quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 9,7-9

O texto de Lucas 9,7-9  proclamado na 25ª quinta-feira  do Tempo Comum  nos mostra  Herodes Antipas,  que ao ouvir falar das obras e milagres de Jesus, experimenta uma mistura intensa de perplexidade, medo e inquietação interior. Sua pergunta, tão simples quanto profunda, “Quem é este?” (Lc 9,9), atravessa séculos e continua a ressoar no coração de cada ser humano. Ele se pergunta se Jesus seria João Batista ressuscitado ou algum profeta antigo, mas sua inquietação não é curiosidade genuína; nasce do medo de perder controle, do desejo de manter poder e da incapacidade de perceber o divino que desafia a lógica humana. Como Saul, que se deixa cegar pelo orgulho e teme a perda da autoridade (1 Sm 15,10-23), Herodes olha para Jesus com olhos superficiais, julgando pelos aparatos visíveis, sem perceber que o Reino de Deus não se manifesta segundo medidas humanas.

Nos evangelhos sinóticos, Mateus 14,1-2 e Marcos 6,14-16 apresentam a mesma situação, confirmando a historicidade do episódio. Mateus mostra Herodes preocupado com os milagres de Jesus, enquanto Marcos registra sua especulação sobre João ressuscitado. Lucas, porém, acrescenta uma dimensão interior: ele apresenta a perplexidade de Herodes como fruto de sua cegueira espiritual e do medo, mostrando que discernir a identidade de Jesus requer mais do que informação ou curiosidade: exige abertura de coração, humildade e fé ativa. O contraste com os discípulos é nítido: enquanto Herodes se perde em especulações, os discípulos iniciam um caminho de compreensão gradual, como Pedro em sua confissão: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt 16,16). Aprender a ver Jesus não é simplesmente reconhecer sinais externos, mas acolher a revelação divina em sua totalidade.

A pergunta de Herodes nos confronta com a própria experiência humana. Jó, em sua dor, reconhece a majestade de Deus (Jó 42,1-6), e Moisés hesita diante da sarça ardente (Ex 3,11-14), mostrando que a percepção do divino exige coragem, paciência e humildade. O Antigo Testamento está repleto de exemplos semelhantes: Saul falha em reconhecer a vontade de Deus (1 Sm 15,10-23); Eli, diante da corrupção do filho, não consegue perceber a ação de Deus (1 Sm 3,1-18); o povo de Israel muitas vezes ignora os sinais divinos (Êx 32,1-6). Cada episódio ilustra a dificuldade humana em reconhecer a presença de Deus quando esta desafia estruturas de poder, interesses pessoais ou a zona de conforto.

O  tetrarca representa o poder humano inquieto diante do sagrado. Teme que a popularidade de Jesus ameace sua autoridade e se aproxima de uma lógica de dominação e controle, que hoje se reflete em práticas de fé instrumentalizada, teologia da prosperidade e culto à mercadoria espiritual. A psicologia evidencia que o medo do desconhecido provoca especulações e paralisia; a sociologia e a antropologia mostram que as estruturas de poder tendem a neutralizar aquilo que ameaça a ordem estabelecida. Jesus, no entanto, não busca prestígio ou domínio; proclama o Reino de Deus, liberta os oprimidos e chama todos ao serviço humilde e à justiça (Lc 4,18-19; Mt 11,28-30). Ele revela que a verdadeira autoridade não se impõe pelo medo, mas pelo amor e pelo serviço (Lc 22,24-27; Mt 20,25-28).

Santo Agostinho observa que a luz de Cristo ilumina apenas os corações abertos, enquanto o orgulho e o medo cegam aqueles que buscam apenas segurança ou prestígio (Sermões sobre Lucas, 9). Orígenes e Gregório de Nissa destacam que reconhecer a identidade de Jesus exige abandonar o ego, acolher a verdade e abrir-se à transformação. O Concílio Vaticano II ensina: “O homem descobre a verdade de Deus na vida cotidiana, nos encontros com os outros e no serviço aos necessitados” (Gaudium et Spes, 1; 22). Evangelii Gaudium e Fratelli Tutti lembram que a missão da Igreja não é dominação ou lucro, mas proclamação da verdade de Cristo, serviço concreto e construção de fraternidade (n. 215).

As Escrituras oferecem paralelos abundantes à perplexidade de Herodes. Isaías 53,3-4 descreve o Servo Sofredor, desprezado e rejeitado; Jeremias 12,10-11 denuncia os que não percebem a ação de Deus; Provérbios 3,5-6 ensina que a confiança no Senhor é essencial para discernir o caminho correto. Paulo, em Efésios 4,18, alerta que o entendimento obscurecido pela ignorância afasta do Espírito de Deus. Gedeão pede sinais para acreditar na missão que lhe é confiada (Jz 6,36-40), e Ana oferece oração e serviço no templo (1 Sm 1,9-20). Cada narrativa ilumina o episódio de Herodes: reconhecer Jesus exige mais do que conhecimento superficial; exige fé, humildade e entrega.

O contraste entre Herodes e os discípulos evidencia diferentes atitudes diante do mistério divino. Herodes busca segurança, controle e prestígio; os discípulos caminham na confiança, aprendendo a reconhecer sinais, interpretar parábolas e acolher a missão do Mestre. Davi, Natã e outros personagens bíblicos transformam medo em serviço, dúvida em confiança e poder em justiça. A missão de Jesus não se limita à realização de milagres, mas transforma corações e comunidades, denunciando estruturas injustas e chamando à santidade prática (Lc 10,25-37; Mt 25,31-46).

Aqui Herodes representa a resistência humana à transformação. Ele reconhece o extraordinário, mas não consegue integrar a experiência à sua vida. Este padrão se repete em sociedades e instituições que instrumentalizam a fé, transformando-a em espetáculo, mercadoria ou prestígio. Lucas nos lembra que a verdadeira fé se manifesta no serviço humilde, na justiça, no cuidado com o próximo e na abertura ao mistério divino. Reconhecer Jesus exige abandonar o egoísmo, o medo e a sede de controle, e aceitar o desafio de viver como Ele viveu: com compaixão, coragem e entrega.

A pergunta de Herodes, portanto, torna-se desafio profético: 

Quem é este?” 

Cada pessoa deve respondê-la com coragem, discernimento e entrega. Reconhecer Jesus como Filho de Deus e Salvador exige prática concreta da fé: cuidado com os pobres, denúncia da injustiça, serviço ao próximo, rejeição de clericalismo, teologias da prosperidade e fé como mercadoria. Assim como Pedro confessa, Jó se humilha, os profetas alertam, e os discípulos aprendem, somos chamados a abrir o coração, reconhecer a missão de Cristo e transformar nossas vidas e comunidades. O Reino de Deus se realiza na história quando cada ser humano responde com fé, amor e justiça, recusando toda forma de dominação, medo ou interesse próprio.

Finalmente, este texto nos lembra que reconhecer Cristo é um processo contínuo. Como Maria, que ponderava todas as coisas em seu coração (Lc 2,19), devemos permitir que a Palavra de Deus transforme nosso interior, nossas relações e nossa sociedade. A pergunta de Herodes continua a nos desafiar: será que vemos Jesus apenas como um fenômeno ou como o Filho de Deus que nos chama à conversão, à santidade e ao serviço concreto? Que possamos, em nosso tempo, responder com coragem, discernimento e ação, proclamando a verdade de Cristo não apenas com palavras, mas com vida, amor e justiça, tornando visível o Reino de Deus em nossa história cotidiana.



DNonato - Teólogo do Cotidiano 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pelo seu comentário.