quarta-feira, 7 de maio de 2025

Um breve olhar sobre João 6,35-40


Por: DNonato  - Teólogo do cotidiano, licenciado em História 

 “Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim nunca mais terá fome, e quem crê em mim nunca mais terá sede” (João 6,35). Estas palavras de Jesus, proferidas no contexto da multiplicação dos pães – um evento que ecoa a providência divina no Êxodo (Êxodo 16) e prenuncia a fartura messiânica (Isaías 25,6) –, transcendem a materialidade do alimento. 

Teologicamente, Jesus se revela como a própria substância da vida espiritual, um alimento que nutre a alma para a eternidade. Essa autodeclaração ecoa conceitos filosóficos da busca humana por sentido e transcendência, presentes em diversas tradições, desde a filosofia grega com a busca pelo summum bonum até as indagações existenciais sobre o ser e o nada. Historicamente, essa oferta ocorre em um contexto de expectativas messiânicas no judaísmo do século I, onde muitos esperavam um libertador político e econômico, e não um alimento espiritual. A decepção expressa em "vós me vistes, mas não acreditais" (João 6,36) revela a dificuldade de transpor a compreensão material para a dimensão espiritual da proposta de Jesus. 

Socioeconomicamente, a multidão faminta que seguia Jesus era um reflexo das desigualdades da época, onde a escassez de recursos era uma realidade para muitos. O milagre da multiplicação, portanto, não era apenas um ato de poder, mas um sinal da abundância do Reino que Jesus anunciava, contrastando com a penúria da vida cotidiana.

Hoje, a busca pelo "pão" assume novas e complexas formas. Em um cenário marcado pelo desemprego estrutural, pela crescente "uberização" das relações de trabalho e pela "pejotização" que fragiliza os direitos trabalhistas, a garantia do sustento diário se torna uma angústia constante para muitos. A promessa de "mais emprego e menos direitos" que por vezes acompanha modelos econômicos flexíveis, intensifica a insegurança e a vulnerabilidade de uma parcela significativa da população. A procura pelo pão material, essencial à sobrevivência e à dignidade humana, torna-se uma luta árdua e muitas vezes precarizada. Nesse contexto, a oferta de Jesus como o "pão da vida" adquire uma ressonância ainda mais profunda. Ele não ignora a fome física, como demonstra o milagre da multiplicação, mas aponta para uma necessidade mais fundamental: a fome de sentido, de dignidade e de um projeto de vida pleno. 

A privação material, a luta incessante pelo sustento, pode consumir a atenção mental e emocional, dificultando a abertura para a busca do alimento espiritual.

A religião, como bem apontado, pode se tornar um marcador de identidade grupal, um "nós" contra "eles". Sociologicamente, essa tribalização religiosa pode ser entendida como uma busca por pertencimento e segurança em um mundo globalizado e incerto, onde as identidades tradicionais são desafiadas. No entanto, essa dinâmica frequentemente se distancia da essência da fé cristã, que prega a universalidade do amor e a superação das barreiras (Gálatas 3,28). A polarização ideológica contemporânea, alimentada pelas redes sociais e pela desinformação, instrumentaliza a fé. A esquerda, influenciada por críticas históricas à aliança entre Igreja e poder (como na época da Inquisição ou em regimes autoritários), manifesta desconfiança. A direita, por sua vez, frequentemente reduz o Evangelho a uma cartilha moral conservadora, desconsiderando a amplitude da justiça social e do amor ao próximo pregados por Jesus. 

Historicamente, essa instrumentalização da fé não é inédita, como demonstra a utilização da religião para legitimar impérios e guerras ao longo da história.

A radicalidade do Evangelho, que desafia tanto as estruturas de poder quanto as comodidades individuais, ecoa a crítica filosófica às falsas dicotomias e a chamada à autenticidade do ser. Como dizia Dom Helder Câmara, "Se ajudo os pobres, me chamam de santo; se pergunto por que são pobres, me chamam de comunista". Teologicamente, essa radicalidade reside no amor incondicional de Deus e na exigência ética que dele deriva para os seus seguidores (Mateus 5-7). Socioeconomicamente, a fome mencionada por Dom Helder não é apenas a falta de alimento físico, mas também a ausência de oportunidades de trabalho digno, a precarização das condições laborais e a crescente desigualdade social, questões centrais na mensagem bíblica dos profetas (Amós 5,24; Isaías 58,6-7). O trabalho digno, além de prover o pão material, é fundamental para a dignidade humana, e sua precarização atinge a identidade e o senso de valor próprio.

