domingo, 15 de junho de 2025

Santidade existe? Entre os quatro "erres" da Rua, da Rejeição, do Reino e da Religião


Diante de um mundo que mercantiliza a fé, surge a pergunta: Santidade existe?

Entre a Rua, a Rejeição, o Reino e a Religião, buscamos a resposta. As Escrituras nos conclamam: 
  • "Sede santos, porque Eu sou santo" (Lv 19,2)
  • "Sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito" (Mt 5,48)
  • "Tornai-vos santos em todo o vosso proceder" (1Pd 1,15)
Contudo, essa santidade não está à venda. Ela não se encontra nas vitrines da fé, nem nos púlpitos dourados onde a espiritualidade se tornou um mero mercado. Jesus, em sua indignação, entrou no templo e expulsou os vendedores (Mt 21,12).

E por que Ele o fez? 

Porque a santidade não se negocia.  Ela é inegociável. Vale lembrar que, no contexto do Segundo Templo, os comerciantes e cambistas se beneficiavam do sistema sacrificial, transformando a casa de oração num espaço de opressão econômica e exclusão social. A ação de Jesus foi mais que simbólica: foi profética e revolucionária, uma denúncia contra a religião institucionalizada e vendida. A verdadeira santidade nasce na rua, no cotidiano, na realidade  sofrida  da quebrada, da comunidade, ela sofre na rejeição, nas incompreensões do mundo, vive pelo Reino, em serviço e amor, e resiste à religião do domínio que, por vezes, perdeu o coração.  
A Santidade é amor que não se dobra diante das adversidades, é a justiça que não se vende por preço algum, é a graça que não se compra, mas se recebe e se doa livremente. 

A santidade, no Antigo Testamento, é chamada à separação para Deus e compromisso ético com o próximo. Esse compromisso está enraizado na Torá, onde ser santo implica viver de forma justa, defender o estrangeiro, o órfão e a viúva — e isso se prolonga nos profetas.
Não esqueçamos: foi fora do templo que crucificaram o Santo. E é fora dos holofotes que muitos santos ainda caminham hoje, sem aplauso, sem reconhecimento, mas com inabalável fidelidade.

Essa reflexão surgiu em uma madrugada, quando assistimos a um filme nada ortodoxo, quase bobo, chamado “Um Santo Vizinho” (St. Vincent, 2014), estrelado por Bill Murray. O filme apresenta Vicente, um senhor alcoólatra e ranzinza que, apesar de parecer o avesso da santidade para os puritanos, encarna uma realidade dura e um amor profundo: cuida da esposa com Alzheimer, a quem se mantém fiel e dedicado (chegando a se vestir de médico, lembrando seu passado como herói de guerra condecorado), e ainda ajuda uma prostituta do bairro que  esta gravida (Naomi Watts) e uma mãe solo com uma criança necessitada de atenção (Melissa McCarthy).
Um garoto, Oliver (interpretado por Jaeden Martell), diz que não crê em santos durante uma aula e professor passa uma tarefa de cada um pesquisar um santo para apresentar em seminário da escola. Sabemos  que sua descrença nasce dos modelos que ele conhece: pessoas que rezam muito e vivem somente na igreja, mas sem praticar o amor, a compaixão e a solidariedade no cotidiano. Sua fé parece oca, como alerta a Escritura: “De que adianta, meus irmãos, alguém dizer que tem fé, se não tem obras? Será que tal fé pode salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisando de alimento diário, e um de vocês lhes disser: 'Vá em paz, aqueça-se e alimente-se até satisfazer-se', sem, contudo, lhes dar o que comer, de que adiantará isso? Assim também a fé, por si só, se não for acompanhada de obras, está morta” (Tiago 2,14-17).

Oliver, contudo, reconhece a santidade encarnada em Vicente, que não tem “cara de santo”, mas vive o amor concreto. O menino, mesmo em sua ingenuidade, pratica uma leitura espiritual mais autêntica e coerente do que muitos adultos de fé institucionalizada.
Esse filme nos recordou outro clássico brasileiro, “Deus é Brasileiro” (2003), dirigido por Carlos Diegues, com Antônio Fagundes no papel de Deus e Wagner Moura como Quinca das Mulas — um pescador ateu do sertão que é considerado por Deus como possível substituto para governar o céu enquanto Ele tira férias. Curiosamente, Quinca, mesmo sem fé institucional, vive uma santidade prática e profunda, mais real que a de muitos cristãos nominais. Ele é generoso, justo, cuidadoso com os outros, e sobretudo, profundamente humano.

Esses dois personagens, Vicente e Quinca, de mundos tão distintos, e longe dos modelos pintados em nossas Igrejas, convergem em um ponto crucial: nos ajudam a compreender que a santidade não é uma moldura religiosa nem um diploma canônico. É presença, é serviço, é ternura concreta. É a mística do cotidiano que se transforma em prática amorosa.
Isso ecoa a exortação de Paulo em Filipenses 2,3-4: “Nada façam por ambição egoísta ou por vaidade, mas humildemente considerem os outros superiores a vocês mesmos. Cada um cuide, não somente dos seus interesses, mas também dos interesses dos outros.”

E como Jesus mesmo ensinou:
“Quem quiser tornar-se importante entre vocês deverá ser servo, e quem quiser ser o primeiro deverá ser escravo; como o Filho do Homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mateus 20,26-28).

A Bíblia está cheia de histórias assim, onde Deus age de maneiras inesperadas e através de pessoas improváveis, mostrando que sua escolha vai além da lógica humana:
“Mas Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios, e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes. Escolheu as coisas humildes do mundo, as desprezadas e as que não são, para anular as que são, a fim de que ninguém se vanglorie na sua presença” (1 Coríntios 1,27-29).

