A boa política está ao
serviço da paz
1. «A paz esteja nesta
casa!»
Jesus, ao enviar em missão
os seus discípulos, disse-lhes: «Em qualquer casa em que entrardes, dizei
primeiro: “A paz esteja nesta casa!” E, se lá houver um homem de paz, sobre ele
repousará a vossa paz; se não, voltará para vós» (Lc 10, 5-6).
Oferecer a paz está no
coração da missão dos discípulos de Cristo. E esta oferta é feita a todos os
homens e mulheres que, no meio dos dramas e violências da história humana,
esperam na paz.[1] A «casa», de que fala Jesus, é cada família, cada
comunidade, cada país, cada continente, na sua singularidade e história; antes
de mais nada, é cada pessoa, sem distinção nem discriminação alguma. E é também
a nossa «casa comum»: o planeta onde Deus nos colocou a morar e do qual somos
chamados a cuidar com solicitude.
Eis, pois, os meus votos no
início do novo ano: «A paz esteja nesta casa!»
2. O desafio da boa política
A paz parece-se com a
esperança de que fala o poeta Carlos Péguy;[2] é como uma flor frágil, que
procura desabrochar por entre as pedras da violência. Como sabemos, a busca do
poder a todo o custo leva a abusos e injustiças. A política é um meio
fundamental para construir a cidadania e as obras do homem, mas, quando aqueles
que a exercem não a vivem como serviço à coletividade humana, pode tornar-se
instrumento de opressão, marginalização e até destruição.
«Se alguém quiser ser o
primeiro – diz Jesus – há de ser o último de todos e o servo de todos» (Mc 9,
35). Como assinalava o Papa São Paulo VI, «tomar a sério a política, nos seus
diversos níveis – local, regional, nacional e mundial – é afirmar o dever do
homem, de todos os homens, de reconhecerem a realidade concreta e o valor da
liberdade de escolha que lhes é proporcionada, para procurarem realizar juntos
o bem da cidade, da nação e da humanidade».[3]
Com efeito, a função e a
responsabilidade política constituem um desafio permanente para todos aqueles
que recebem o mandato de servir o seu país, proteger as pessoas que habitam
nele e trabalhar para criar as condições dum futuro digno e justo. Se for
implementada no respeito fundamental pela vida, a liberdade e a dignidade das
pessoas, a política pode tornar-se verdadeiramente uma forma eminente de
caridade.
3. Caridade e virtudes
humanas para uma política ao serviço dos direitos humanos e da paz
O Papa Bento XVI recordava
que «todo o cristão é chamado a esta caridade, conforme a sua vocação e segundo
as possibilidades que tem de incidência na pólis. (…) Quando o empenho pelo bem
comum é animado pela caridade, tem uma valência superior à do empenho
simplesmente secular e político. (…) A ação do homem sobre a terra, quando é
inspirada e sustentada pela caridade, contribui para a edificação daquela
cidade universal de Deus que é a meta para onde caminha a história da família
humana».[4] Trata-se de um programa no qual se podem reconhecer todos os
políticos, de qualquer afiliação cultural ou religiosa, que desejam trabalhar
juntos para o bem da família humana, praticando as virtudes humanas que
subjazem a uma boa ação política: a justiça, a equidade, o respeito mútuo, a
sinceridade, a honestidade, a fidelidade.
A propósito, vale a pena
recordar as «bem-aventuranças do político», propostas por uma testemunha fiel
do Evangelho, o Cardeal vietnamita Francisco Xavier Nguyen Van Thuan, falecido
em 2002:
Bem-aventurado o político
que tem uma alta noção e uma profunda consciência do seu papel.
Bem-aventurado o político de
cuja pessoa irradia a credibilidade.
Bem-aventurado o político
que trabalha para o bem comum e não para os próprios interesses.
Bem-aventurado o político
que permanece fielmente coerente.
Bem-aventurado o político
que realiza a unidade.
Bem-aventurado o político
que está comprometido na realização duma mudança radical.
Bem-aventurado o político
que sabe escutar.
