“Ouvistes que foi dito: ‘Olho por olho e dente por dente’. Eu, porém, vos digo: não enfrenteis quem é malvado; ao contrário, se alguém te dá um tapa na face direita, oferece-lhe também a outra.”
(Mateus 5,38-39)
Esse princípio seria posteriormente incorporado à legislação mosaica, como vemos em Êxodo 21,24 — “olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé” — e também em Levítico 24,20 e Deuteronômio 19,21. A intenção original dessas passagens não era estimular a violência, mas conter a vingança desproporcional, tão comum nas culturas tribais da Antiguidade. Era, de certo modo, um avanço civilizatório. No entanto, mesmo esse avanço já revelava suas falhas: a justiça, ainda que escrita, não era cega — ela via a classe social do acusado e da vítima. Prova disso é que, no próprio Código de Hamurábi, a aplicação da pena variava conforme a classe da pessoa envolvida. Se um homem nobre causasse um dano a outro nobre, sofreria a pena conforme a regra. Mas se causasse o mesmo dano a um pobre, bastava pagar uma indenização. Se fosse o pobre a ofender o rico, era punido com toda severidade. A desigualdade não era exceção, mas parte da estrutura legal. Assim como hoje, o peso da lei recaía sobre os ombros dos pequenos, enquanto os poderosos, com posses e influência, escapavam por frestas abertas pelas próprias regras. A lei existia, mas a justiça, não para todos..
É neste contexto que a palavra de Jesus se torna escandalosa. Quando ele diz “Eu, porém, vos digo...”, não está apenas reinterpretando a lei; está fundando uma nova ordem ética, a partir do Reino de Deus. A proposta de Cristo é profundamente subversiva: interromper o ciclo da violência, não por resignação, mas por uma resistência ativa e profética, que desarma o agressor sem assumir sua lógica. Oferecer a outra face, caminhar a segunda milha, dar a túnica — são gestos que desestabilizam o opressor, pois negam a ele a reciprocidade da violência e o forçam a confrontar a própria injustiça, revelando sua crueldade, mas sem que o oprimido perca sua dignidade. Jesus não propõe submissão, mas liberdade interior. Ele não está dizendo “aceite tudo”, mas: não se torne aquilo que você combate.
O apóstolo Paulo, inspirado nesta ética do Reino, vai reforçar essa mesma espiritualidade: “Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem” (Romanos 12,21). E antes disso, já havia afirmado: “A ninguém pagueis o mal com o mal... se possível, quanto depender de vós, tende paz com todos” (Romanos 12,17-18). Paulo reconhece a dificuldade, mas aponta o caminho.
Ao longo da história, cristãos e não cristãos que acolheram o espírito dessa mensagem mudaram o mundo. Gandhi, profundamente inspirado pelo Sermão da Montanha, afirmou: “Se todos os livros sagrados se perdessem, mas restasse o Sermão da Montanha, nada estaria perdido.” Sua luta contra o Império Britânico não se fez com armas, mas com jejum, resistência civil e dignidade. Gandhi foi um hindu que compreendeu — e viveu — melhor que muitos cristãos batizados o que significa “dar a outra face”.
Nos Estados Unidos, Martin Luther King Jr., pastor batista e teólogo, levou adiante essa ética em sua luta contra o racismo. Marchou, pregou, foi preso e ameaçado — e nunca revidou com ódio. Dizia: “A escuridão não pode expulsar a escuridão; só a luz pode. O ódio não pode expulsar o ódio; só o amor pode.” Sua fidelidade ao Evangelho não era ingênua: era politicamente eficaz. Sua fé mudou leis e consciências. Ele viveu o Evangelho como cruz, e por isso foi martirizado como Cristo.
No Brasil, Dom Helder Câmara resistiu à ditadura com o Evangelho como escudo. Nunca incitou à violência, mas denunciou o sistema opressor. Dizia: “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que são pobres, me chamam de comunista.” Sua opção pelos pobres não era ideológica, mas evangélica. Caminhava com os humildes, sem medo dos poderosos.
