O deus que não reconheço
Um desabafo teológico de quem já não suporta os ídolos travestidos de divindade
Preciso dizer, com o peso do corpo e da alma: esse deus que tantos adoram, eu não reconheço. Não creio nele. Não consigo. Não me alcança.
Esse deus que me empurram nas bocas inflamadas, nos palcos convertidos em púlpito, nos altares de ouro congelado e nos silêncios cúmplices das sacristias... esse deus me fere. Me engasga. Me oprime, fere porque agride a dignidade; engasga porque não cabe no sopro do Espírito; oprime porque se veste com o peso da Lei sem o perfume da graça.
Como incenso amargo que sobe, mas não chega ao céu. Como fardo posto sobre os ombros dos outros, que Deus jamais pediu que carregássemos. Não creio no deus que uns e outros de batina, mitra e báculo dizem representar. Um deus entronizado em estruturas de pedra, que protege os fortes e silencia as vítimas.
Um deus vestido de hierarquia, de moral sem ternura, de rito vazio, e de poder sem compaixão. Um deus que acoberta abusos, que canoniza o silêncio, que se assenta em cátedras mas não escuta o clamor do povo¹.
Finge santidade, mas é cúmplice da dor que não assume, um deus que é só protocolo, cerimonial e batina engomada, mas que não conhece os becos, não senta nas calçadas, não fala a língua da dor e não chora com as mães sem resposta.
Não creio no deus que nomeia CEOs e não pastores, que se senta em mesas de conselho e não em rodas de partilha, não creio no deus que aplaude relatórios de lucro, mas não chora pelas demissões em massa do trabalhador assalariado.
Não creio no deus que calcula almas em planilhas, que transforma gente em recurso, e o pão em mercadoria. Que confunde gestão com missão, e transforma a comunidade dos pequenos em empresa de resultados.
Não creio no deus que veste terno de grife e pisa firme nos salões refrigerados, mas nunca se descalça diante da sarça ardente do sofrimento humano. Desconhece o chão da existência, onde Deus se revela em fogo que não consome, mas convoca. Não creio no deus dos bispos, padres que demitem pais e mães de família em nome da eficiência, do corte de gasto em vez de cortar no próprio salário, que fecha portas com justificativas técnicas enquanto crianças perdem o sustento.
Eles seguem o deus dinheiro, eles sabem que esse não é o Deus da vida, é um ídolo de mercado, travestido de divindade. Eu creio no Deus que desce aos porões das fábricas, que escuta o pranto dos dispensados, que caminha com os que saem cabisbaixos com a carteira na mão e a dignidade ferida. O Deus que não maximiza lucros, mas multiplica esperanças. O Deus que diz: “Conheço tuas aflições, e não te esqueço” (Ap 2,9).
Não creio nesse deus aprisionado no direito canônico, esculpido em estatutos frios e regimentos inflexíveis. Não creio no deus que pesa a fé na balança da obediência ao papel timbrado, e não na imensidão da compaixão de um coração dilatado².
Não creio no deus das normas litúrgicas absolutas, que confunde zelo com escrúpulo, e santidade com estéril conformismo, que só se manifesta quando o incenso é aprovado, a cor litúrgica está no tempo certo, com número de velas exato e todo gesto milimetricamente ensaiado. Não creio no deus que se irrita com uma cor fora da estação, mas não se abala com a fome no altar do mundo³.ão creio no deus que mora no missal, mas nunca passou por um leito de dor de um hospital. Não creio no deus que se emociona com latim, mas não fala a língua da dor. Não creio no deus que exige sacrifícios humanos, que sorri para cruzes em nome da disciplina, mas esquece quem está pendurado nelas⁴. O mesmo que ainda pede Isaque no altar, mas ignora que Deus já ensinou, com Abraão, a suspender a faca. Não deus creio no deus que se deixa comprar com moedas, e troca bênçãos por boletos pagos.
Não creio no deus que se contenta com aplausos, mas nunca se curva para lavar os pés de ninguém⁵.
Não creio no deus que me ensinaram a temer desde criança, que me diziam ser amor, mas que ainda usam para me calar, me julgar, me reduzir... esse deus me confunde.
Me disseram que esse deus era o Pai, mas ele me tratava como servo amedrontado. Me falaram de amor, mas senti vigilância. Me prometeram consolo, e me deram silêncio.
