Por DNonato
O Senhor deseja nos alimentar e indica claramente onde se encontra a verdadeira comida. Já no Antigo Testamento, aprendemos que "o homem não vive só de pão, mas de toda palavra que procede da boca do Senhor" (Dt 8,3). O alimento que Ele nos oferece é o Pão da Palavra, que, como um farol (Sl 119,105), deve ser acolhido com fé e abertura de coração. Não se trata apenas de escutar ou ler, mas de permitir que essa Palavra nos ilumine e transforme. Em Jesus, o Verbo feito carne (Jo 1,14), a Palavra divina se torna presença concreta e viva no meio de nós, a expressão perfeita do que o Pai queria nos dizer (cf. Santo Agostinho, Tratados sobre o Evangelho de São João, I, 17).
Ao afirmar: "Quem crê em mim possui a vida eterna. Eu sou o pão da vida [...] E o pão que eu darei é a minha carne para a vida do mundo" (Jo 6,47-51), Jesus nos apresenta algo que vai muito além da saciedade física. Ele nos convida a um banquete de vida plena, onde, como observa São João Crisóstomo, "a fé é suficiente para a vida" (Homilias sobre o Evangelho de São João, XLVII, 1). Sua Palavra e sua carne oferecida são alimento de eternidade, e só quem crê pode acolher esse dom. Assim como o maná sustentou os pais no deserto, mas não impediu a morte (Jo 6,49), Jesus se revela como o verdadeiro Pão da Vida (Jo 6,48), um alimento que transcende a existência terrena e nos conduz à eternidade. E ao afirmar que "o pão que eu darei é a minha carne para a vida do mundo" (Jo 6,51), Jesus aponta para o seu sacrifício redentor, a fonte da vida eterna que nos é oferecida na Eucaristia, penhor da nossa futura ressurreição (cf. Santo Irineu de Lyon, Contra as Heresias, IV, 18, 5). A fé, portanto, é o início da vida eterna já aqui e agora.
Essa proposta, porém, nos desinstala. A fé que Jesus propõe não é comodidade religiosa, mas uma adesão corajosa que transforma toda a existência, fazendo de nós "novas criaturas" (2 Coríntios 5,17). Como nos recorda o Concílio Vaticano II: “O homem não pode viver sem amor. Ele permanece para si mesmo um ser incompreensível, se não lhe é revelado o amor” (Gaudium et Spes, 24). Esse amor se manifesta plenamente em Cristo, o Filho único enviado ao mundo para que tenhamos vida por meio dele (1 João 4,9), o Pão vivo descido do céu que nos revela a profundidade do amor de Deus por nós.
Essa presença de Cristo se perpetua na Sagrada Escritura e na Eucaristia. A Igreja sempre venerou as divinas Escrituras como o próprio Corpo do Senhor (cf. Dei Verbum, 21), pois nelas encontramos a Palavra viva que nos alimenta. Na Eucaristia, esse encontro se aprofunda de maneira singular, pois ali Cristo se entrega por inteiro, Corpo e Sangue, tornando-se verdadeiramente nosso sustento. Como disse São João Crisóstomo, "Ele se deu a nós e pôs diante de nós o seu Corpo e o seu Sangue" (Homilias sobre o Evangelho de São Mateus, LXXXII, 5). Esse alimento não apenas nos sustenta em nossa jornada de fé, mas também nos incorpora mais profundamente ao Corpo de Cristo, a Igreja, tornando-nos portadores da sua presença e impulsionando-nos à missão de testemunhar o seu amor no mundo.
Pela fé e pela Eucaristia, começamos a experimentar já neste mundo os sinais da eternidade. A Eucaristia, como bem expressou Santo Inácio de Antioquia, é o "remédio da imortalidade, antídoto para não morrer, mas viver para sempre em Jesus Cristo" (Carta aos Efésios, 20,2). Ela é o "pão dos anjos" (cf. Sl 78,25), um alimento celestial que, assim como o maná sustentou o povo no deserto, nos fortalece em nossa peregrinação terrena. Quando recebemos esse sacramento ou nos ajoelhamos diante dele, nosso coração ecoa o clamor dos discípulos de Emaús: “Fica conosco, Senhor!” (Lc 24,29), reconhecendo-o presente de modo especial na fração do pão. E Ele, sempre fiel à sua promessa, entra em nossa história através deste sacramento, transformando-nos pela sua graça e fortalecendo-nos para recomeçar a cada dia.