Dorothy Stang, religiosa assassinada no Pará por defender os camponeses e a floresta, lia as bem-aventuranças momentos antes de ser morta. Foi fiel até o fim. A irmã Dorothy mostrou que a não violência não é passividade: é fidelidade escandalosa ao Cristo dos pobres.
Oscar Romero, arcebispo mártir de El Salvador, foi assassinado enquanto celebrava a Missa. Denunciava os crimes da elite e do Estado. Nunca pregou o ódio, mas a justiça do Reino. Sua morte revelou que o Evangelho, quando vivido com radicalidade, se torna intolerável para os senhores deste mundo.
A lógica do “olho por olho” ainda vive, infelizmente, nos sistemas penais e nas ideologias de morte. A pena de morte, por exemplo, ainda é aplicada em muitos países — entre eles, regimes islâmicos com interpretação radical da Sharia, e também Estados dos EUA sob forte influência da extrema direita cristã. Nesses contextos, a punição é irreversível, mesmo quando se descobre depois que o acusado era inocente. Uma justiça sem misericórdia se torna uma máquina de matar.
Hoje, vemos com preocupação como certas lideranças religiosas — inclusive cristãs — defendem armamentismo, extermínio de “bandidos”, e clamam por penas duríssimas em nome de Deus. Transformam a cruz em fuzil, o púlpito em palanque ideológico. Essa religião punitivista nega o Cristo que morreu perdoando seus algozes, e rebaixa a fé à ideologia.
Jesus nos oferece outra estrada: a do perdão, da reconciliação e da justiça restaurativa. Ele não veio revogar a Lei, mas levá-la à plenitude (cf. Mt 5,17). E a plenitude da Lei é o amor (cf. Rm 13,10). Ele não nos convida à neutralidade, mas a uma militância que resiste sem matar, que enfrenta o mal sem repetir sua lógica. Essa ética do Reino exige uma conversão do coração e das estruturas. É preciso abandonar o desejo de vingança e buscar a justiça que repara e liberta.
Como disse Jesus, “se a vossa justiça não for maior do que a dos escribas e fariseus, não entrareis no Reino dos Céus” (Mateus 5,20). A justiça do Reino não é medida por leis, mas por misericórdia. E a misericórdia verdadeira não ignora o mal, mas o transforma.
A espiritualidade que brota do Sermão da Montanha não é alienada, mas revolucionária. Não se trata de sofrer calado, mas de resistir com amor. O mundo não será salvo pela espada, mas pela cruz. Como afirmou o profeta Isaías, descrevendo o Servo Sofredor: “Maltratado, humilhou-se, e não abriu a boca. Como cordeiro levado ao matadouro” (Isaías 53,7). Foi assim que o mal foi vencido — não com mais violência, mas com entrega.
Essa mesma profecia messiânica já havia sido anunciada em Isaías 2,4, quando o profeta vislumbra o dia em que Deus julgará com justiça entre as nações, e então “transformarão suas espadas em arados e suas lanças em foices. Uma nação não levantará espada contra outra, e não se aprenderá mais a fazer guerra.” Aqui, Isaías nos apresenta o projeto de Deus: a superação da lógica bélica, do castigo, da punição e da morte, substituída por um mundo onde as ferramentas da guerra são convertidas em instrumentos de cultivo, paz e vida.
Essa visão de Isaías é a mesma que se realiza em Jesus: o Cristo não pegou em armas, mas tomou a cruz. Ele não feriu ninguém, mas foi ferido por todos. Seu caminho não destrói o inimigo, mas oferece redenção até ao que o trai. Ao transformar a espada em arado, Jesus nos convida a trocar a lógica da vingança pela da fecundidade, a construir pontes no lugar de muros, a semear justiça no lugar da violência.
E é por esse caminho que a Igreja deve andar: desarmada, fiel, compassiva. Não se trata de ser fraco, mas de ser forte o suficiente para não precisar revidar. A verdadeira força do Evangelho está na capacidade de perdoar, amar os inimigos e romper o ciclo do ódio.
Por isso, hoje e sempre, Jesus nos diz: “Eu, porém, vos digo...”, convidando-nos a escolher, a cada dia, o caminho da vida sobre a lógica da morte.
DNonato – Teólogo do Cotidiano
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