O Evangelho proclamado nesta quarta-feira da 28ª semana do Tempo Comum nos situa novamente à mesa de um fariseu — espaço que, à primeira vista, poderia parecer apenas um jantar, mas que, sob o olhar atento de Jesus, transforma-se em cenário de revelação, confronto e discernimento. Na sociedade judaica do primeiro século, a refeição era ato social, ritual religioso e também espaço pedagógico. Ser convidado para comer com alguém não era mero gesto de cortesia; era sinal de reconhecimento público e ocasião para demonstrar sabedoria e piedade. Jesus, porém, subverte essa expectativa: não vem para elogiar quem se mostra piedoso, mas para denunciar as contradições do coração religioso e revelar que a verdadeira observância da Lei deve sempre estar permeada pela justiça, pela misericórdia e pelo amor de Deus.
Desde Lucas 11,37, acompanhamos que Jesus foi convidado à refeição e não se limitou às formalidades. Cada gesto do anfitrião e cada cuidado com as aparências se tornam ocasião de revelação. A mesa, lugar de comunhão, transforma-se em cátedra profética. Os “ais” de Jesus não são maldições, mas lamentações — gritos que brotam da compaixão e da indignação diante da hipocrisia. Essa tradição de denúncia nasce dos profetas: Jeremias, Isaías e Amós já haviam clamado contra o culto vazio e a religiosidade sem justiça. Isaías advertia: “Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim” (Is 29,13), e Amós gritava: “Quero a justiça correndo como um rio e a retidão como um riacho perene” (Am 5,24). Jesus, portanto, não rompe a tradição profética — Ele a cumpre, mostrando que a fé verdadeira não é aparência nem rito, mas transformação profunda do coração e da vida.
“Ai de vós, fariseus, porque pagais o dízimo da hortelã, da arruda e de todas as outras ervas, mas deixais de lado a justiça e o amor de Deus. Vós deveríeis praticar isso, sem deixar de lado aquilo.”
O dízimo, que deveria ser sinal de gratidão e partilha, tornou-se instrumento de ostentação. A observância mecânica, sem amor nem compaixão, gera falsa religiosidade. Mateus, em seu paralelo (23,23), reforça que o essencial da Lei é a justiça, a misericórdia e a fidelidade — sem as quais todo ritual se torna vazio. Paulo, por sua vez, recorda que “a fé sem obras é morta” (Tg 2,26), e que o amor é o vínculo da perfeição (Cl 3,14).
Hoje, essa lógica reaparece em contextos onde o sucesso da Igreja é medido por números, arrecadações e prestígio de líderes. A teologia da prosperidade, a fé-mercadoria e o culto à riqueza repetem a lógica farisaica sob nova roupagem. A espiritualidade se converte em produto de consumo, e o Evangelho é distorcido para legitimar poder e status. No entanto, a fé autêntica não é transação, mas comunhão; não é moeda, mas serviço. Deus não se reconhece em quem exibe piedade, mas em quem pratica justiça, reparte o pão e defende os pobres.
Neste ponto, o Evangelho lança sobre nós uma pergunta incômoda e necessária:
Quantas pessoas entram na Igreja por causa da nossa atitude? E quantas saem?
Essas não são questões estatísticas, mas espirituais. Elas medem a coerência entre fé e vida, entre o que professamos e o que praticamos. Muitas vezes imaginamos que nossa fé é assunto íntimo, reservado a ritos e orações. No entanto, cada gesto, cada palavra e até o silêncio testemunham algo de Deus. Somos, queiramos ou não, sinais vivos do Evangelho.
Quando nossas atitudes são marcadas pelo amor, paciência, perdão e cuidado, as portas da fé se abrem: alguém vê compaixão em nossos olhos e se aproxima de Deus. Mas quando agimos com indiferença, orgulho ou hipocrisia, afastamos corações que buscavam acolhida. A incoerência é escândalo espiritual; o amor coerente é pregação silenciosa. Por isso, a verdadeira evangelização começa na conversão interior: o que o outro encontra em mim — julgamento ou misericórdia, peso ou leveza, muro ou ponte?
“Ai de vós, fariseus, porque gostais dos primeiros assentos nas sinagogas e das saudações nas praças públicas.”
