terça-feira, 16 de setembro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 7,31-35

A passagem de Lucas 7,31-35 revela, com clareza cortante, a incapacidade de uma geração de perceber a ação de Deus quando ela se manifesta de formas inesperadas. Jesus compara sua geração a crianças caprichosas que, nas praças, ditam regras do jogo e desprezam o que lhes é oferecido: algumas tocam flauta, mas ninguém dança; outras cantam cantos fúnebres, mas ninguém lamenta. Esta imagem não é apenas uma crítica social ou religiosa, mas uma denúncia profunda da resistência humana ao novo, da incapacidade de acolher a verdade que desafia esquemas de poder, expectativas e comodismo. Ao colocar essa passagem na liturgia — na quarta-feira da 2ª semana do Advento e na quarta-feira da 24ª semana do Tempo Comum — a Igreja nos convida a discernir, a abrir o coração e a reconhecer a presença de Deus tanto na severidade do deserto quanto na misericórdia da mesa, lembrando que a verdadeira escuta exige coragem, atenção e liberdade interior.

O contexto imediato da passagem destaca João Batista e Jesus como polos complementares da ação divina. João, austero e radical, vive no deserto, alimentando-se de gafanhotos e mel silvestre, chamando o povo à penitência (cf. Mt 3,4). Jesus aproxima-se de pecadores, marginalizados e cobradores de impostos, partilha mesas e anuncia a misericórdia de Deus (cf. Lc 5,29-32). As autoridades religiosas reagem com incompreensão: João é tachado de louco ou possuído (cf. Lc 7,33); Jesus é considerado glutão e beberrão, amigo de pecadores (cf. Lc 7,34). O problema não está na severidade de João nem na proximidade de Jesus, mas na incapacidade de reconhecer que ambos manifestam, de modos distintos, a justiça e a misericórdia de Deus. Mateus 11,16-19 reforça a crítica: “Para quem compararei esta geração? É como crianças sentadas nas praças...”, indicando que a resistência da geração de Jesus é tema central da pregação. Marcos 3,5-12 ecoa a incompreensão das autoridades diante da ação libertadora de Jesus, revelando que a rejeição não se dá à pessoa, mas à ameaça que a verdade divina representa sobre estruturas estabelecidas.

O pano de fundo histórico revela a lógica da rejeição. As elites religiosas, ligadas a interesses políticos e sociais sob domínio romano, temiam a perda de prestígio e privilégios. A austeridade de João expunha hipocrisia; a misericórdia de Jesus desmontava o sistema de pureza que justificava exclusões. A antropologia nos mostra que, em sociedades hierarquizadas e opressivas, vozes que propõem mudança são frequentemente desqualificadas. A psicologia evidencia que ataques ad hominem — João é louco, Jesus indulgente — são estratégias de defesa frente ao desconforto da verdade. A sociologia confirma que tais mecanismos permanecem: instituições frequentemente marginalizam ou criminalizam críticos, classificando-os como radicais ou subversivos.

Filosoficamente, o texto nos remete à crítica socrática à superficialidade e à busca de reconhecimento social em vez da verdade. João e Jesus demonstram coerência com sua missão, mesmo diante da incompreensão, enquanto líderes agem como crianças mimadas que querem controlar o jogo. Teologicamente, o texto revela a pluralidade da manifestação divina: no deserto de João e na mesa de Jesus, Deus exige conversão, mas oferece festa e perdão. Rejeitar um ou outro é negar a plenitude do Reino. A revelação é paradoxal e exige discernimento: a justiça divina se manifesta tanto na correção quanto na misericórdia.

