quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 17, 20-25

 
Um breve  olhar  sobre Lucas 17, 20-25 
A passagem de Lucas 17,20-25 é uma das mais desafiadoras do Evangelho, pois confronta a expectativa humana com a realidade do Reino de Deus, proclamado não como espetáculo visível, nem como conquista temporal, mas como presença viva, transformadora e presente na vida de cada pessoa e na comunidade de fé. Na Liturgia da Igreja, esta leitura é proclamada nas Quintas-feiras da 32ª Semana do Tempo Comum, um momento que nos convida à vigilância constante, à reflexão profunda e à experiência transformadora da fé. O questionamento dos fariseus, “Senhor, virá neste tempo o Reino de Deus?”, revela uma expectativa muito concreta, profundamente humana, enraizada na história de Israel, nas promessas messiânicas e na memória do Êxodo, da libertação do Egito e da esperança de restauração nacional. Este contexto histórico é essencial: a Palestina do primeiro século vivia sob dominação romana, marcada por tensões sociais e religiosas e por um anseio profundo de libertação. Psicologicamente, a pergunta dos fariseus traduz a ansiedade natural do ser humano diante do desconhecido, o desejo de ver para crer, e a tendência de reduzir o mistério divino a medições e sinais palpáveis. Sociologicamente, revela o efeito da opressão estrutural sobre a percepção do sagrado e como as comunidades humanas, em tempos de crise, buscam líderes carismáticos e manifestações visíveis de poder divino.

A resposta de Jesus é radical: “O Reino de Deus não vem de maneira que se possa observar, nem dirão: ‘Está aqui’ ou ‘Está ali’; porque o Reino de Deus está entre vós” (entos hymōn). Lucas utiliza uma expressão carregada de significado. “Dentro de vós” indica a transformação interior, o trabalho silencioso da graça no coração humano. “No meio de vós” indica a presença concreta do Reino na vida comunitária, na fraternidade, na solidariedade e na prática da justiça. Santo Agostinho, nos seus comentários sobre os Evangelhos, enfatiza que o Reino se experimenta primeiro na alma transformada, mas não pode permanecer isolado; só se realiza plenamente quando se manifesta em atos de caridade, justiça e serviço. Santo Ambrósio reforça que a comunidade é o sinal visível do Reino, e que a Igreja, como Corpo de Cristo, deve ser testemunha viva desse Reino no mundo. Santo Irineu de Lyon lembra que a glória de Deus é o homem plenamente vivo, e que essa vida plena se dá em Cristo, tanto no interior do coração quanto na transformação do mundo. Aqui, a dimensão antropológica e teológica se entrelaçam, mostrando que a fé não é apenas experiência interior, mas ação e transformação ética que reverbera socialmente.

O paralelo sinótico amplia a compreensão: em Mateus 24,27, a vinda do Filho do Homem é comparada a um relâmpago que ilumina de um lado ao outro do céu, simbolizando visibilidade, universalidade e inevitabilidade. Marcos (13,26) afirma que ninguém poderá ignorar essa vinda final. Lucas, no entanto, introduz uma nuance crucial: antes da manifestação gloriosa, o Filho do Homem “deverá sofrer muito e ser rejeitado por esta geração” (v. 25). Essa combinação de visível e invisível, de presente e futuro, desafia as expectativas humanas de gratificação imediata e poder, convidando à vigilância, à paciência e à fidelidade ética. Historicamente, isso remete à rejeição do profeta e do Messias pela sociedade de seu tempo. Psicologicamente, evidencia a necessidade de resiliência diante da frustração de expectativas não atendidas, enquanto sociologicamente demonstra que sistemas de poder, tradições e interesses pessoais podem obscurecer a percepção do Reino. Filosoficamente, coloca o humano frente ao paradoxo entre visível e invisível, entre o temporal e o eterno, e convida à reflexão sobre a diferença entre aparência e realidade.

O símbolo do relâmpago é carregado de significado: anuncia a segunda vinda do Filho do Homem de forma inegável, mas também simboliza o momento de clareza e iluminação que o Reino provoca na consciência humana, rompendo a cegueira e a indiferença. Em Isaías 60,1-3, a luz da salvação resplandece sobre os povos; em Daniel 12,3, os sábios brilham como o firmamento; em João 1,9, a luz verdadeira ilumina todo homem. Psicologicamente, representa a epifania moral e espiritual, o insight que transforma a vida interior e obriga o indivíduo a assumir responsabilidade ética e comunitária. Sociologicamente, alerta contra a tentação de localizar o Reino em líderes carismáticos, sinais espetaculares ou estruturas de poder. Historicamente, lembra que a ação divina nunca se subordina aos planos humanos de controle ou manipulação, e que o Reino exige abertura à novidade e disposição para a transformação.

