segunda-feira, 28 de julho de 2025

Um breve olhar sobre João 11,19-27, Memória dos Stos: Marta, Maria e Lázaro, amigos de Jesus

 "Amizade que Move Pedras, Fé que Vence a Morte"

A narrativa de João 11,19-27 nos insere em um dos momentos mais densos e comoventes da caminhada de Jesus: a morte de Lázaro, seu amigo querido, e o encontro com Marta. Já realizamos uma análise hermenêutica sobre essa cena, cuja leitura recomendamos como aprofundamento desta reflexão.

Hoje celebramos a memória litúrgica dos santos Marta, Maria e Lázaro. A liturgia nos oferece duas propostas evangélicas para proclamação: Lucas 10,38-42 — texto refletido no 16º Domingo do Tempo Comum — e João 11,19-27, que escolhemos como base para iluminar este momento orante. Sabemos que, ao escolher este trecho do Evangelho de João, a liturgia nos convida a celebrar a amizade. Jesus era amigo íntimo dessa família de Betânia. E essa amizade evangélica, enraizada no cotidiano da casa, desperta em nós a memória e um questionamento essencial: Quantos amigos que se foram se nos fosse possível,  nós  trariamos  de volta do sono da morte?

No contexto de Jesus, não está em jogo apenas a dor de uma irmã diante da perda do irmão, mas sim o drama humano que atravessa todas as gerações: o confronto com o mistério do sofrimento, da morte e da fé. Marta, com sua dor e sua fé titubeante, representa todas as pessoas que já se colocaram diante do túmulo de alguém amado, tentando encontrar sentido. No coração desta cena ressoa uma das declarações mais intensas e decisivas do Evangelho — uma afirmação que transborda o núcleo da fé cristã:“Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que morra, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim, jamais morrerá” (Jo 11,25-26). Essas palavras não apenas consolam Marta — elas anunciam, profeticamente, a vitória sobre a morte e o horizonte último da esperança cristã. A amizade de Jesus com Marta, Maria e Lázaro revela-se como sinal antecipado da amizade divina com toda a humanidade. Como propõe a Fratelli Tutti (n. 215), a cultura do encontro se faz real quando o amor vence o distanciamento, e a dor do outro se torna nossa. Jesus não evita o sofrimento: Ele se aproxima, chora, toca, chama à vida. Nessa amizade, resplandece a possibilidade de um mundo onde o encontro é maior que a morte.

Quando  João  nos apresentar essa passagem, não está apenas registrando um milagre, mas elaborando teologicamente o sentido da vida, da morte e da esperança. A morte, que para tantos é ruptura e fim, para Jesus é ocasião de revelação, de glória, de manifestação do amor que vai até as últimas consequências. Não se trata aqui de anestesiar a dor, mas de atravessá-la com os olhos abertos, com fé que não nega o luto, mas o ilumina com a presença do Ressuscitado. A fé bíblica não romantiza a perda nem espiritualiza a ausência: ela chora, ela geme, ela se inquieta, como Marta. Mas também ousa crer mesmo quando tudo parece perdido.

A figura de Marta nesse texto é profundamente libertadora e subversiva. Aquela que, em Lucas 10,38-42, é lembrada por estar “ocupada com muitos afazeres” enquanto Maria escolhia a “melhor parte”, aqui assume protagonismo teológico. Marta é a interlocutora direta de Jesus. Sua fé não é passiva, ela confessa: “Eu creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus que veio ao mundo” (Jo 11,27). Trata-se da mais clara profissão de fé no Quarto Evangelho até aquele momento, feita por uma mulher, num tempo e cultura onde mulheres eram silenciadas. Enquanto muitos dos que se intitulam “guardiões da fé” hoje marginalizam a voz das mulheres, é a boca de Marta que professa a cristologia mais profunda do Evangelho. Ela, mulher, laica, moradora de Betânia – fora dos centros religiosos e longe dos templos –, torna-se ícone do discipulado maduro. A Igreja que se diz fiel a Cristo precisa aprender com ela a escutar as mulheres, não como exceção, mas como parte fundante do corpo eclesial.