No contexto contemporâneo, Lucas 7,31-35 denuncia distorções da fé. A teologia da prosperidade rejeita austeridade e misericórdia, transformando a fé em troca de benefícios e espetáculo, incapaz de abraçar o mistério da cruz. A teologia do domínio, que busca poder político e imposição moral, recusa a liberdade profética de João e a misericórdia libertadora de Jesus. O individualismo religioso reduz a fé a experiência subjetiva de conforto, negando penitência e compromisso social. A fé-mercadoria transforma ritos e celebrações em consumo, rejeitando tanto o silêncio do deserto quanto a partilha da mesa. O clericalismo, denunciado pelo Papa Francisco, transforma o clero em elite distante, exigindo submissão e desqualificando vozes proféticas do povo. Como lembra a Evangelii Gaudium, “o clericalismo é uma das tentações mais fortes que desfiguram a Igreja” (EG, 102).

A patrística reforça a compreensão dessa passagem. Santo Agostinho afirma: “Os filhos da sabedoria são aqueles que, em João e em Cristo, reconhecem que a mesma Sabedoria de Deus se manifesta, quer castigando, quer perdoando.” Orígenes observa que a rejeição simultânea revela dureza de coração, não falha na mensagem. Gregório de Nissa interpreta a metáfora das crianças na praça como crítica à rigidez de coração e à resistência à novidade divina. A tradição patrística enfatiza acolher a diversidade dos modos de Deus agir, ensinando que a verdadeira sabedoria não escolhe entre austeridade e misericórdia, mas reconhece ambas como expressão da mesma Sabedoria.

Pastoralmente, o texto desafia a Igreja de hoje. Quantas vezes, diante de denúncias proféticas de injustiça, acusa-se de radicalismo? Quantas vezes, diante de pastores próximos aos marginalizados, surgem acusações de populismo? O Concílio Vaticano II lembra: “A alegria e a esperança, a tristeza e a angústia dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também a alegria e a esperança, a tristeza e a angústia dos discípulos de Cristo” (Gaudium et Spes, 1). A Igreja que não entra na dança do discernimento corre o risco de trair sua missão.

Historicamente, Lucas escreve para uma comunidade em tensão: judeus e cristãos, austeridade da Lei e liberdade do Evangelho. A complementaridade de João e Jesus ensina que a revelação divina transcende categorias fixas. Antropologicamente, percebemos a resistência humana à novidade, à imprevisibilidade de Deus. A fé exige abertura, coragem e discernimento para acolher o inesperado.

O tom profético da passagem permanece atual. Jesus denuncia a geração que rejeita o profeta da penitência e o da festa, revelando dureza de coração. Hoje, a crítica é válida para aqueles que, em nome de ortodoxia aparente, rejeitam crítica social e misericórdia pastoral ou transformam a fé em espetáculo triunfalista. A verdadeira sabedoria não está em escolher entre João e Jesus, mas em reconhecer ambos como revelações complementares de um Deus que é justiça e misericórdia. Discípulos e Igreja são chamados a superar o espírito infantilizado, acolhendo diversidade, conversão, solidariedade e justiça.

Além disso, o texto nos convida a uma reflexão social: muitas vezes rejeitamos mudanças que exigem honestidade, atenção ao sofrimento e compromisso comunitário. A leitura de Lucas 7,31-35 é convite à coragem moral e espiritual, reconhecendo a ação de Deus mesmo quando desafia expectativas, abraçando tanto austeridade quanto misericórdia. A sabedoria divina se manifesta nos frutos, nos que acolhem a Palavra e permitem transformação, superando egoísmo, superficialidade e rigidez.

Ao contemplarmos esta passagem, somos chamados a olhar para dentro de nós mesmos e para a comunidade da qual fazemos parte. O povo que acolhe João e Jesus demonstra discernimento; as elites que os rejeitam revelam infantilidade e resistência ao Reino. A Igreja, enquanto Corpo de Cristo, é desafiada a caminhar entre penitência e festa, firmeza e misericórdia, para não repetir a infantilidade que rejeita o Reino. A Palavra nos convoca à coragem de viver plenamente a fé, a sabedoria de acolher a diversidade da ação divina e o compromisso de transformar a sociedade com justiça e misericórdia, tornando-nos verdadeiros filhos da sabedoria que dançam e choram ao mesmo tempo, reconhecendo o rosto vivo de Deus em cada circunstância.




DNonato – Teólogo do Cotidiano


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