E confesso: por vezes, quase acreditei nele, quase o servi e quase me curvei. Mas ele nunca respondeu às minhas lágrimas, nunca veio na madrugada do meu desespero e nunca me abraçou quando tudo desabava.
Não creio no deus que abençoa armas, que prega submissão de mulheres em nome da “ordem”, que condena o corpo e a dança, mas celebra a morte em horário nobre, Não creio no deus que bate continência para ditadores, e cita versículos para justificar injustiças⁶.
Esse deus... é o bezerro de ouro dos nossos dias — fundido com medo, adorado com culpa, erguido pelos Arãos de hoje que dizem, como Arão diante do bezerro: “Foi o povo que pediu”⁷. Fundido com o medo, moldado com a culpa, polido com doutrina, e erguido como espetáculo. E seguem moldando deuses que aplaudem o mercado, enquanto Moisés ainda luta no alto da montanha por justiça e libertação.
Não creio no deus que criminaliza os pobres, que espiritualiza a miséria, que condena o afeto entre iguais e idolatra famílias de fachada. Esse deus é ídolo de mercado, produto de marketing teológico. climatizado, que mora no ar-condicionado e se recusa a suar com os trabalhadores, não suporta o calor das vielas.
Não creio no deus que celebra a ressurreição com cantos afinados, mas promove a morte com políticas frias e omissões calculadas.
O deus que sorri em aleluias dominicais, mas faz vistas grossas ao genocídio da juventude preta, ao extermínio dos povos originários, à dor dos migrantes e à fome cravada no estômago das periferias.
Não creio no deus que prega unidade nos púlpitos, mas semeia divisão nos bastidores — entre os que podem e os que não podem, os que servem e os que mandam, os puros e os impuros.
Não creio no deus de discursos bonitos e práticas excludentes, que levanta bandeiras de paz mas abençoa os senhores da guerra, não é o Deus de Jesus.
Não creio no deus, que fala de paz em congressos, mas nunca visita o chão da violência onde mães enterram filhos sem resposta.
Porque o Deus que creio é aquele que rompeu o túmulo e as cercas, que uniu o que o sistema separava, que estendeu os braços na cruz para abraçar todos os lados da história.
O Deus que ressuscita a vida onde só restavam ossos secos (Ez 37,5).
O Deus que não divide para reinar, mas se reparte para viver com todos.
“Eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21,5).
Porque enquanto houver cruzes, ele estará nelas. E enquanto houver túmulos, ele os fará tremer.
Porque Ele ainda caminha com os de Emaús, parte o pão no fim da tarde, reacende esperanças e revela-se no caminho. (Cf. Lc 24,13-35)
Não creio nesse deus que alguns celebram em catedrais, com véus e homilias polidas, enquanto crianças morrem sem pão e jovens pobres são ceifados no sonho e no corpo na periferia, Não creio no deus que teme o povo, que protege os donos da verdade, que prefere a casta dos puros à ternura dos pecadores⁸.
Mas eu creio.
Creio no Deus do Êxodo, que ouviu o clamor dos escravos⁹, que viu a aflição de Hagar no deserto¹⁰, a ousadia de Rute entre os espigadores¹¹, e a coragem de Ester diante do rei¹².
Creio no Deus dos profetas, que denunciaram reis e sacerdotes¹³, que rasgaram vestes, quebraram jugos, e disseram: “Não é este o jejum que quero?”¹⁴
Creio no Deus de Maria, que fez do ventre um tambor de libertação¹⁵.
No Deus de Jesus, que nasceu sem berço¹⁶, viveu sem casa¹⁷, e morreu sem defesa¹⁸ na entrada da cidade.
O Deus que tocou impuros¹⁹, perdoou adúlteras²⁰, questionou os moralistas²¹, ergueu os caídos²², escutou os invisíveis, e se retirava para chorar²³.
Esse Deus lavou pés²⁴, não lavou as mãos como Pilatos²⁵.
Suas mãos têm o cheiro do mundo, a poeira da estrada, a memória dos que ninguém toca.
Esse Deus multiplicou pão²⁶, não miséria.