O “Eu sou” que Jesus profere evoca diretamente a autorrevelação de Deus a Moisés: “Eu sou aquele que sou” (Ex 3,14). Aqui, o Nazareno, o amigo de Lázaro, se identifica com o próprio Deus que liberta, que tira do cativeiro, que escuta o clamor dos oprimidos. A ressurreição, portanto, não é apenas um evento futuro, mas uma presença atual. Jesus não aponta apenas para um dia distante em que os mortos reviverão, mas revela que a ressurreição já começa onde a vida é vivida com sentido, onde o amor vence o medo, onde a comunidade partilha o pão, onde a fé se traduz em solidariedade.  A comoção de Jesus diante do túmulo (Jo 11,35) – o versículo mais curto da Bíblia: “Jesus chorou” – desmonta qualquer imagem de um Messias insensível ou triunfalista. Ele chora como nós, se indigna diante da morte como nós, mas não se entrega ao desespero. Aqui está o Deus vulnerável, que se deixa afetar pela dor humana, revelando que a compaixão não é fraqueza, mas potência salvífica. Fé que não chora é teatro. Fé que não se indigna é omissão. Fé que não se move por amor é culto a si mesmo. Não é fé. É vitrine. E não raro, hoje se transformam ressurreições em entretenimento e a dor humana em espetáculo. Os púlpitos viram palcos, os milagres se tornam números para engajamento, e o choro de Jesus é abafado pelos gritos de autopromoção religiosa. Mas o Jesus de Betânia não oferece escapismo, oferece presença. Ele não ensina Marta a negar a dor, mas a reencontrar a esperança no meio dela. Ele não anula o sofrimento, mas caminha com seus amigos até o túmulo.

Do mesmo modo, a fé individualista, tão promovida por espiritualidades de consumo, não tem lugar nessa cena. Lázaro, Marta e Maria são uma família, uma comunidade doméstica. Jesus não os visita como indivíduos isolados, mas como amigos inseridos em relações. A ressurreição não é uma experiência privatizada, mas um dom à comunidade. A ressurreição não é um botão individual que se aciona no coração de quem crê. Ela é fermento que leveda a massa da comunidade, é sopro que empurra o povo para fora do túmulo coletivo. É no “nós” da fé que se experimenta a vitória sobre a morte. O milagre de Lázaro, que será descrito nos versículos seguintes (Jo 11,38-44), não é fim em si mesmo, mas sinal de algo maior: a ressurreição definitiva que se dará na cruz e no túmulo vazio.

A casa de Betânia é sacramento de uma Igreja doméstica. Ali, onde há amizade, mesa e lágrimas partilhadas, o Espírito sopra. Porque não é apenas no templo, mas na casa comum, que Deus escolhe fazer morada (cf. Jo 14,23). Há ecos aqui de outras passagens. Em Marcos 5,21-43, Jesus devolve a vida à filha de Jairo e cura uma mulher hemorrágica. Ambas figuras marginalizadas: a criança morta e a mulher impura. Em Lucas 7,11-17, Jesus ressuscita o filho da viúva de Naim, e a multidão reconhece: “Um grande profeta surgiu entre nós”. Todas essas cenas apontam para a superação dos limites impostos pela cultura e pelo sistema religioso sobre o corpo, a morte, o feminino, a fragilidade. A vida que Jesus oferece é inclusiva, restauradora, humanizadora. Lázaro, como o filho de Sarepta (1Rs 17,17-24), é devolvido vivo ao seio da casa. Como o vale de ossos secos em Ezequiel 37, sua história anuncia que Deus pode soprar vida até mesmo onde só há silêncio e sepultura. Como escreve Paulo: “Se morremos com Cristo, cremos que também viveremos com Ele” (Rm 6,8). Não se trata de esperar o céu para viver, mas de morrer para o egoísmo agora, a fim de que a vida nova floresça entre nós. Nosso tempo, marcado por necropolíticas que decidem quem pode morrer e quem pode viver, por economias que descartam os fracos, por sistemas que naturalizam a exclusão, precisa ouvir de novo a palavra de Jesus: “Eu sou a ressurreição e a vida”. Não como fórmula mágica, mas como projeto de mundo. A fé pascal não se acomoda ao mundo como está, mas o contesta com esperança. Não se conforma com túmulos cheios, mas proclama vazios os sepulcros da injustiça.

