem possui dois pares de sapatos e não os compartilha já comete injustiça; Santo Irineu afirmava que “a glória de Deus é o ser humano vivo” (Adversus Haereses IV,20,7); São Basílio Magno, em homilias sobre a riqueza, ensinava que o pão guardado no armário pertence ao faminto. A Igreja primitiva compreendeu que a fé se manifesta na justiça, na caridade e na transformação social, rejeitando qualquer separação entre espiritualidade e vida concreta. Essa visão ecoa nos grandes mestres contemporâneos da libertação, como Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff, Jon Sobrino e Enrique Dussel, que insistem que fé sem compromisso histórico não é fé, mas abstração.
O Concílio Vaticano II recolocou a Igreja no caminho da escuta e da ação profética.
- Ad Gentes (1965) afirma que a missão inclui a promoção humana e a libertação integral, reconhecendo que evangelização e transformação social são inseparáveis.
- Apostolicam Actuositatem (1965) reconhece o protagonismo dos leigos, rompendo com o clericalismo, lembrando que a fé não é refúgio alienante, mas força transformadora que age na sociedade.
- Dignitatis Humanae (1965) consagra a liberdade de consciência, base para a defesa dos direitos humanos.
- Gaudium et Spes (1965) denuncia injustiças, reafirma a dignidade da pessoa e convoca a Igreja a enfrentar estruturas opressoras (nn. 63–66).
- Lumen Gentium (1964) apresenta a Igreja como Povo de Deus reforçando a dimensão comunitária e igualitária.
- Nostra Aetate (1965) amplia o diálogo com culturas e religiões valorizando os historicamente excluídos. Todo o Concílio reafirma que fé e transformação social são inseparáveis: a vida do povo é lugar teológico e sacramento de Deus.
Paulo VI, sucessor imediato do Concílio, aprofundou essa perspectiva.
- Evangelii Nuntiandi (1975), afirma que evangelização e libertação integral caminham juntas, definindo uma carta magna da libertação encarnada.
- Octogesima Adveniens (1971) reconhece a legitimidade das lutas sociais e o dever dos cristãos de transformar estruturas injustas.
- Populorum Progressio (1967) denuncia o neocolonialismo econômico, afirmando que “o desenvolvimento é o novo nome da paz”, ecoando a sabedoria bíblica que liga justiça à paz (Sl 85,11).
Paulo VI mostra que a Igreja não pode reduzir-se à manutenção da ordem, mas deve confrontar estruturas de poder que negam a vida e a dignidade, acompanhando os clamores dos pobres como eco do Deus libertador.
João Paulo II, frequentemente criticado de forma simplista, reafirma os princípios centrais da libertação integral.
- Redemptor Hominis (1979) coloca a dignidade da pessoa no centro da missão;
- Laborem Exercens (1981) valoriza o trabalho humano e denuncia exploração;
- Sollicitudo Rei Socialis (1987) introduz o conceito de “estruturas de pecado”, lembrando que o mal não é apenas individual, mas sistêmico;
- Centesimus Annus (1991) critica tanto o comunismo quanto um capitalismo selvagem, que exclui e descarta vidas.
João Paulo II reconcilia fé e justiça, mostrando que a verdadeira liberdade humana é inseparável da transformação das estruturas opressoras. Patrística, profetas e Escritura convergem: Deus defende o oprimido, e a Igreja é chamada a testemunhar essa defesa, não a substituí-la.
Bento XVI, embora percebido como distante da Teologia da Libertação, também contribui.
- Deus Caritas Est (2005), lembra que a caridade é social e política; Spe Salvi (2007) conecta esperança cristã à transformação histórica;
- Caritas in Veritate (2009) denuncia desigualdades globais e enfatiza responsabilidade coletiva.
Bento XVI reafirma que fé e compromisso social não se separam, ecoando Agostinho: a cidade de Deus se constrói com justiça.
Francisco radicaliza essa linha.
- Evangelii Gaudium (2013), denuncia a “economia da exclusão” e o clericalismo;
- Fratelli Tutti (2020) convoca à fraternidade, rompendo estruturas de exploração;
- Laudato Si’ (2015) e Laudate Deum (2023) articulam ecologia integral e justiça social, denunciando estruturas que destroem a vida e atingem os pobres primeiro;
- Querida Amazônia (2020) valoriza povos originários e culturas marginalizadas;
- Gaudete et Exsultate (2018) lembra que santidade se vive na luta pela justiça.
Francisco resgata o espírito profético, mostrando que fé sem ação é traição e que espiritualidade é compromisso encarnado. Contra essa tradição, surgem teologias deturpadas: a teologia da prosperidade transforma Deus em banqueiro e o Evangelho em contrato; a teologia do domínio busca poder político-religioso, negando Cristo servo; o individualismo espiritual reduz a fé à experiência privada; a fé como mercadoria transforma ritos em espetáculo e sacramentos em mercadoria. O clericalismo reduz a Igreja a casta de poder, enquanto a Escritura afirma que todos são ungidos pelo mesmo Espírito (1Cor 12,4-7). A verdadeira fé liberta; a liberdade plena exige justiça, compromisso histórico e transformação das estruturas.
A Teologia da Libertação dialoga com psicologia, filosofia, sociologia, antropologia e ciência histórica. Psicologicamente, compreende traumas e subjetividades oprimidas; filosoficamente, questiona sistemas que absolutizam lucro e poder; antropologicamente, valoriza culturas marginalizadas; historicamente, denuncia narrativas que justificam privilégios. A opressão não é apenas estrutural: molda identidades, destrói autoestima, paralisa esperança. A fé libertadora resgata dignidade, devolve sentido e esperança, rompendo correntes materiais e simbólicas.
A Igreja, como os profetas, deve escutar o clamor dos pobres e da Terra. Indiferença social é pecado estrutural; silêncio diante da injustiça é traição ao Evangelho. Como diz João 8,32: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. Verdade que se encarna na vida concreta, no combate à exclusão, na proteção da criação, na defesa dos marginalizados. Santo Irineu lembra: “A glória de Deus é o ser humano vivo” (Adversus Haereses IV,20,7). O contrário também é verdadeiro: a glória de Deus é negada quando a humanidade é morta pela fome, pela violência, pelo desprezo.
Teólogos da libertação como Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff, Jon Sobrino e Enrique Dussel reforçam que fé que não transforma é fé incompleta. Dom Adriano Hipólito que foi o 3⁰ bispo de Nova Iguaçu enfatizava: “Teologia que não liberta não pode ser Teologia”.
Assim, qualquer crítica superficial à Teologia da Libertação que ignora os documentos do Concílio Vaticano II e das encíclicas dos Papas modernos perde legitimidade. Antes de julgar, é necessário conhecer profundamente Ad Gentes, Apostolicam Actuositatem, Dignitatis Humanae, Gaudium et Spes, Lumen Gentium, Nostra Aetate, Evangelii Nuntiandi, Octogesima Adveniens, Populorum Progressio, Redemptor Hominis, Laborem Exercens, Sollicitudo Rei Socialis, Centesimus Annus, Deus Caritas Est, Spe Salvi, Caritas in Veritate, Evangelii Gaudium, Fratelli Tutti, Gaudete et Exsultate, Laudato Si’, Laudate Deum e Querida Amazônia. Somente a partir desse conhecimento é possível avaliar com discernimento a força profética da Teologia da Libertação, que liga fé, justiça, vida concreta e transformação histórica em um só horizonte.
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