A denúncia agora é contra o culto à visibilidade. O fariseu que busca os primeiros lugares simboliza o ego religioso que precisa de aplausos. O Papa Francisco tem advertido que o clericalismo é uma das formas mais sutis de mundanidade espiritual: ele transforma o serviço em carreira e o altar em palco. Psicologicamente, o fariseu manifesta a necessidade de aprovação e o medo da invisibilidade; sociologicamente, ele encarna a manipulação da fé para legitimar poder e excluir os pobres; antropologicamente, é a repetição de um padrão milenar em que o sagrado é usado como escudo de status. Em nossos tempos, essa tentação se manifesta também nas redes sociais, na busca por seguidores e curtidas “em nome de Deus”, mas com o coração distante do Evangelho do serviço.
“Ai de vós, porque sois como túmulos que não se veem, sobre os quais os homens andam sem saber.”
Na tradição judaica, o túmulo invisível tornava impuro quem passava por cima dele sem perceber. Jesus usa essa imagem para revelar a religião que mata sob aparência de santidade. A fé sem compaixão é sepulcro branco: bela por fora, morta por dentro. Ezequiel viu o vale de ossos secos (Ez 37) e profetizou sobre a necessidade do Espírito para reviver o que estava morto. Assim também, sem o Espírito, toda estrutura religiosa se torna ossário.
Santo Agostinho ensinava que a Lei foi dada para conduzir à graça; São João Crisóstomo denunciava os que oprimem os pobres; São Gregório Magno alertava para o perigo do poder clerical. A Igreja só é viva quando o amor é sua alma. Quando o rito é usado para ocultar a injustiça, o altar se torna túmulo; mas quando a liturgia reflete misericórdia, o túmulo se abre e a vida ressuscita.
“Mestre, falando assim, insultas-nos também a nós!”
A reação do doutor da Lei revela a resistência típica à palavra profética. Em todas as épocas, a voz da verdade é percebida como ofensa pelos que se acomodam à hipocrisia. Jeremias, Ezequiel, João Batista e até o próprio Cristo foram perseguidos por denunciar as estruturas de opressão. Psicologicamente, o doutor da Lei representa o ego ferido, incapaz de acolher a correção; espiritualmente, simboliza a rigidez de quem confunde a letra da Lei com a vontade de Deus.
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“Ai de vós também, mestres da Lei, porque carregais os homens com fardos insuportáveis, e vós mesmos não os tocais nem com um dedo.”
A denúncia é clara: a Lei sem compaixão oprime; a autoridade sem serviço domina. Quantas vezes a religião se torna peso, em vez de caminho? Quantas vezes a moral é usada como arma, e não como cuidado? Jesus revela que o verdadeiro mestre é aquele que caminha junto, que alivia o peso, que toca com ternura o fardo alheio. A teologia do domínio e as estruturas autorreferenciais traem o Evangelho. O verdadeiro ministério, ensinam os Padres da Igreja, é o que conduz à liberdade e ao amor.
Assim, o Evangelho nos recorda: a salvação não está na observância exterior, mas na conversão interior. Amor e justiça são inseparáveis — o amor sem justiça é conivência; a justiça sem amor é vingança. A fé exige engajamento social, denúncia profética e compromisso com a dignidade humana. Cada fariseu e cada doutor da Lei habitam em nós: o orgulho, o medo da crítica, o desejo de controle. A conversão começa no espelho da consciência, quando deixamos o Espírito moldar o coração.
A mesa do fariseu torna-se, assim, escola de misericórdia. O “ai de vós” de Jesus é também convite: “Vinde a mim, todos vós que estais cansados...” (Mt 11,28). Ele não quer destruir, mas libertar; não deseja acusar, mas curar. Quando a fé se dobra diante do amor, o sepulcro se abre e a vida ressuscita.
Mais discípulos, menos juízes.
Mais serviço, menos vaidade.
Mais compaixão, menos aparência.
A fé autêntica não é espetáculo, mercadoria ou instrumento de poder. É justiça, misericórdia e humildade. Amar é cumprir a Lei. Servir é fazer justiça. A misericórdia é o caminho seguro do Reino. Que cada cristão, na comunidade, na Igreja e no cotidiano, se pergunte: até que ponto sou fariseu? Até que ponto minhas práticas revelam amor verdadeiro?
Que o Espírito nos transforme; que a Lei seja guia; que o amor seja critério. E que aprendamos, com o Mestre de Nazaré, a viver o Evangelho não como imposição, mas como vida — vida que acolhe, cura, perdoa e liberta.
DNonato – Teólogo do Cotidiano
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