Essa dinâmica da fé e da comunhão toca profundamente o ser humano em sua estrutura mais íntima. Como bem expressou Santo Agostinho, "Tu nos inquietaste para ti, e inquieto está o nosso coração enquanto não repousa em ti" (Confissões, I, 1, 1). Do ponto de vista antropológico, somos seres famintos: de sentido, de vínculo, de pertencimento. Quando essa fome essencial não encontra o alimento certo, busca-se satisfação em lugares errados — no consumo, no poder, no sucesso efêmero, que, como nos lembra a sabedoria bíblica, são frequentemente "vaidade e correr atrás do vento" (Eclesiastes 2,11). Mas só Deus, através do encontro com Cristo, o Pão da Vida, pode preencher esse vazio com um alimento que não perece, uma fonte que jorra para a vida eterna (cf. João 4,13-14).
A história do cristianismo mostra que o discurso de Jesus sobre o Pão da Vida foi, desde o início, um ponto de ruptura. Historicamente, muitos o abandonaram por não suportar a radicalidade da proposta, considerando suas palavras "duras" e incompreensíveis (Jo 6,60.66). A Eucaristia continua a ser um ‘sinal de contradição’ (cf. Lc 2,34), pois desafia nossa lógica de posse, de controle, de meritocracia. Nela, experimentamos a gratuidade do amor divino, um dom que não podemos merecer, e somos convidados a entrar na lógica da entrega, seguindo o exemplo de Cristo que se doa totalmente por nós. Na Eucaristia, aprendemos que, em última instância, tudo é dom, tudo é graça, um presente imerecido do amor infinito de Deus.
Nesse horizonte, Dom Paulo Evaristo Arns, profeta da dignidade humana, nos recordava com clareza: “Não se pode comungar o Corpo de Cristo sem se comprometer com o corpo sofredor do povo.” Essa profunda verdade encontra eco nas palavras de São Paulo: "Porque há um só pão, nós, que somos muitos, somos um só corpo, pois todos participamos do mesmo pão" (1 Coríntios 10,17). A Eucaristia, portanto, não é um refúgio espiritualista que nos aliena das dores do mundo, mas, pelo contrário, um encontro com o Deus que se fez carne e partilhou a nossa condição, impulsionando-nos a sair de nós mesmos para encontrar o Cristo que sofre no rosto dos irmãos e irmãs. Ao comungarmos o Corpo de Cristo, somos também chamados a ser Corpo de Cristo no mundo, instrumentos de sua paz e justiça, levando adiante a sua missão de amor e serviço.
Dom Adriano Hipólito reafirmava, como um verdadeiro profeta, que “O céu começa aqui,” ecoando as palavras do próprio Jesus: "o Reino de Deus já está entre vós" (Lucas 17,21). Lembrando que a Eucaristia, como memorial da Última Ceia – antecipação do banquete do Reino –, deve nos impulsionar na construção desse Reino de Deus, começando pela vivência concreta do corpo e da fé, transformando as realidades ao nosso redor com os valores do Evangelho. Essa vivência do corpo e da fé, alimentada pela Eucaristia, nos chama a sermos o Corpo de Cristo vivo no mundo, testemunhando uma fé que se traduz em obras de amor e justiça, construindo assim o Reino de Deus desde já.
Na mesa da Palavra e do Pão, a Igreja reencontra sua vocação profunda: ser sacramento de comunhão, a exemplo da unidade entre o Pai e o Filho (cf. João 17,21), num mundo dividido. Como muitos grãos reunidos formam um só pão, assim os fiéis, unidos em Cristo pelo Pão da Vida, tornam-se um só corpo, que é a Igreja (cf. São Cipriano, Sobre a Unidade da Igreja Católica, 7). Acolhamos, pois, com fé, essa abertura do coração ao mistério insondável do amor de Deus, e com reverência, a atitude de profunda adoração diante da sua presença real, o Pão da Vida. E vivamos, desde já, os sinais da eternidade que Ele nos promete, alimentados por este Pão que é garantia da nossa futura ressurreição e comunhão plena com o Pai.
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*Dnonato graduado em História
¹ Dom Adriano Hipólito (1974–1994), bispo de Nova Iguaçu, profeta da fé comprometida com a justiça social em tempos de repressão – símbolo de resistência durante a ditadura militar. Sua vida e a afirmação 'O céu começa aqui' ilustram como a Eucaristia inspira a construção do Reino pela vivência da fé engajada na realidade.
Referência: NONATO, Daniel. A Igreja de Nova Iguaçu no Regime Militar: Atentado à Fé. Publicado em 13 de novembro de 2012. .
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