A promessa de Jesus, "todo aquele que o Pai me dá virá a mim, e quem vem a mim, eu não o rejeitarei" (João 6,37), fundamenta uma teologia da inclusão radical. A condição para o acolhimento não é a perfeição moral ou a adesão a um sistema doutrinário fechado, mas o simples desejo de se aproximar. Isso subverte as lógicas de exclusão que historicamente marcaram as instituições religiosas e as sociedades humanas. A Eucaristia, central na teologia cristã como memorial da paixão, morte e ressurreição de Cristo e comunhão com o seu corpo e sangue (1 Coríntios 11,23-26), é um sacramento de peregrinos, de pessoas em caminho, imperfeitas e necessitadas da graça divina. Em um contexto de insegurança trabalhista e econômica, a Eucaristia se apresenta como um alimento que fortalece a esperança e a luta por condições de vida mais justas. A fé, nutrida por este sacramento, não é apenas um consolo passivo, mas uma fonte de resistência ativa e de esperança que impulsiona a transformação da realidade.

A antropologia bíblica, que compreende o ser humano como imago Dei (imagem de Deus) e, portanto, intrinsecamente relacional, encontra paralelo em filosofias que valorizam a intersubjetividade e a comunidade. No entanto, a história demonstra a constante perversão dessa vocação relacional através de sistemas de dominação e exclusão, onde a fé foi utilizada como ferramenta de controle, muitas vezes em contraste com os princípios éticos do Evangelho. O Concílio Vaticano II reconheceu essa ferida e pediu uma reforma do coração: uma Igreja samaritana, não tribunal (Lumen Gentium, n. 1). Em um mundo onde o trabalho muitas vezes desumaniza e fragmenta as relações, a fé cristã chama à construção de comunidades de apoio e solidariedade, espaços onde a partilha se estende da nutrição espiritual ao amparo material e à organização em busca de justiça social.

Nesse contexto histórico e na contemporaneidade, a voz do Papa Francisco se levanta com uma crítica contundente a uma certa espiritualidade que se apega excessivamente aos ritos e à ostentação de vestes caras, em detrimento de uma fé viva e encarnada na realidade dos pobres e marginalizados. Para Francisco, a liturgia e os paramentos sagrados devem servir como sinais que conduzem ao encontro com Cristo e com os irmãos, especialmente os mais necessitados, e não como barreiras ou demonstrações de poder eclesiástico. Sua insistência em uma "Igreja pobre para os pobres" ressoa com a urgência de atender às necessidades materiais daqueles que lutam diariamente pelo pão, seja ele o alimento físico ou a dignidade de um trabalho justo. Essa insistência não se limita à assistência caritativa, mas implica um engajamento profético na denúncia das estruturas que geram pobreza e na defesa de condições de trabalho dignas, reconhecendo que a privação do pão material frequentemente obscurece a busca pelo pão espiritual e atinge a própria dignidade humana.

Em diversas ocasiões, o Papa tem alertado contra o clericalismo e a tentação de transformar a fé em um espetáculo de formas vazias. Ele critica aqueles que se escondem atrás de ritos solenes e vestimentas luxuosas, buscando uma segurança formal que os distancia do verdadeiro espírito do Evangelho: a humildade, a simplicidade e o serviço. Francisco insiste que a alegria do Evangelho se manifesta em um coração pobre e em uma Igreja que se coloca a serviço dos últimos, a exemplo de Jesus que se fez pobre para nos enriquecer com a sua divindade (2 Coríntios 8,9). A preocupação do Papa ressoa com a mensagem bíblica que frequentemente adverte contra a hipocrisia e a valorização da aparência em detrimento da justiça e da misericórdia (Isaías 1,11-17; Mateus 23). Para Francisco, a beleza da liturgia deve estar a serviço da comunhão e da evangelização, e não da autoexaltação ou da busca por distinção. As vestes litúrgicas, portanto, devem ser dignas e simples, refletindo a pobreza de Cristo e a centralidade do mistério pascal, e não instrumentos de vaidade ou de separação entre clérigos e leigos. Em um mundo onde muitos são despojados de seus direitos e de sua dignidade no trabalho, a Igreja é chamada a ser um sinal de esperança e de solidariedade concreta.

A crítica de Papa Francisco não visa a abolir os ritos ou desprezar a liturgia, mas sim a purificá-los de qualquer vestígio de mundanismo espiritual e a recentrá-los na sua verdadeira finalidade: o encontro com Deus e a edificação de uma comunidade fraterna e solidária. Ele nos chama a discernir se a nossa participação nos ritos e o uso de símbolos sagrados nos aproximam dos pobres e nos impulsionam a um maior compromisso com a justiça social, lutando por trabalho digno e por condições de vida mais humanas para todos, ou se, pelo contrário, nos encerram em uma espiritualidade desencarnada e distante das necessidades do mundo.

