terça-feira, 19 de agosto de 2025

Soberania e Justiça: O Brasil Decide Seu Destino

A decisão do ministro Flávio Dino no STF, ao afirmar que leis e decisões judiciais estrangeiras não têm validade automática no Brasil, recoloca em pauta uma questão central: a soberania nacional diante de pressões externas. Embora o caso recente da Lei Magnitsky, aplicada pelos Estados Unidos contra o ministro Alexandre de Moraes, não tenha sido citado diretamente, a decisão é uma resposta clara a esse tipo de ingerência. Dino reforça que apenas a Justiça brasileira pode dar validade a medidas que impactem pessoas, contratos e bens no território nacional, exigindo que qualquer sentença estrangeira passe pelo crivo do STF ou por mecanismos formais de cooperação internacional. Essa determinação atinge também Estados e municípios, que ficam proibidos de propor ações no exterior sem autorização, e empresas brasileiras, que não podem acatar ordens externas sem chancela nacional.O pano de fundo revela como, em pleno século XXI, ainda convivemos com tentativas de projeção de poder por meio do direito e da economia. A chamada Lei Magnitsky, embora se apresente como instrumento de defesa da democracia, de combate à corrupção e às violações de direitos humanos, é também uma arma de política externa dos Estados Unidos, que escolhem quem sancionar segundo seus próprios interesses estratégicos. É nesse ponto que se evidencia a contradição: uma lei que se apresenta como universal, mas cuja aplicação é seletiva, servindo à lógica de hegemonia. Essa lógica não se restringe ao Brasil: golpes na América Latina, desde o Chile em 1973 até tentativas mais recentes na Venezuela, na Bolívia e na Nicarágua, mostram como a defesa da “democracia” e da soberania muitas vezes serve de pretexto para interferir, controlar recursos e subjugar povos, camuflando interesses geopolíticos sob o véu da moralidade internacional.

O paralelo histórico se amplia quando olhamos para a Europa do século XX. Na França ocupada pelos nazistas, uma parte significativa da extrema-direita local não apenas concordava com a invasão, mas a apoiava ativamente, defendendo a submissão ao nazismo e a colaboração com o ocupante. Essa aliança com forças externas de poder para enfraquecer instituições nacionais lembra, em outro contexto, a atitude de setores da extrema-direita contemporânea brasileira que buscam apoio externo para deslegitimar o Estado e promover agendas autoritárias. A história mostra que a entrega voluntária da soberania, mesmo sob o pretexto de “alinhamento moral” ou “eficiência”, sempre cobra um preço terrível: perda da liberdade, violação de direitos e destruição de laços comunitários.

O debate nos remete também a outros momentos históricos. A Inglaterra, no século XIX, quando se colocou como “protetora” contra o tráfico negreiro, realizava algo moralmente correto ao condenar uma prática abominável, que reduzia seres humanos a mercadoria, violava a dignidade, destruía famílias e culturas, e deixava marcas que atravessam séculos. A escravidão e o tráfico de pessoas foram crimes contra a humanidade, perpetrados com violência extrema, exploração desumana e desrespeito absoluto à vida e à liberdade. Porém, essa atuação abolicionista não significa que a Inglaterra agisse desinteressadamente ou sem contradições. Ela manteve colônias de exploração na África, retirando recursos e impondo trabalho forçado, e mais tarde promoveu políticas segregacionistas que culminaram no apartheid na África do Sul. Ao mesmo tempo, consolidava seus interesses econômicos e geopolíticos, moldando o mundo segundo suas prioridades comerciais. Assim como hoje, quando os Estados Unidos utilizam a Lei Magnitsky em nome da moralidade e dos direitos humanos, é necessário reconhecer que a retórica de “boa ação” pode coexistir com objetivos de poder e hegemonia. Criticar essas intenções estratégicas não significa relativizar ou legitimar crimes, mas analisar o contexto real em que políticas externas se desenvolvem, sem perder de vista a condenação absoluta da injustiça histórica.

