domingo, 24 de agosto de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 23,13-22

A liturgia da Segunda-feira da 21ª semana do Tempo Comum nos coloca diante de um dos discursos mais incisivos de Jesus, registrado em Mateus 23,13-22, que se prolonga, de diversas formas, ao longo da semana, como uma pedagogia litúrgica que nos convida à conversão gradual e à reflexão profunda. O evangelho proclamado denuncia a hipocrisia religiosa, o formalismo e a manipulação da Lei, mostrando que o Reino não convive com a religião de fachada, mas com a verdade do coração. Marcos 12,38-40 e Lucas 11,37-52 descrevem de forma semelhante a atitude dos escribas e fariseus, enquanto Lucas 6,24-26 contrapõe os “ais” às bem-aventuranças. A repetição sinótica evidencia que a Palavra de Jesus é núcleo central de sua missão profética: Ele não denuncia circunstâncias isoladas, mas padrões que fecham o coração humano e a porta do Reino.
Jesus inicia com os “ais”, expressão que na tradição profética não é grito de raiva, mas lamentação dolorosa e anúncio de juízo. Isaías já usara o “ai” como denúncia da injustiça social: “Ai dos que ajuntam casa a casa, que anexam campo a campo, até não haver mais espaço” (Is 5,8). Amós clama contra o conforto que cega para a opressão: “Ai dos que vivem tranquilos em Sião e se sentem seguros em Samaria” (Am 6,1). Habacuque denuncia a exploração alheia: “Ai daquele que multiplica o que não é seu, acumulando riqueza à custa do sofrimento alheio” (Hb 2,6). Sofonias grita contra a cidade corrompida e opressora: “Ai da cidade rebelde e manchada, da cidade opressora!” (Sf 3,1). Esses “ais” se consolidam em Jesus como continuidade da tradição profética, denunciando injustiça, falsa religiosidade e manipulação da Lei, agora no contexto do Segundo Templo, em que escribas e fariseus detinham autoridade espiritual, mas muitas vezes desviavam o povo da liberdade e da justiça que a Lei buscava promover.
No Novo Testamento, os “ais” ganham contornos específicos. Lucas 6,24-26 contrapõe bem-aventuranças e avis: “Ai de vós, ricos, porque já tendes a vossa consolação... Ai de vós, quando todos vos elogiam...”. Marcos 12,38-40 denuncia escribas que exploram as viúvas, ostentam longas orações e buscam prestígio humano; Mateus 7,21-23 ecoa o mesmo espírito: não basta invocar o Senhor, é preciso fazer a vontade do Pai. Os paralelos sinóticos reforçam que a preocupação de Jesus é estrutural, denunciando padrões de religiosidade que endurecem corações, promovem exclusão e fecham portas ao Reino.
A exegese de Mateus 23,14-22 evidencia como juramento, ouro do templo e piedade aparente eram instrumentos de controle, valorizando o acessório acima do essencial. Psicologicamente, a hipocrisia esconde fragilidade, medo e necessidade de poder; sociologicamente, estruturas que se alimentam do medo reproduzem desigualdade; antropologicamente, ritos desconectados da vida tornam-se instrumentos de opressão; filosoficamente, ecoa Hannah Arendt sobre a banalidade do mal: estruturas aparentemente neutras produzem injustiça sistemática quando ética e compaixão são substituídas pelo formalismo.
A patrística aprofunda essa leitura: Santo Agostinho, em De Sermone Domini in Monte, vê nos “ais” pedagogia de Cristo que corrige corações com dor amorosa; Orígenes denuncia os que usam a Palavra como instrumento de poder; São João Crisóstomo ressalta que o grito de Jesus não é ódio, mas amor ferido. Tertuliano alerta que a justiça da fé é inseparável da coerência de vida; Gregório de Nissa denuncia a diferença entre aparência externa e vida interior autêntica. A tradição cristã mantém a coerência do ensinamento: a religião que escraviza é detestável, mas a fé vivida com verdade, coerência e misericórdia é caminho de salvação.
O Magistério contemporâneo reforça essa análise: Lumen Gentium lembra que a Igreja é ao mesmo tempo santa e sempre necessitada de purificação (LG 8). Evangelii Gaudium denuncia mundanidade espiritual e clericalismo que fecham o acesso ao Reino (EG 93-97, 102). Gaudium et Spes (63-66) aponta que estruturas sociais injustas sustentam alienação e impedem justiça e misericórdia. Francisco alerta contra a mercantilização da fé, ministérios que buscam likes e aprovação, e práticas que reproduzam hipocrisia farisaica.
Essas observações permitem um diálogo crítico com distorções teológicas contemporâneas: a teologia da prosperidade, ao prometer bênçãos em troca de dinheiro, reproduz a hipocrisia dos fariseus; a teologia do domínio instrumentaliza a fé para poder político ou social; o individualismo religioso transforma fé em mercadoria; o clericalismo privilegia ministros sobre a comunidade, fechando portas ao Reino. Cada distorção impede a vida plena em Deus e fecha portas à autenticidade do Evangelho.
Os “ais” também revelam a dimensão antropológica e espiritual: Deus quer autenticidade, misericórdia e serviço, não aparência ou formalismo. Cada discípulo é chamado a examinar o próprio coração, reconhecendo máscaras, preconceitos e interesses próprios. A fé plena integra coração, mente e ação, conduzindo à justiça, à compaixão e à comunhão. Jesus lamenta Jerusalém (Mt 23,37), mostrando que o “ai” é sempre acompanhado de misericórdia e convite à conversão, à coragem e à responsabilidade ética.
Desde Isaías até Apocalipse, os “ais” revelam que a denúncia divina permanece: formalismo, manipulação, opressão e hipocrisia continuam ameaças à vida plena. Mas a última palavra é esperança: “Eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21,5). Cada “ai” de Jesus é denúncia e convite: a fé plena liberta, integra vida e coração, transforma comunidades, promove justiça, misericórdia e autenticidade, mantendo coerência entre tradição profética, patrística e Magistério. É uma pedagogia contínua que atravessa séculos, chamando-nos a viver uma fé que abre portas, acolhe e ama como Cristo nos ensinou.

DNonato - Teólogo do Cotidiano 

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