quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 19, 3-12.

Na sexta-feira da 19ª semana do Tempo Comum do Ano Ímpar, a liturgia nos apresenta o evangelho de Mateus 19,3-12, um texto que, além de integrar o caminho de Jesus rumo a Jerusalém, é central para celebrações matrimoniais e catequeses sobre a vida familiar. É neste contexto que os fariseus, movidos não por sincera busca de sabedoria, mas com intenção de armadilha, perguntam se é lícito ao homem despedir sua mulher por qualquer motivo. A pergunta, aparentemente simples, traz consigo camadas de complexidade: polarizada entre as escolas de Hillel e Shammai, refletia tensões jurídicas, sociais e políticas do judaísmo do século I. Qualquer resposta poderia colocar Jesus em conflito com as autoridades e a opinião pública. Já vemos ressonâncias dessa tensão no episódio de João Batista denunciando o casamento ilícito de Herodes (cf. Mt 14,3-4), mostrando que a questão do divórcio era mais do que legal: era instrumento de controle moral e poder social.

Jesus, contudo, não se deixa aprisionar pelo legalismo ou pelas armadilhas farisaicas. Ele retorna ao princípio criador: “Não lestes que o Criador, desde o princípio, os fez homem e mulher?” (Gn 1,27). E continua: “Por isso, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne” (Gn 2,24). Ao evocar Gênesis, Jesus desloca o centro da discussão da exceção legal para o projeto divino: a união conjugal não é um mero contrato ou formalidade social, mas aliança indissolúvel, reflexo da fidelidade de Deus. Nos paralelos sinóticos, vemos Marcos 10,2-12 reforçar a reciprocidade, aplicando a exigência também ao homem, enquanto Lucas, de forma mais concisa (Lc 16,18), sublinha a radicalidade da fidelidade. A expressão “uma só carne” transcende a união física: aponta para comunhão de vida, entrega mútua e compromisso que se enraíza no amor-ágape, no qual cada cônjuge busca o bem do outro.

Historicamente, a prática do repúdio favorecia o homem e deixava a mulher vulnerável, marginalizada social, econômica e religiosamente. A resposta de Jesus, portanto, não é apenas teológica, mas contracultural e profética: denuncia sistemas patriarcais injustos e qualquer lógica que transforme pessoas em objetos descartáveis. Essa denúncia mantém-se atual diante das teologias da prosperidade e do domínio, que instrumentalizam a fé para lucro e poder; do individualismo que rompe compromissos em nome de felicidade desvinculada de responsabilidade; e da fé-mercadoria, que transforma sacramentos e relações humanas em produtos de consumo. Jesus propõe um amor que é radical, fecundo e resistente a qualquer lógica de interesse ou utilidade, lembrando que o amor verdadeiro exige entrega, compromisso e doação total.

A profundidade desse ensinamento se revela também nas dimensões antropológicas e psicológicas. A indissolubilidade do matrimônio não aprisiona, mas promove liberdade madura: a verdadeira liberdade não é ausência de vínculos, mas a escolha consciente de permanecer no amor mesmo diante de provas e dificuldades. Santo Agostinho, com sua profundidade mística, afirmava: “Ama e faz o que quiseres”, mostrando que o amor verdadeiro orienta todas as decisões para o bem do outro. São João Crisóstomo via no lar cristão uma “pequena Igreja”, onde marido e esposa se santificam mutuamente, educam os filhos e constroem comunidades que testemunham a graça de Deus. O Concílio Vaticano II, na Gaudium et Spes (48-52), reforça que o matrimônio é vocação de amor e serviço à vida, e não mero contrato civil, e o Papa Francisco, na Amoris Laetitia (n. 87-88, 170-171), enfatiza que a fidelidade conjugal é dom que sustenta, mesmo nas fragilidades e crises da vida cotidiana.

Do ponto de vista exegético, a “cláusula de exceção” de Mateus (“salvo motivo de fornicação”) exige cuidado hermenêutico. O termo grego porneia refere-se a uniões proibidas à luz da Lei (cf. Lv 18), e não autoriza o divórcio por adultério de forma simplista. Jesus não flexibiliza a aliança: ele a radicaliza, chamando à fidelidade plena e à consciência moral, lembrando que a verdadeira entrega é inseparável da responsabilidade e do cuidado pelo outro.

Reconhecendo que essa exigência pode parecer dura, Jesus introduz também o celibato “por causa do Reino dos Céus” (Mt 19,12). Dessa forma, tanto o matrimônio quanto a vida consagrada se apresentam como dons escatológicos, antecipações do banquete eterno (cf. Ap 19,7; Ap 21,4), revelando que o amor verdadeiro é íntegro, fecundo e total. A Igreja é chamada, nesse horizonte, a cuidar das famílias feridas, a orientar sem esmagar e a proclamar a verdade sem condenar, seguindo o exemplo de Cristo, que veio “cheio de graça e verdade” (Jo 1,14).

O evangelho desta sexta-feira da 19ª semana do Tempo Comum do Ano Ímpar não se limita a denunciar infidelidades conjugais: ele convoca à fidelidade social e eclesial. Denuncia líderes que promovem um evangelho de lucro, clericalismo que manipula o povo e mercantilização da liturgia e dos sacramentos. O amor que Jesus propõe deve ser vivido em todas as relações humanas, sustentando lares, comunidades e sociedade, resistindo à fragmentação e à cultura do descarte. É um amor que resiste à lógica do mercado, à instrumentalização das pessoas e ao domínio sobre o outro.

Além disso, o texto nos oferece imagens poéticas e simbólicas que ajudam a interiorizar o mistério do amor conjugal: o matrimônio como árvore de raízes profundas, capaz de resistir às tempestades; o amor como rio que sustenta e dá vida; a fidelidade como fogo que aquece sem consumir, constante e vivo. Essas imagens permitem perceber que o evangelho não é apenas norma ou lei, mas convite à vida plena, experiência de comunhão e antecipação do Reino.

Assim, a leitura litúrgica, catequética e contemplativa deste evangelho nos convida a viver e testemunhar o amor radical de Cristo, tanto na vida conjugal quanto na vida comunitária. É chamado a amar com compromisso total, a resistir às injustiças sociais e eclesiais, e a construir um mundo onde a fidelidade, o cuidado mútuo e a entrega sincera se tornam sinais proféticos do Reino de Deus. No final, participaremos do banquete eterno, onde não haverá lágrimas, separações ou morte, mas apenas o abraço definitivo do Esposo com sua Esposa, a plena comunhão de amor que transcende o tempo e revela a eternidade de Deus.

DNonato -Teólogo do Cotidiano 


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