Jesus afirma: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, porque pagais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, e deixais de lado o que há de mais importante na Lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade” (Mt 23,23). Aqui ressoa o eco dos profetas do Antigo Testamento. Amós, por exemplo, já denunciava o culto vazio de Israel: “Eu odeio e desprezo as vossas festas, não encontro prazer em vossas assembleias. Se me oferecerdes holocaustos, não me agradarei… antes, corra o direito como as águas, e a justiça como um rio perene” (Am 5,21-24). O profeta Miquéias também sintetiza a verdadeira religião: “O que o Senhor te pede é que pratiques a justiça, ames a misericórdia e andes humildemente com teu Deus” (Mq 6,8).
Jesus, portanto, não inova isoladamente, mas se coloca na esteira da tradição profética de Israel, que denuncia a religião de aparências e afirma a centralidade da vida em fidelidade ao Deus da justiça. O contraste entre o zelo por pagar o dízimo das ervas mínimas e o descuido com a justiça e a misericórdia mostra o quanto a religião pode se tornar caricatura de si mesma. É a tentação de absolutizar ritos e normas para encobrir a falta de conversão interior. Isaías já gritava: “Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim” (Is 29,13).
No versículo seguinte, Jesus utiliza uma imagem carregada de ironia: “Guias cegos, que coais um mosquito e engolis um camelo!” (Mt 23,24). É a denúncia contra os que fazem da religião um microscópio para vigiar pecados mínimos dos outros, enquanto se tornam cúmplices dos grandes pecados estruturais, sociais e políticos. Essa metáfora continua válida em nossos dias. Quantos líderes religiosos fazem escândalo por detalhes morais, mas permanecem silenciosos ou coniventes diante da corrupção, da violência contra os pobres, do racismo, da exploração da terra e da instrumentalização política da fé!
O Senhor prossegue: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, porque limpais o exterior do copo e do prato, mas o interior está cheio de ganância e intemperança” (Mt 23,25). Mais uma vez, Jesus desmascara o legalismo que se preocupa apenas com a aparência. Aqui podemos recordar o Salmo 51: “Criai em mim, ó Deus, um coração puro, e renovai dentro de mim um espírito firme” (Sl 51,12). O coração humano, na tradição bíblica, é o centro da pessoa; se o coração não é purificado, todos os ritos externos se tornam falsos.
Essa crítica de Jesus tem implicações profundas também em nossa realidade. Hoje, vemos a proliferação de templos luxuosos, de líderes religiosos que ostentam riqueza, de liturgias transformadas em espetáculo, de uma teologia da prosperidade que promete bênçãos materiais em troca de ofertas e dízimos, enquanto a justiça e a misericórdia ficam esquecidas. É a mesma lógica denunciada por Jesus: limpar o exterior do cálice, enquanto por dentro reina a ganância. O Papa Francisco, em Evangelii Gaudium, recorda que “a adoração do antigo bezerro de ouro encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura de uma economia sem rosto e sem objetivo verdadeiramente humano” (EG, 55).
O clericalismo, por sua vez, é uma das formas mais atuais de viver esse farisaísmo. Padres e líderes que se colocam como donos da comunidade, que exploram a fé do povo simples, que transformam o altar em palco e o Evangelho em mercadoria. São guias cegos que se ocupam com minúcias litúrgicas enquanto fecham os olhos ao sofrimento real do povo. A Constituição Gaudium et Spes denuncia que a Igreja não pode estar surda ao clamor dos pobres e às dores do mundo (GS, 1). No entanto, quantas vezes o clamor do povo é abafado por discursos moralistas e legalistas, que reforçam privilégios em vez de curar feridas!
Podemos dizer que a religião reduzida a formalismo é também mecanismo de defesa: ao exagerar nos ritos e nos detalhes, a pessoa evita confrontar-se com a própria sombra interior, com suas feridas e incoerências. É mais fácil julgar os outros do que reconhecer a própria necessidade de conversão. Aqui se aplica a palavra de Jesus: “Por que reparas no cisco que está no olho do teu irmão, e não percebes a trave que está no teu próprio olho?” (Mt 7,3).
Toda cultura e religião tende a criar ritos de purificação externa. Mas o Evangelho ultrapassa esse limite e exige a conversão do coração. Jesus não despreza os ritos, mas os coloca no lugar correto: eles devem ser expressão de uma vida transformada pela justiça e pela misericórdia, e não disfarce para ocultar a hipocrisia.
Por isso, a conclusão de Jesus é lapidar: “Fariseu cego, limpa primeiro o interior do copo, para que também o exterior fique limpo” (Mt 23,26). A verdadeira pureza começa de dentro. Não se trata de desprezar os sinais externos, mas de resgatá-los como reflexo de uma vida coerente. O mesmo princípio ecoa em Tiago: “A religião pura e sem mancha diante de Deus é esta: visitar os órfãos e as viúvas em suas tribulações e guardar-se da corrupção do mundo” (Tg 1,27).
Hoje, como profetas em nosso tempo, precisamos repetir essa denúncia. Não basta lotar templos, multiplicar cultos, organizar procissões ou debates sobre normas. Se a Igreja não for sinal de justiça, se não for refúgio para os pobres, se não denunciar a idolatria do dinheiro, do poder e das armas, estará limpando apenas o exterior do cálice. Muitos líderes cristãos se levantam para condenar artistas, festas populares ou tradições culturais, mas calam diante do genocídio da juventude negra, do extermínio dos povos indígenas, da devastação da Amazônia, da exploração do trabalho precário. Isso é engolir o camelo e coar o mosquito.
É tempo de resgatar a centralidade do Evangelho: justiça, misericórdia e fidelidade. Sem isso, qualquer religiosidade se torna máscara. São Romero da América nos recorda: “Uma religião de missa dominical, mas de semanas injustas, não agrada ao Senhor”. A Igreja deve ser lugar de conversão, e não palco de vaidade; deve ser voz dos sem voz, e não cúmplice dos poderosos. Portanto, com a advertência profética de Jesus: ou deixamos que Ele purifique primeiro o interior, ou continuaremos sendo guias cegos, levando outros ao abismo. Que esta Palavra proclamada na liturgia não se perca em nossas comunidades. É preciso olhar para dentro, permitir que Deus nos converta, e então, sim, viver uma religião que seja fonte de vida, justiça e misericórdia para todos.
DNonato – Teólogo do Cotidiano
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