A cena é típica do Evangelho de João: uma multidão que busca sinais, um Jesus que oferece mais do que esperam, e um convite à fé que exige passagem do visível ao invisível, da necessidade imediata à fome mais profunda. “Que sinal realizas para que possamos ver e acreditar em ti?” (Jo 6,30), perguntam, evocando o maná dado por Moisés no deserto. Mas Jesus os corrige: “Não foi Moisés quem vos deu o pão do céu. É meu Pai quem vos dá o verdadeiro pão do céu” (Jo 6,32). A lógica messiânica não é a da substituição mágica das carências, mas da revelação progressiva do sentido da vida. O maná — aquele alimento misterioso da travessia do deserto (Ex 16,15) — prefigurava um dom maior: o próprio Jesus, o pão vivo descido do céu (Jo 6,51), que não apenas sacia, mas transforma a vida. Santo Agostinho de Hipona comenta: “Este pão é o alimento da alma. Não é com a boca do corpo que se come, mas com o coração que crê” (Tratados sobre o Evangelho de João, 26).
Aqui, o simbolismo do pão revela sua força. Na Escritura, o pão sempre foi mais que sustento: é sinal de aliança (cf. Gn 14,18), presença de Deus (cf. Lv 24,5-9), partilha e justiça (cf. Is 58,7). O maná era o pão do cuidado divino no deserto; o pão de cada dia, na oração ensinada por Jesus, é súplica humilde por uma vida digna (Mt 6,11). E o pão eucarístico é a entrega radical do Filho que se parte e se reparte por amor (Lc 22,19). No Evangelho de hoje, há um clamor humano legítimo: “Senhor, dá-nos sempre desse pão” (Jo 6,34). A multidão não sabe exatamente o que pede, mas intui que algo precioso está diante dela. E Jesus responde com uma das afirmações mais fortes do Quarto Evangelho: “Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim nunca mais terá fome, e quem crê em mim nunca mais terá sede” (Jo 6,35).
A fome, aqui, é símbolo da condição humana. Antropologicamente, o ser humano é um ser faminto — não apenas de comida, mas de sentido, de afeto, de pertencimento, de justiça, de transcendência. Jesus não responde a essa fome com discursos, mas com sua própria presença. Ele é o pão. Ele é a resposta. E, ao mesmo tempo, Ele nos ensina a sermos pão uns para os outros.
Santo Agostinho de Cantuária — missionário incansável na evangelização da Inglaterra e patrono da Igreja Anglicana — dizia com profundidade: “Onde o Cristo é partido, aí nasce o Reino. E onde o Reino não se traduz em pão e paz para os pequenos, o Cristo ainda não foi reconhecido.” Sua missão nos recorda que o Evangelho não é monopólio de instituições, mas fermento vivo em qualquer terra onde a justiça floresce.
Ao afirmar-se como pão da vida, Jesus também denuncia — ainda que silenciosamente — todos os sistemas que perpetuam a fome. E aqui entramos num terreno que exige coragem teológica: a dimensão social e política da fé cristã. No Êxodo, Deus ouviu o clamor do seu povo oprimido (Ex 3,7). No Evangelho, Jesus alimenta multidões com pão e palavra (Mc 6,34-44). E, na vida da Igreja, a fé se torna concreta quando luta contra as causas da exclusão.
Os documentos do CELAM, especialmente Medellín (1968) e Puebla (1979), afirmam que não se pode anunciar a Boa Nova a um povo faminto sem tocar as causas de sua miséria. A CNBB insiste que a missão da Igreja passa pela caridade política, pelo compromisso com os pobres e pela denúncia profética da injustiça. E o Vaticano II, na Gaudium et Spes, nos oferece um princípio decisivo: “As alegrias e esperanças, as tristezas e angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres, são também as alegrias e esperanças dos discípulos de Cristo” (GS 1). Ou seja, o pão do céu se revela também na luta por pão na terra.
O Papa Francisco, ao insistir nos três Ts — tierra, techo e trabajo (terra, teto e trabalho) — afirmou, em 9 de julho de 2015, durante o II Encontro Mundial dos Movimentos Populares, em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia:
- “Digamos juntos com todas as nossas forças: nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhuma pessoa sem a dignidade que o trabalho dá.”
Em tempos de polarização ideológica — entre discursos de direita e de esquerda — o Evangelho não se alinha automaticamente a nenhum campo. Ele é mais exigente. O Reino de Deus não se reduz a partidos ou programas, mas julga todos à luz da misericórdia, da justiça e da dignidade humana. Uma direita que idolatra o mercado, despreza os pobres e instrumentaliza a fé para legitimar projetos de poder trai o Evangelho. Uma esquerda que silencia diante de injustiças ou reduz a fé ao privado também corre o risco de se afastar da Boa Nova.
Dom Pedro Casaldáliga nos lembra: “Tudo é político, até o silêncio.” O Evangelho de Cristo está acima das ideologias, mas não é neutro: sempre se coloca do lado dos que têm fome (cf. Mt 25,35). Não se trata de neutralidade, mas de uma parcialidade sagrada: Deus opta pelos pobres. E a Igreja, para ser fiel, deve fazer o mesmo.
Se Cristo é o pão, a Igreja — seu Corpo — deve ser pão partido no mundo. Não basta celebrar a Eucaristia no templo; é preciso vivê-la nas ruas. São João Crisóstomo já alertava no século IV: “Queres honrar o Corpo de Cristo? Não o desprezes quando o vês nu. Honra-o na missa com vestes de seda, mas honra-o ainda mais nas ruas, nos pobres que têm frio e fome.”
Essa espiritualidade do pão é também uma espiritualidade da encarnação. Deus se fez corpo, se fez carne, se fez alimento (cf. Jo 1,14; Jo 6,51). E espera de nós a mesma entrega. Não podemos apenas contemplar a hóstia consagrada — precisamos nos deixar consagrar para o mundo. Ser presença que alimenta, escuta que acolhe, gesto que cura. Esse é o milagre que ainda precisamos oferecer.
O Evangelho termina com um convite: “Quem vem a mim não terá mais fome” (Jo 6,35). Mas sabemos que essa fome continua, dentro e fora da Igreja. Talvez porque nem todos tenham ainda vindo a Ele de verdade. Ou porque nem todos nós, seus discípulos, nos deixamos transformar em pão.
O pedido da multidão — “Senhor, dá-nos sempre desse pão” — é também o nosso. Mas não basta pedi-lo. É preciso desejar esse pão com fé e compromisso. É preciso aceitá-lo como dom e como missão. É preciso, sobretudo, partilhá-lo. Porque só assim o pão da vida será verdadeiramente nosso. E só assim, o mundo reconhecerá, no partir do pão, o rosto do Ressuscitado.
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¹ Cf. 1Pd 2,9; Lumen Gentium 10: Pelo Batismo, todos os fiéis tornam-se participantes do sacerdócio de Cristo. São chamados a oferecer a Deus, em todo lugar, um culto espiritual, testemunhando o Evangelho com a própria vida. Esse sacerdócio se manifesta na participação ativa na liturgia, na oração, na vivência das virtudes e no testemunho cristão na família, no trabalho e na sociedade.
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