Bem-aventurado o político
que não tem medo.[5]
Cada renovação nos cargos
eletivos, cada período eleitoral, cada etapa da vida pública constitui uma
oportunidade para voltar à fonte e às referências que inspiram a justiça e o
direito. Duma coisa temos a certeza: a boa política está ao serviço da paz; respeita
e promove os direitos humanos fundamentais, que são igualmente deveres
recíprocos, para que se teça um vínculo de confiança e gratidão entre as
gerações do presente e as futuras.
4. Os vícios da política
A par das virtudes, não
faltam infelizmente os vícios, mesmo na política, devidos quer à inépcia
pessoal quer às distorções no meio ambiente e nas instituições. Para todos,
está claro que os vícios da vida política tiram credibilidade aos sistemas
dentro dos quais ela se realiza, bem como à autoridade, às decisões e à ação
das pessoas que se lhe dedicam. Estes vícios, que enfraquecem o ideal duma vida
democrática autêntica, são a vergonha da vida pública e colocam em perigo a paz
social: a corrupção – nas suas múltiplas formas de apropriação indevida dos
bens públicos ou de instrumentalização das pessoas –, a negação do direito, a
falta de respeito pelas regras comunitárias, o enriquecimento ilegal, a
justificação do poder pela força ou com o pretexto arbitrário da «razão de
Estado», a tendência a perpetuar-se no poder, a xenofobia e o racismo, a recusa
a cuidar da Terra, a exploração ilimitada dos recursos naturais em razão do
lucro imediato, o desprezo daqueles que foram forçados ao exílio.
5. A boa política promove a
participação dos jovens e a confiança no outro
Quando o exercício do poder
político visa apenas salvaguardar os interesses de certos indivíduos
privilegiados, o futuro fica comprometido e os jovens podem ser tentados pela
desconfiança, por se verem condenados a permanecer à margem da sociedade, sem
possibilidades de participar num projeto para o futuro. Pelo contrário, quando
a política se traduz, concretamente, no encorajamento dos talentos juvenis e
das vocações que requerem a sua realização, a paz propaga-se nas consciências e
nos rostos. Torna-se uma confiança dinâmica, que significa «fio-me de ti e
creio contigo» na possibilidade de trabalharmos juntos pelo bem comum. Por
isso, a política é a favor da paz, se se expressa no reconhecimento dos
carismas e capacidades de cada pessoa. «Que há de mais belo que uma mão
estendida? Esta foi querida por Deus para dar e receber. Deus não a quis para
matar (cf. Gn 4, 1-16) ou fazer sofrer, mas para cuidar e ajudar a viver.
Juntamente com o coração e a inteligência, pode, também a mão, tornar-se um instrumento
de diálogo».[6]
Cada um pode contribuir com
a própria pedra para a construção da casa comum. A vida política autêntica, que
se funda no direito e num diálogo leal entre os sujeitos, renova-se com a
convicção de que cada mulher, cada homem e cada geração encerram em si uma
promessa que pode irradiar novas energias relacionais, intelectuais, culturais
e espirituais. Uma tal confiança nunca é fácil de viver, porque as relações
humanas são complexas. Nestes tempos, em particular, vivemos num clima de
desconfiança que está enraizada no medo do outro ou do forasteiro, na ansiedade
pela perda das próprias vantagens, e manifesta-se também, infelizmente, a nível
político mediante atitudes de fechamento ou nacionalismos que colocam em
questão aquela fraternidade de que o nosso mundo globalizado tanto precisa.
Hoje, mais do que nunca, as nossas sociedades necessitam de «artesãos da paz»
que possam ser autênticos mensageiros e testemunhas de Deus Pai, que quer o bem
e a felicidade da família humana.
6. Não à guerra nem à
estratégia do medo
Cem anos depois do fim da I
Guerra Mundial, ao recordarmos os jovens mortos durante aqueles combates e as
populações civis dilaceradas, experimentamos – hoje, ainda mais que ontem – a
terrível lição das guerras fratricidas, isto é, que a paz não pode jamais
reduzir-se ao mero equilíbrio das forças e do medo. Manter o outro sob ameaça
significa reduzi-lo ao estado de objeto e negar a sua dignidade. Por esta
razão, reiteramos que a escalada em termos de intimidação, bem como a
proliferação descontrolada das armas são contrárias à moral e à busca duma
verdadeira concórdia. O terror exercido sobre as pessoas mais vulneráveis
contribui para o exílio de populações inteiras à procura duma terra de paz. Não
são sustentáveis os discursos políticos que tendem a acusar os migrantes de
todos os males e a privar os pobres da esperança. Ao contrário, deve-se
reafirmar que a paz se baseia no respeito por toda a pessoa, independentemente
da sua história, no respeito pelo direito e o bem comum, pela criação que nos
foi confiada e pela riqueza moral transmitida pelas gerações passadas.