A angústia contemporânea, exacerbada pela fluidez das identidades e pelas crises socioeconômicas (como o aumento da desigualdade, a precarização do trabalho, a "uberização" e a "pejotização"), leva muitos a buscar na religião um porto seguro. Contudo, Bento XVI, em Spe Salvi (n. 3), nos lembra que crer é entrar num relacionamento que transforma. Caritas in Veritate (n. 2) enfatiza a inseparabilidade entre a Eucaristia e a caridade — não há comunhão com Deus se não houver comunhão com os irmãos. Socioeconomicamente, essa conexão implica um engajamento concreto na superação das injustiças e na construção de uma sociedade mais equitativa, onde o trabalho seja fonte de dignidade e não de exploração. A Eucaristia, além de memorial, é profecia de um mundo reconciliado e justo, onde a partilha e a abundância prevalecem.

A advertência de Paulo aos Coríntios sobre comer e beber sem discernir o corpo, come e bebe sua própria condenação (1 Coríntios 11,29) ressoa como um chamado à consciência ética e à responsabilidade social diante do corpo de Cristo que se manifesta também nos corpos fragilizados daqueles que lutam por um trabalho justo e por condições de vida dignas. O "corpo" de Cristo na Eucaristia não pode ser dissociado do corpo social ferido pela fome, pela violência e pela exclusão, incluindo a exclusão do acesso a um trabalho decente e a direitos trabalhistas básicos. Isso exige uma maturidade espiritual que se traduz em ação no mundo, confrontando as estruturas de pecado que perpetuam a injustiça social e a exploração do trabalho, e promovendo a justiça e a solidariedade.

Em um cenário global marcado por conflitos, desigualdades e discursos de ódio, a universalidade do acolhimento de Jesus ("quem vem a mim, eu não o rejeito" - João 6,37) emerge como um farol de esperança para todos aqueles que se sentem marginalizados e excluídos, inclusive do mercado de trabalho formal e da proteção social. O Documento de Aparecida afirma que o rosto missionário da Igreja deve incluir e não excluir (n. 278), alcançando também os trabalhadores precarizados e desempregados. Paulo VI, na Evangelii Nuntiandi (n. 21), advertia que não se pode evangelizar sem ouvir o grito dos povos, incluindo o grito por trabalho digno e por justiça social. A evangelização autêntica implica encarnar-se na realidade do outro, com suas dores e esperanças, buscando soluções que transcendam as divisões ideológicas e promovam a dignidade humana, garantindo o direito ao trabalho como um dos pilares dessa dignidade. Socioeconomicamente, isso significa lutar por políticas públicas que reduzam o desemprego, combatam a precarização do trabalho e garantam direitos trabalhistas para todos. A fé pode e deve inspirar o engajamento político nessa busca por justiça sistêmica.

Acreditar em Jesus como o pão da vida, portanto, é um processo de desconstrução de nossas certezas e preconceitos, que nos leva a questionar as estruturas sociais e econômicas que geram desigualdade e sofrimento, incluindo a exploração do trabalho. É entregar-se a um Deus que nos acolhe em nossa fragilidade e nos chama à conversão contínua, a ponto de nos engajarmos na luta por um mundo mais justo, onde todos tenham acesso ao pão material e ao pão espiritual. João Paulo II lembrou na ONU que “nada do que é verdadeiramente humano pode ser estranho a Deus” (Discurso na ONU, 5 de outubro de 1995), e a busca por trabalho digno e por justiça social é profundamente humana. E se nada é estranho a Ele, por que nós excluímos tantos do direito a uma vida digna através do trabalho?

“Quem crê em mim tem a vida eterna” (João 6,40). O verbo está no presente. Não é uma promessa futura, mas uma realidade que começa agora, na nossa capacidade de transformar as realidades de injustiça e de lutar por um mundo onde o pão da vida seja acessível a todos, tanto no sentido espiritual quanto no material, através de um trabalho digno e da superação da exploração. Crer é viver a eternidade dentro do tempo, começando a construir o Reino de Deus aqui e agora, mesmo em meio ao inferno do desemprego, da precarização e da desigualdade. É deixar-se alimentar por aquele que continua a se doar, partindo o pão da vida e nos convidando a fazer o mesmo: "Tomai e comei... é por vós" – um convite que ressoa não apenas na liturgia, mas em cada ato de solidariedade com aqueles que buscam o pão de cada dia com dignidade

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