A tradição da Igreja, especialmente no Vaticano II, reforça esse compromisso com a vida. Gaudium et Spes afirma: “A esperança cristã, longe de diminuir a importância das tarefas terrenas, antes dá-lhes novo vigor” (GS 21). E em Evangelii Gaudium, o Papa Francisco adverte contra uma espiritualidade desencarnada: “A fé autêntica – que nunca é cômoda nem individualista – implica sempre um profundo desejo de mudar o mundo” (EG 183). Crer na ressurreição é recusar a resignação. É levantar a pedra da indiferença, como em João 11,39, e clamar com Jesus: “Lázaro, vem para fora!” (Jo 11,43). Esse grito é também político, é também ético, é também ecológico. A religião que se alia ao trono, ao mercado ou à bala não anuncia ressurreição, mas pactua com o império da morte. A fé que legitima o poder que mata não é boa nova, é blasfêmia política travestida de espiritualidade.

A tradição patrística nos ajuda a aprofundar esse mistério. Santo Ambrósio afirmava: “O Senhor chorou por Lázaro, para que tu aprendesses a chorar pelos teus”. Santo Agostinho via no episódio a imagem da conversão: Lázaro é a humanidade presa no túmulo do pecado e da ignorância, e a voz de Cristo é a Palavra que liberta. Já São João Crisóstomo advertia que a verdadeira morte é a da alma insensível à verdade. Assim, a fé em Cristo como ressurreição e vida não é uma fuga do mundo, mas um mergulho mais profundo em sua transformação.

Hoje, quando tantos usam o nome de Jesus para legitimar o ódio, o racismo, o armamento, o elitismo espiritual e o controle social, recordar a amizade de Jesus com Marta, Maria e Lázaro é recuperar o núcleo radical de sua mensagem: um Deus que faz morada entre os amigos, que chora com os enlutados, que caminha com os pobres, que levanta os caídos, que atravessa a morte e nos chama à vida plena. A comunidade cristã é chamada a ser sinal desta vida nova – um espaço onde a dor é acolhida, onde a fé é compartilhada, onde ninguém é deixado no túmulo. O túmulo de Lázaro não é apenas um lugar físico. É símbolo das estruturas de morte que ainda hoje sepultam vidas: a fome, o racismo, o machismo, a homofobia, o extermínio da juventude negra, a exploração do trabalho, a destruição da casa comum. Diante dessas realidades, a comunidade de Jesus é convocada a rolar a pedra, a gritar por vida, a não pactuar com o silêncio. Porque crer na ressurreição é viver como se ela já tivesse começado – e, de fato, ela já começou em Jesus. 

Que a celebração de hoje nos ajude a cultivar vínculos verdadeiros, que resistem ao tempo, à ausência e à morte — sustentados na fé naquele que é a Vida que vence toda morte.

Em cada  sincera, Jesus ainda chora. Em cada pedra movida pela solidariedade, Lázaro ainda se levanta. Em cada corpo curvado que é erguido pela ternura, a ressurreição acontece. E no silêncio das casas simples, onde amigos se reúnem para repartir o pão da esperança, ali o Cristo se senta de novo – com Marta, Maria e Lázaro – para ceiar com os vivos 

Oremos 

Senhor da vida, chama-nos para fora dos nossos túmulos. Grita nossos nomes, como chamaste Lázaro. Rola as pedras do medo, da omissão e do conformismo. Desata os lençóis da apatia, da mentira e do ódio. Ensina-nos a caminhar de novo, ainda trêmulos, ainda frágeis, mas vivos. E faz de nós – mesmo feridos, mesmo lentos – sinais de tua ressurreição no mundo. 

Amém.



DNonato – Teólogo do Cotidiano

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