Essa decisão se coloca no coração de uma disputa que vai além do direito, pois toca na sobrevivência da democracia. A extrema-direita brasileira, cúmplice de interesses externos e de setores ultraconservadores que financiam a máquina da desinformação global, não hesita em internacionalizar sua narrativa golpista. O que começa como manobra jurídica se revela como estratégia política, e o que se apresenta como defesa da lei se mostra, na verdade, como cruzada autoritária global. O paradoxo é evidente: bradam “Brasil acima de tudo” enquanto se ajoelham diante de potências estrangeiras. Ao tentar legitimar-se em cortes internacionais, procuram enfraquecer as instituições nacionais e abrir caminho para a tutela externa, uma forma sofisticada de neocolonialismo. Dino, ao blindar o sistema jurídico brasileiro contra esse tipo de ingerência, não protege apenas Moraes ou o STF, mas a própria soberania popular que, ainda ferida, resiste aos avanços autoritários. É como se dissesse que nenhum banqueiro, nenhum governo estrangeiro, nenhum tribunal de fora pode decidir sobre contratos, bens ou direitos que pertencem ao povo brasileiro. Essa é a mesma lógica que animou os Macabeus quando defenderam sua identidade contra a imposição helênica: soberania não é luxo, é condição de sobrevivência.

Mas há uma tensão que não pode ser esquecida: se por um lado essa blindagem nos defende de sanções políticas e arbitrárias, por outro ela pode dificultar a busca de justiça quando o próprio Estado brasileiro se mostra incapaz ou cúmplice dos poderosos. As vítimas de Mariana recorreram à Justiça inglesa porque sabiam que aqui enfrentariam manobras infinitas e pactos de silêncio entre corporações e autoridades. É nesse ponto que a decisão de Dino precisa ser completada por um compromisso mais profundo: não basta blindar o país das pressões externas se a justiça doméstica continuar a servir ao dinheiro e ao poder. A soberania só tem sentido quando é posta a serviço do povo, e não quando se torna desculpa para a impunidade dos fortes. Uma pátria sem justiça é como um corpo sem sangue: existe, mas não vive. Soberania que não se põe a serviço dos pequenos é bandeira vazia, tremulando ao vento sem raiz no chão do povo.

No plano internacional, a decisão reafirma uma velha lição: nenhuma potência deve ditar o destino de outra nação. Se leis brasileiras não se impõem nos Estados Unidos, por que leis americanas teriam de valer aqui? A retórica do “direito internacional” só tem valor quando se faz diálogo entre iguais, não quando se impõe pela força econômica ou militar. A história mostra que sanções e golpes quase sempre recaem sobre os mais frágeis, enquanto os poderosos seguem impunes. É preciso construir mecanismos multilaterais de justiça que não sejam reféns de impérios, mas expressão da solidariedade entre povos. Enquanto isso não acontece, a defesa da soberania é um ato de sobrevivência e também um testemunho. Assim como Jesus diante de Pilatos recordou que “nenhum poder terias sobre mim se do alto não te fosse dado” (Jo 19,11), também aqui se proclama que nenhum império tem autoridade última sobre o destino de uma nação. A luta brasileira é parte de uma luta maior, que atravessa toda a América Latina: povos da Bolívia, da Venezuela, do México e de tantos outros países sabem o que significa viver sob a sombra de sanções, bloqueios, ingerências externas e golpes travestidos de “defesa da democracia”. O que Dino decidiu ecoa além das fronteiras: é uma palavra que ressoa em todo o continente.

A decisão de Dino, portanto, é corajosa e necessária. Ela afirma que não somos súditos de nenhum império e que nossas instituições não podem ser usadas como marionetes da extrema-direita global. É uma resposta firme contra o neocolonialismo jurídico que tenta travar a democracia brasileira. Mas também é um chamado à autocrítica: não basta dizer “não” às ingerências externas se não aprendermos a dizer “sim” à justiça para os pobres, aos direitos dos trabalhadores, às vítimas de crimes ambientais, às comunidades esmagadas pela lógica do lucro. Soberania verdadeira não é muralha de pedra, mas raiz que se finca no solo do povo. Soberania sem justiça é bandeira morta; soberania com justiça é profecia viva. Não ao império, não à servidão; sim ao povo, sim à justiça.

A coragem de Flávio Dino é uma afirmação de que o Brasil decide seu próprio destino. Nenhum tribunal estrangeiro, nenhuma lei de fora, nenhum interesse externo tem autoridade sobre nosso solo, nossas instituições ou nosso povo. Defender a soberania é proteger a liberdade, honrar a memória dos oprimidos e garantir que a democracia seja um patrimônio vivo. Nesta luta, Dino se ergue como guardião do Brasil, reafirmando que soberania com justiça é resistência, é dignidade, é vida.

DNonato - Teólogo  do Cotidiano 

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