segunda-feira, 5 de maio de 2025

Um breve olhar sobre João 6,22-29

Por: DNonato – Leigo católico, graduado em História, exercendo o sacerdócio comum dos fiéis¹

“Esforçai-vos, não pelo alimento que se perde, mas pelo alimento que permanece até a vida eterna” (Jo 6,27).

A cena do Evangelho de João apresenta uma multidão que, após comer do pão multiplicado por Jesus, continua a procurá-lo. Mas Jesus, com a sensibilidade do olhar divino, reconhece a motivação daquela busca: “Estais me procurando não porque vistes sinais, mas porque comestes pão e ficastes satisfeitos” (v.26). Era uma busca que não nascia da fé, mas da necessidade imediata, do desejo de resolver a fome do estômago. E então Jesus aponta para outra fome, mais profunda: “Esforçai-vos pelo alimento que permanece até a vida eterna”.

Esse versículo nos provoca. Que fome é essa que nos move hoje? Qual alimento estamos buscando com mais empenho?

A fome é um fenômeno humano total. Na antropologia, entendemos a fome não apenas como necessidade biológica, mas como expressão simbólica de um vazio. Fome de pertencimento, de amor, de reconhecimento. A Bíblia reconhece isso. O povo no deserto murmurava por pão, mas sua verdadeira carência era de confiança em Deus (Ex 16). O profeta Amós denuncia: “Eis que virão dias em que enviarei fome sobre a terra: não fome de pão, nem sede de água, mas de ouvir a palavra do Senhor” (Am 8,11).

Hoje, essa mesma fome ressurge. Em tempos de alta polarização política, crise social e moral, diferentes formas de fome se entrelaçam: por pão, justiça, paz e sentido. E, diante disso, cada grupo interpreta o Evangelho segundo seus próprios filtros:

Para uns, Jesus deveria ser um libertador social, um revolucionário a serviço das causas populares.

Para outros, Jesus é quase um gerente moral, defensor da ordem, da família tradicional e dos bons costumes. 

Mas Jesus escapa de todas essas reduções. Ele não se deixa instrumentalizar. Ele oferece a si mesmo como alimento que permanece. Convida à fé, não ao consumo. Ao compromisso, não ao conforto.

Na perspectiva teológica, Jesus é o Pão do Céu porque é o Verbo (Logos) encarnado (Jo 1,14). Alimentar-se dele é permitir que sua Palavra nos transforme, nos tire do egoísmo e nos faça pão para os outros. A Eucaristia, como nos ensina Santo Tomás de Aquino, não é um prêmio para os bons, mas remédio para os fracos. E como dizia o Papa Francisco, em sua voz profética que ainda ecoa: “Não se trata apenas de adorar o Corpo de Cristo no altar, mas de reconhecê-lo no corpo do irmão que sofre.” 

Na história da Igreja, essa consciência foi ganhando corpo. Francisco de Assis é um exemplo radical: tendo tudo, escolheu a pobreza. Tendo poder familiar, escolheu a fragilidade dos pobres. E ao abraçar o leproso, viu ali o rosto de Cristo. Francisco entendeu que não basta falar de Deus aos pobres; é preciso ser pobre com eles. Ele é símbolo daquele que, ao deixar-se alimentar por Cristo, se tornou alimento de compaixão para o mundo. 

Hoje, num Brasil ainda marcado por profundas desigualdades, não faz muito tempo que vimos pessoas em filas em busca de ossos, mães catando sobras, jovens sem rumo. E enquanto isso, o discurso polarizado nos paralisa: uns culpam “os comunistas”, outros acusam “os fascistas”, e a vida real grita entre as brechas.

A CNBB, fiel ao Evangelho, tem insistido: “O pobre não pode esperar.” O Documento de Aparecida reafirma que a opção preferencial pelos pobres “não é uma ideologia, mas uma exigência da fé cristológica” (DAp 393). O Papa Francisco, com sua coragem profética, pediu que a Igreja não seja aduaneira da graça, mas casa aberta. “A verdadeira fé em Jesus leva ao compromisso concreto com os últimos.”

Mas atenção: esse compromisso começa com uma pergunta pessoal: por que eu busco Jesus? É pela fé ou pela conveniência? É para que Ele resolva meus problemas ou para que me transforme num sinal do Reino?

A resposta de Jesus continua atual: “Esforçai-vos pelo alimento que não se perde.” Em grego, o verbo esforçar-se (ergázesthe) indica ação contínua, trabalho diário. Ou seja: a fé é um caminho, não um evento. É preciso cultivar, alimentar, partilhar.

Como viver isso?

– Quando lutamos contra o desânimo, mas insistimos na esperança: estamos buscando o alimento eterno.

– Quando escutamos com paciência, mesmo cansados: estamos nos tornando pão.

– Quando repartimos o pouco que temos com quem tem ainda menos: somos sinais de Cristo.

– Quando abrimos mão da vaidade religiosa para construir pontes de reconciliação: o Evangelho floresce.

E quando conseguimos superar a polarização, não porque ignoramos a política, mas porque colocamos o Reino acima das ideologias, então vivemos o que Paulo disse: “Já não sou eu quem vive, é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20).

O mundo precisa menos de discursos e mais de gestos. Menos de argumentos e mais de pão repartido. Menos de seguidores de Jesus e mais de discípulos que o imitem. Como Francisco de Assis, que rezava: “Senhor, fazei de mim um instrumento de vossa paz”, que também possamos rezar para que essa paz não seja uma forma de alienação. E, pedindo licença ao santo, ousamos ampliar sua oração:

"Senhor, permite que sejamos alimento na vida de nossos irmãos e irmãs; que a nossa vida desperte em cada pessoa a fome de justiça, de fraternidade; e, sobretudo, que juntos possamos superar a alienação político-religiosa. Que a religião vá além do papel de ópio — como afirmou um teórico — e seja, antes, alimento que fortalece e nos conduz à vida."

Que a nossa fé não seja só resposta ao estômago vazio, mas ao coração faminto de sentido. E que, ao buscarmos o alimento que permanece, sejamos nós mesmos um sinal de esperança para os que têm fome – de pão, de paz e de Deus.l

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¹ Cf. 1Pd 2,9; Lumen Gentium, 10: Pelo batismo, os fiéis tornam-se participantes do sacerdócio de Cristo, sendo chamados a oferecer a Deus, em toda parte, um culto espiritual e a testemunhar o Evangelho com a vida. O  exercício deste sacerdócio se manifesta na participação ativa na liturgia, na oração, na prática das virtudes e no testemunho cristão na família, no trabalho e na sociedade.

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