Fez da mesa um espaço de reconciliação, não de controle,
onde cabe traidor e discípulo, onde pão e perdão se repartem juntos. E quando falaram em templo, ele preferiu o corpo humano²⁷. Esse Deus não precisa de mitra nem báculo, nem de documentos carimbados, nem de velas em número par.
Precisa de olhos que enxerguem, ouvidos que escutem, mãos que abracem.
Não exige sacrifício, deseja misericórdia²⁸.
Não busca templos cheios, mas corações abertos, feridos, dispostos a amar de novo.
E se me chamarem de herege por não adorar o deus deles, responderei com ternura e firmeza:
Não perdi a fé.
Apenas me libertei dos ídolos.
Eu vi o Deus vivo.
O Deus que sangra com os pobres, que sonha com os poetas, que anda com as mães de Maio, com os famintos da terra, com os corpos negados pela moral sagrada.
Esse Deus me chamou pelo nome.
Não disse “ajoelha”.
Disse:“Levanta! Caminha! Fala. Denuncia. Desperta. Luta. Ama. Renasce.”
Esse é o Deus que sigo.
O Deus da vida.
O Deus de todos os exilados.
O Deus que ressuscita o mundo onde os deuses do sistema só sabem enterrar.
DNonato – Teólogo do Cotidiano
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Notas:
1. Cf. Mt 23,4 – “Atam fardos pesados e os colocam sobre os ombros dos outros, mas eles mesmos não estão dispostos a levantá-los nem com um dedo.”
2. Cf. 1Sm 16,7 – “O Senhor não vê como o homem: o homem vê a aparência, o Senhor vê o coração.”
3. Cf. Tg 2,16 – “Se lhes disserem: ‘Ide em paz, aquecei-vos e saciai-vos’, mas não lhes derem o necessário para o corpo, que proveito há nisso?”
4. Cf. Os 6,6 – “Quero misericórdia, e não sacrifícios.”
5. Cf. Jo 13,14 – “Se eu, Senhor e Mestre, vos lavei os pés...”
6. Cf. Mt 4,6 – até o diabo cita versículos para manipular Jesus.
7. Cf. Ex 32,1-4 – Arão forja o bezerro de ouro “porque o povo pediu.
8. Cf. Lc 18,11 – “Ó Deus, eu te agradeço porque não sou como os outros homens...”
9. Cf. Ex 3,7 – “Ouvi o clamor do meu povo que está no Egito.”
10. Cf. Gn 16,13 – Hagar dá a Deus o nome: “Tu és o Deus que me vê.”
11. Cf. Rt 2,2 – Rute pede para respigar entre os campos, ousando quebrar convenções
12. Cf. Est 4,16 – Ester entra no palácio: “Se eu perecer, pereci.”
13. Cf. 1Rs 21 – Elias contra Acab e Jezabel por causa de Nabot.
14. Cf. Is 58,6 – “O jejum que eu quero é soltar as amarras da injustiça...”
15. Cf. Lc 1,46-55 – O Magnificat de Maria.
16. Cf. Lc 2,7 – “...porque não havia lugar para eles na hospedaria.”
17. Cf. Mt 8,20 – “O Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça.”
18. Cf. Mt 27,12-14 – “Mas ele nada respondeu.”
19. Cf. Mc 1,41 – Jesus toca e cura o leproso.
20. Cf. Jo 8,11 – “Eu também não te condeno.”
21. Cf. Mt 23 – série de “Ai de vós...” contra os hipócritas.
22. Cf. Lc 13,11-13 – Mulher encurvada, curada e erguida.
23. Cf. Jo 11,35 – “Jesus chorou.”
24. Cf. Jo 13,5 – Jesus lavou os pés dos discípulos.
25. Cf. Mt 27,24 – Pilatos “lavou as mãos”.
26. Cf. Mc 6,41 – Multiplicação dos pães e peixes.
27. Cf. Jo 2,21 – “Ele falava do templo do seu corpo.”
28. Cf. Mt 9,13 e Os 6,6 – “Quero misericórdia, não sacrifício.”
29. Cf. Ap 21,5 – “Eis que faço novas todas as coisas.”
30. Cf. Lc 4,18 – “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para evangelizar os pobres…”
31. Cf. Lc 24,13-35 – Jesus caminha com os desiludidos de Emaús, parte o pão e reacende a esperança.
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