Naamã, o sírio pagão, cura-se pela fé e pelo gesto humilde de obedecer à palavra do profeta (2Rs 5). A viúva de Sarepta acolhe Elias com o pouco que tem e é exaltada por Jesus (Lc 4,26). A mulher samaritana, rejeitada e marcada por feridas existenciais, se torna evangelizadora (Jo 4). Pedro negou, Paulo perseguiu — mas ambos foram alcançados pela graça que ultrapassa qualquer doutrina.
“O homem vê a aparência, mas o Senhor olha o coração” (1Sm 16,7).
Essa verdade é um chamado à autenticidade. O profeta Oséias já nos lembrava: “Pois desejo misericórdia, e não sacrifícios; conhecimento de Deus, mais do que holocaustos” (Oséias 6,6).

A verdadeira adoração não está nos ritos vazios, nas missa, cultos  mas na transformação do coração em atos de justiça e bondade, como clamava Isaías: “Aprendei a fazer o bem; buscai a justiça, ajudai o oprimido, fazei justiça ao órfão, defendei a causa da viúva” (Isaías 1,17).

Dom Oscar Romero, mártir do nosso tempo, viveu a santidade profética da compaixão. Enfrentou as “semanas injustas” com o corpo e a voz em defesa dos pobres. Sua santidade nasceu da fidelidade à carne ferida do povo. Um episódio marcante foi sua homilia em 23 de março de 1980, onde, diante das Forças Armadas salvadorenhas, exclamou:
“Em nome de Deus, e em nome deste povo sofrido, cujas lamentações sobem até o céu cada dia mais tumultuosas, eu lhes peço, eu lhes suplico, eu lhes ordeno: parem com a repressão!”
No dia seguinte, foi assassinado enquanto celebrava a Eucaristia. Sua vida, como a dos profetas, foi semente de um novo mundo.

E como repete um velho padre sábio:
“Há mais comunhão entre cachaceiros e prostitutas do que em muitas igrejas"  e ousamos  completar: Deus falou por uma jumenta contra um profeta vendido (Nm 22,28); por que não falaria hoje por pecadores rejeitados por normativas que fecham a porta para eles, enquanto tantos de batina , de mitra e com milhares de seguidores nas redes vendem o nome de Deus a serviço do poder? 
 Jesus mesmo declarou diante dessa realidade: “Os publicanos e as prostitutas vos precedem no Reino de Deus” (Mt 21,31).

Santidade não se mede por presença em cultos,  conhecimento  teológico ou diploma de sacramento  recebido, mas pela capacidade de encarnar o amor de Deus no mundo.
Como diz a canção popular de Fernando Mendes: “Não adianta ir à igreja e fazer tudo errado. Você quer a frente das coisas olhando de lado
O céu que te cobre não cobra a luz da manha. Desperte pra vida, acredite: a sorte é irmã”

E ainda:
“Não adianta um pé de coelho no bolso traseiro. Nem mesmo a tal ferradura suspensa atrás da porta
Pois toda sorte tem quem acredita nela”
É quase como dizer: não adianta ter aparência de fé sem uma vida de fé. A “sorte” da santidade é irmã da confiança, da prática, da coerência — não do teatro.
E essa mesma denúncia atravessa o rap profético de Godzila do Rap, no seu “Evangelho dos Fariseus”, que questiona a hipocrisia dos que oram alto e pregam prosperidade, mas ignoram o pobre à porta. Godzila, com sua linguagem contundente, escancara a contradição de uma fé que acumula e exclui. É voz periférica, profética, que remete aos clamores dos salmos e dos profetas.
E nessa mesma trilha, o saudoso Papa Francisco, profeta da ternura e da coerência, dizia com firmeza: “É melhor ser ateu do que um cristão hipócrita.” (Audiência Geral, 23 de fevereiro de 2017).
Ele nos lembrava que não basta usar o nome de Cristo — é preciso viver como Ele viveu: com compaixão, verdade, justiça e serviço. O escândalo não está no mundo, mas em cristãos que dizem crer, mas agem como se Deus fosse uma ideia vazia ou uma moeda de troca religiosa.
Essa crítica poética nos remete diretamente ao Evangelho segundo Mateus 25,35-40, onde Jesus aponta com clareza os critérios do juízo final:
Tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era estrangeiro, e me acolhestes; estava nu, e me vestistes; enfermo, e me visitastes; preso, e fostes me ver.”
“Sempre que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizestes.”

A pergunta que emerge é dura:  Quem são, então, os verdadeiros santos? 

Aqueles que rezam e condenam, ou aqueles que amam sem alarde, servem sem palco e cuidam sem manual? Jesus foi direto: Nem todo aquele que me diz: ‘Senhor, Senhor!’ entrará no Reino dos Céus, mas aquele que faz a vontade do Pai” (Mt 7,21).
E qual é essa vontade, senão amar como Ele amou (Jo 13,34), fazer da vida um dom para os outros (1Jo 3,16), e ser presença viva de ternura e justiça?
“Deus é amor, e aquele que ama é nascido de Deus e conhece a Deus. Quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor” (1 João 4,7-8).
“Não há amor maior do que aquele que dá a sua vida pelos seus amigos” (João 15,13).
Talvez por isso, aquele garoto no filme, mesmo sem saber rezar o credo, conseguiu fazer o mais verdadeiro dos atos de fé: reconhecer um santo onde o mundo só via um velho bêbado. Porque santo é quem ama. Santo é quem cuida. Santo é quem fica, mesmo quando todos vão embora.
E isso, nenhuma norma consegue medir. 
Nenhuma teologia sistemática consegue conter. Só a vida, vivida em profundidade,  consegue revelar.

DNonato – Teólogo do Cotidiano, longe da santidade pintada por muitos

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