O nosso pensamento detém-se,
ainda e de modo particular, nas crianças que vivem nas zonas atuais de conflito
e em todos aqueles que se esforçam por que a sua vida e os seus direitos sejam
protegidos. No mundo, uma em cada seis crianças sofre com a violência da guerra
ou pelas suas consequências, quando não é requisitada para se tornar, ela
própria, soldado ou refém dos grupos armados. O testemunho daqueles que
trabalham para defender a dignidade e o respeito das crianças é extremamente
precioso para o futuro da humanidade.
7. Um grande projeto de paz
Celebra-se, nestes dias, o
septuagésimo aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada
após a II Guerra Mundial. A este respeito, recordemos a observação do Papa São
João XXIII: «Quando numa pessoa surge a consciência dos próprios direitos, nela
nascerá forçosamente a consciência do dever: no titular de direitos, o dever de
reclamar esses direitos, como expressão da sua dignidade; nos demais, o dever
de reconhecer e respeitar tais direitos».[7]
Com efeito, a paz é fruto
dum grande projeto político, que se baseia na responsabilidade mútua e na
interdependência dos seres humanos. Mas é também um desafio que requer ser
abraçado dia após dia. A paz é uma conversão do coração e da alma, sendo fácil
reconhecer três dimensões indissociáveis desta paz interior e comunitária:
– a paz consigo mesmo,
rejeitando a intransigência, a ira e a impaciência e – como aconselhava São
Francisco de Sales – cultivando «um pouco de doçura para consigo mesmo», a fim
de oferecer «um pouco de doçura aos outros»;
– a paz com o outro: o
familiar, o amigo, o estrangeiro, o pobre, o atribulado…, tendo a ousadia do
encontro, para ouvir a mensagem que traz consigo;
– a paz com a criação,
descobrindo a grandeza do dom de Deus e a parte de responsabilidade que compete
a cada um de nós, como habitante deste mundo, cidadão e ator do futuro.
A política da paz, que
conhece bem as fragilidades humanas e delas se ocupa, pode sempre inspirar-se
ao espírito do Magnificat que Maria, Mãe de Cristo Salvador e Rainha da Paz,
canta em nome de todos os homens: A «misericórdia [do Todo-Poderoso] estende-se
de geração em geração sobre aqueles que O temem. Manifestou o poder do seu braço
e dispersou os soberbos. Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os
humildes (…), lembrado da sua misericórdia, como tinha prometido a nossos pais,
a Abraão e à sua descendência, para sempre» (Lc 1, 50-55).
Vaticano, 8 de dezembro de
2018.
FRANCISCUS
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[1] Cf. Lc 2, 14: «Glória a Deus nas alturas e
paz na terra aos homens do seu agrado».
[2] Cf. Le Porche du mystère de la deuxième vertu (Paris 1986).
[3] Carta ap. Octogesima adveniens (14/V/1971), 46.
[4] Carta enc. Caritas in veritate (29/V/2009), 7.
[5] Cf. «Discurso na Exposição-Encontro “Civitas” de Pádua»: Revista 30giorni (2002-nº 5).
[6] Bento XVI, Discurso às Autoridades do Benim (Cotonou, 19/XI/2011).
[7] Carta enc. Pacem in terris (11/IV/1963), 24 (44).
[2] Cf. Le Porche du mystère de la deuxième vertu (Paris 1986).
[3] Carta ap. Octogesima adveniens (14/V/1971), 46.
[4] Carta enc. Caritas in veritate (29/V/2009), 7.
[5] Cf. «Discurso na Exposição-Encontro “Civitas” de Pádua»: Revista 30giorni (2002-nº 5).
[6] Bento XVI, Discurso às Autoridades do Benim (Cotonou, 19/XI/2011).
[7] Carta enc. Pacem in terris (11/IV/1963), 24 (44).
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