Lucas 17,20-25 também faz uma crítica implícita às teologias contemporâneas que distorcem a realidade do Reino. A teologia da prosperidade, que promete recompensas automáticas, riquezas e sucesso material em troca de fé, ignora o sofrimento, a rejeição e o compromisso ético exigidos pelo Reino. A teologia do domínio, que busca reproduzir poder temporal ou influência sobre outros, é desafiada pelo Reino que não se localiza em estruturas humanas nem se impõe por força. O individualismo espiritual, centrado na experiência privada e desvinculado da comunidade, ignora que o Reino se manifesta na vida relacional, na caridade, no cuidado com os marginalizados e na construção de justiça social. O Reino, segundo Lucas e a Doutrina Social da Igreja (Gaudium et Spes e Evangelii Gaudium), é realidade de justiça, paz e amor que transforma o mundo, e não objeto de investimento espiritual ou privilégio pessoal.

O clericalismo também é criticado implicitamente: a impossibilidade de dizer “Está aqui” ou “Está ali” impede a apropriação do Reino por hierarquias ou estruturas. O Concílio Vaticano II, em Lumen Gentium, reforça que a Igreja é povo em missão, chamado à sinodalidade, à escuta e ao serviço. O Papa Francisco, em Evangelii Gaudium, denuncia a centralização e a busca por prestígio, afirmando que a presença do Reino se revela na atenção aos pobres, na humildade e na ação concreta, e não no domínio ou na ostentação.

O sofrimento do Filho do Homem, destacado por Lucas, apresenta dimensões antropológica, teológica e histórica. O Reino se anuncia na tensão entre rejeição e glória, entre a persistência no bem e a cegueira de uma geração. Psicologicamente, revela a necessidade de maturidade, resiliência e perseverança; sociologicamente, evidencia como estruturas de poder, tradições e interesses pessoais podem bloquear a novidade ética do Reino. Filosoficamente, confronta a lógica humana de controle e gratificação imediata, convidando ao discernimento entre o que é visível e o que é real. Historicamente, a experiência do Reino sempre encontrou resistência, desde os profetas do Antigo Testamento até os mártires cristãos, mostrando que fidelidade exige coragem, paciência e disposição para sofrer.

Paralelos bíblicos ampliam a compreensão. Em João 3,3-5, Jesus enfatiza a necessidade do novo nascimento para ver o Reino, reforçando a dimensão interior. Em Atos 1,6-8, a expectativa de restauração política é confrontada com a missão do Espírito e a ação transformadora no mundo. Isaías 9,6-7 anuncia um Reino de justiça e paz, e Jeremias 31,31-34 aponta para a aliança interna, no coração e na mente, indicando que o Reino se realiza na transformação interior e nas relações humanas. Esses textos reforçam a visão lucana de que o Reino é presente, mas exige conversão, compromisso ético e ação transformadora.

A patrística reforça essas dimensões. Santo Irineu lembra que a vida plena é dom de Deus em Cristo, que se manifesta tanto interiormente quanto na vida ética e comunitária. Santo Agostinho destaca a necessidade de que a conversão interior se traduza em ação concreta de justiça e caridade. Santo Ambrósio reforça que a ação concreta não é separável da experiência espiritual. Os mártires e santos ao longo da história exemplificam que fidelidade ao Reino exige coragem, humildade, serviço e rejeição das tentações do poder, da riqueza e do prestígio.

O Reino, portanto, exige vigilância, discernimento, conversão interior, ação ética e compromisso comunitário. Desafia as teologias do mercado, do sucesso, do domínio e da fé como mercadoria. Filosofia, psicologia e sociologia convergem para mostrar que a compreensão do Reino envolve a transformação do interior, das relações humanas e das estruturas sociais, evidenciando que fé e ética são inseparáveis. O Reino não se compra, não se vende, não se centraliza; manifesta-se na humildade, na justiça, na misericórdia e no amor concreto.

A leitura de Lucas 17,20-25, proclamada nas Quintas-feiras da 32ª Semana do Tempo Comum, nos desafia a viver o Reino no presente. Ele nos alerta contra ilusões de poder, riqueza e controle, e nos convoca a cultivar comunidades de amor, justiça e serviço. A segunda vinda do Filho do Homem não invalida a urgência de viver o Reino agora; pelo contrário, nos impele à vigilância, à conversão, à ação ética, à solidariedade e à construção de uma sociedade justa. O Reino de Deus não é espetáculo, não se compra, não se vende, não se monopoliza; ele é Cristo presente, chamado à vida plena, à transformação interior e social, e se revela na fidelidade, na humildade, na caridade e na justiça até sua plena manifestação no fim dos tempos.

DNonato - Teólogo do Cotidiano 

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