A liturgia coloca esse texto em celebrações penitenciais e nos dias comuns em que a Palavra confronta o coração, mas também encontra ressonância nas leituras da Semana Santa, quando a Igreja contempla a entrega de Jesus diante de uma religião corrompida pela aparência. Os “ais” de Mateus recordam os “ais” de Isaías contra a injustiça disfarçada de devoção, e ressoam ainda no livro de Ezequiel, onde Deus denuncia os que “rebocam com cal uma parede que desmoronará sob a tempestade” (Ez 13,10-15). Essa imagem conecta-se diretamente com os sepulcros caiados: fachadas brancas que escondem ruína e morte. Lucas 11,37-52 apresenta cena paralela, quando Jesus, à mesa de um fariseu, denuncia a obsessão pela pureza exterior enquanto se negligencia a justiça e o amor de Deus. Marcos 7,6-8 retoma Isaías para afirmar que o povo honra a Deus com os lábios, mas tem o coração distante. Hebreus 4,12-13 reforça que a Palavra de Deus é viva e eficaz, mais penetrante que espada de dois gumes, e desnuda as intenções do coração, não permitindo máscaras. Essa constelação de textos mostra que a denúncia da incoerência entre interior e exterior atravessa toda a Escritura: não é detalhe, mas essência da fé.
A imagem dos sepulcros caiados tem raízes antropológicas e culturais. No judaísmo, tocar um túmulo era tornar-se impuro, especialmente antes da Páscoa, por isso os sepulcros eram caiados para que ninguém os tocasse inadvertidamente. A beleza exterior escondia, na verdade, a corrupção da morte. Essa metáfora é devastadora: a religião pode manter aparências de santidade, mas por dentro ocultar decomposição espiritual. Psicologicamente, a hipocrisia é mecanismo de defesa: o sujeito, incapaz de aceitar sua fragilidade, recorre a máscaras religiosas para garantir prestígio e lugar. Sociologicamente, torna-se sistema institucionalizado: religiões que se apresentam como defensoras da verdade, mas funcionam como instrumentos de dominação e exclusão. Filosoficamente, é a alienação que Sócrates denunciava em seus diálogos, Kierkegaard identificava como fé transformada em espetáculo sem interioridade, e Heidegger apontava como o viver na superficialidade do “se”, sem autenticidade do ser. A antropologia mostra que toda cultura conhece rituais que podem perder vitalidade se se fixam na forma, esquecendo o sentido. Assim, a palavra de Jesus é denúncia e também libertação: chama a romper a ilusão da fachada para viver na verdade.
A tentação dos sepulcros caiados atravessa a história da Igreja. O clericalismo, tantas vezes denunciado, cria castas sagradas que se protegem sob ritos, mas esquecem a proximidade e o serviço. A Evangelii Gaudium alertava que o clericalismo infantiliza os leigos, impedindo-os de assumirem sua missão própria (EG 93). O Concílio Vaticano II, na Gaudium et Spes (n. 43), recordava que a fé deve impregnar toda a vida e não se reduzir a formalismo. A Fratelli Tutti (n. 86) insistia que o amor não pode ser palavra vazia, mas proximidade concreta. E mesmo após a morte do Papa Francisco, em 21 de abril de 2025, sua herança espiritual continua a interpelar a Igreja contra as máscaras da hipocrisia e do poder religioso que sufoca o Evangelho.
As falsas teologias de nosso tempo são sepulcros caiados. A teologia da prosperidade explora os pobres em nome de promessas ilusórias de riqueza; a teologia do domínio transforma Cristo em bandeira de projetos políticos autoritários; o individualismo espiritual reduz a fé a bem-estar subjetivo sem responsabilidade social; a fé como mercadoria se dissemina nas redes sociais, com pregadores que convertem o Evangelho em produto, sustentando aparências de unção enquanto negociam likes e ofertas. Há ainda o espetáculo litúrgico, onde a celebração da fé é transformada em show, em performance estética que impressiona os olhos, mas não toca os corações. Tudo isso brilha por fora, mas por dentro carrega a decomposição do Evangelho.
Santo Agostinho lembrava que Deus não se engana com aparências, porque sonda o coração. São João Crisóstomo denunciava bispos que buscavam honras sem viver a justiça, chamando-os de sepulcros enfeitados, mas cheios de podridão. São Gregório Magno advertia os pastores contra a tentação de buscar glória humana em vez de serviço humilde. Santo Irineu afirmava que “a glória de Deus é o ser humano vivo”, contrapondo-se a uma religião de morte. São Basílio denunciava os ricos que se chamavam cristãos, mas deixavam os pobres morrer de fome, como sepulcros que escondem injustiça sob uma fachada de piedade. Ao longo da história, santos como Francisco de Assis, Dom Romero e Dom Hélder Câmara ecoaram essa mesma denúncia, chamando a Igreja de volta à simplicidade, à verdade e ao serviço.
O centro de tudo é a autenticidade. Jesus já havia ensinado que do coração brotam tanto o bem quanto o mal (Mt 15,18-19). Uma fé de fachada não resiste ao juízo, porque não gera justiça, misericórdia e fidelidade. Os profetas denunciavam: “Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim” (Is 29,13). Paulo lembra que a lei sem amor é letra morta (2Cor 3,6). Tiago define a religião pura como o cuidado com os órfãos e as viúvas (Tg 1,27). Miqueias resume: “O que o Senhor exige de ti? Praticar a justiça, amar a misericórdia e caminhar humildemente com teu Deus” (Mq 6,8). A história mostra que sempre que a religião se cristaliza em fachada, ela perde vigor; mas quando retorna à autenticidade evangélica, torna-se fonte de renovação. A psicologia pastoral ensina que só quem assume a própria vulnerabilidade pode viver uma fé madura, livre de máscaras. A sociologia mostra que comunidades verdadeiras se constroem não de aparências, mas de solidariedade. A antropologia recorda que o coração é o centro da vida e da decisão, lugar da relação com o transcendente.
Mateus 23,27-32 é, portanto, uma convocação perene. Chama a Igreja a não ser sepulcro caiado, mas corpo vivo de Cristo, pobre e servidor. Confronta pregadores que mascaram o Evangelho com promessas fáceis e desafia cada discípulo a viver não de aparência, mas de autenticidade. A beleza do Evangelho não está na cal branca que encobre a morte, mas na vida nova que brota da ressurreição. A escolha é escatológica: ou se vive de fachada e se cai com ela, ou se vive na verdade do coração e se permanece no Ressuscitado. O cristão autêntico não é o que ostenta sinais externos de piedade, mas o que, no silêncio e na concretude, pratica a justiça, a misericórdia e a fidelidade. Essa é a beleza que não apodrece, a santidade que não se corrompe, a luz que não é fachada, mas vida que permanece.
DNonato – Teólogo do Cotidiano
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