Sabemos que Mateus escreve para uma comunidade judaico-cristã marcada pelo conflito, pela exclusão das sinagogas e pela crescente marginalização social e religiosa. Diante da tentação de responder à violência com violência, à exclusão com ressentimento, o evangelista apresenta um Messias que rompe com os ciclos de poder. Ele é o “ebed” de Isaías — não o servo domesticado pelas estruturas, mas aquele que realiza a missão de Deus, portador da justiça hesed (compassiva), fiel à aliança com os vulneráveis. Na tradição profética, justiça é sempre mais do que legalismo; é um movimento histórico e espiritual que reconduz os pobres ao centro, um ato de reparação. Jesus encarna essa justiça na forma de ternura radical, revelando um Deus que não apaga o que resta, mas reanima o que resiste. O gesto de Jesus ao se retirar (v.15), longe de um recuo estratégico, é expressão de uma sabedoria messiânica que recusa o espetáculo e a lógica do embate direto. Ele não se deixa capturar pela provocação dos fariseus — que, segundo o versículo anterior (v.14), tramam sua morte. Essa decisão ecoa outras passagens como João 7,30 e João 8,59, onde sua recusa em ser capturado é sinal da liberdade interior de quem não é regido pelas expectativas alheias, mas pela obediência ao tempo do Pai. O tempo de Jesus é o kairós — o tempo propício da revelação —, não o cronograma dos poderes religiosos ou da ansiedade popular. Seu ministério não é gerenciado por métricas de popularidade, mas orientado pela fidelidade ao desígnio divino.
Marcos 3,6 e Lucas 6,11 reiteram o mesmo cenário conspiratório: fariseus e herodianos unindo-se contra Jesus, representando a aliança profana entre religião e Estado, fé e dominação. Essa convergência de interesses revela a ameaça que Jesus representa não como um agitador político, mas como um portador de outro mundo possível. A ameaça do Reino é sua lógica alternativa, não violenta, que subverte os alicerces do poder. Jesus não nega a política; Ele a redime pela ética do cuidado. Ele denuncia o sistema sem replicá-lo, propondo uma justiça não-retributiva, que não premia os justos segundo os méritos, mas acolhe os que ainda respiram, mesmo que com dificuldade. Seu gesto de silêncio é um gesto político, profundamente desestabilizador para os que se sustentam pelo espetáculo e pelo controle. Esse silêncio é também um gesto espiritual. A teologia apofática do Oriente cristão — vivida na tradição hesicasta e formulada pelos Padres Capadócios — reconhece o silêncio como linguagem plena de sentido. O Cristo que não grita é o Logos que se revela no não dito, aquele que, como diria Gregório de Nissa, “é compreendido não quando é explicado, mas quando é contemplado”. A mansidão do Servo é, portanto, uma manifestação teológica: revela o ser de Deus como amor que não se impõe, mas se oferece. Sua justiça é epifania do Reino, não decreto de condenação. Ele não quebra a cana rachada — expressão hebraica que evoca a ternura de Deus diante do fraco (cf. Isaías 57,15) — nem apaga o pavio que fumega, símbolo da vida quase apagada, mas ainda viva, que o sistema despreza.
Há aqui uma profunda crítica à religião como instrumento de mercado. O Servo que cura e se esconde é antítese do pregador de palco, do influencer da fé que monetiza a esperança e manipula a vulnerabilidade alheia. Jesus não transforma milagres em propaganda. Ele cura e ordena silêncio. Em João 6,15, quando o povo quer fazê-lo rei após o milagre dos pães, Ele se retira para o monte — gesto profundamente significativo: Jesus rejeita o coroamento pelo poder, mesmo quando este é oferecido pela multidão fascinada. Ele não quer súditos, mas discípulos; não busca aplausos, mas conversão. Sua mística é do escondimento, não da autopromoção. Sua pedagogia é da paciência, não da pressa dos resultados. Na perspectiva da psicologia existencial e da antropologia da fé, o Servo revela a força do cuidado com o fragmentado. A cana rachada e o pavio que fumega não são figuras decorativas, mas existências reais: os que vivem em burnout espiritual, os que já não creem, os que foram usados pela religião e descartados. Jesus não desiste deles. Ele os carrega, como o pastor que, em Isaías 40,11, conduz ternamente as ovelhas com filhotes. Há uma sabedoria terapêutica no agir de Jesus: Ele não força a cura, mas respeita o ritmo de cada ferida. Ele não invade, mas visita. Sua presença é como a brisa suave em 1Reis 19,12, onde Deus se revela não no terremoto ou no fogo, mas no murmúrio sutil.
Na crítica à teologia da prosperidade e do domínio, esse trecho é contundente. Enquanto essas teologias promovem um Cristo triunfalista, recompensador, que opera como um CEO da fé e distribuidor de bênçãos em troca de sacrifícios financeiros, o Evangelho nos apresenta um Messias pobre, discreto, sem beleza exterior, como Isaías 53 descreve. Ele não nos livra do sofrimento pela força, mas caminha conosco nele. Sua missão não é eliminar a dor, mas transformá-la em lugar de encontro com o Deus vulnerável. A vitória do Servo não é de ordem bélica, mas pascal: ela passa pela cruz. Apocalipse 5,6 reforça esse paradoxo: é o Cordeiro como que imolado, não o leão rugidor, quem rompe os selos da história.
A crítica social aqui é sutil, mas aguda. Enquanto os líderes religiosos disputam púlpitos e os políticos manipulam símbolos sagrados, o Servo caminha entre os esquecidos. Ele não busca “likes” nem está em busca de seguidores para seu canal. Ele não realiza lives de milagres nem vende produtos ungidos. Sua espiritualidade não é uma vitrine, mas um abrigo. Como nos lembra Paulo Freire, o silêncio pode ser um grito: um grito de denúncia, mas também de anúncio. Jesus anuncia outro modo de ser e viver, uma fé que não se compra, uma esperança que não se vende, um Deus que não se presta ao espetáculo. Essa espiritualidade do Servo nos convoca a uma revisão profunda da Igreja e de suas lideranças. São João Crisóstomo já denunciava os perigos do clericalismo que transforma ministros em tiranos. O Concílio Vaticano II, especialmente na Lumen Gentium, aponta que a Igreja é sacramento de salvação na medida em que se faz serva. O Papa Francisco retomou com vigor esse chamado, alertando que “o clericalismo é um câncer na Igreja”, uma perversão do Evangelho. Jesus não se veste de púrpura nem exige reverências; Ele se ajoelha para lavar os pés. Toda autoridade que não serve, trai o Servo.
Hoje, a cana rachada são os corpos negros tombados pela violência policial, os povos indígenas exilados de suas terras, os pobres criminalizados, os migrantes afogados, os LGBTQIA+ excluídos dos templos, as mulheres caladas pela estrutura patriarcal. O pavio que fumega são os que ainda sonham, resistem, crêem apesar da Igreja. São aqueles que, como o povo no deserto, caminham entre murmúrios e manás, sustentados por um Deus que não grita, mas escuta. É com eles que o Servo caminha. O Messias que se cala e se retira é, portanto, o mesmo que grita nas entrelinhas da história. Seu silêncio é revelação. Sua fragilidade é força. Sua justiça é ternura. Ele não brada, mas carrega. Não exclui, mas reconcilia. Não julga, mas cura. E quando vier em glória — e virá —, não será com exércitos nem cortejos, mas com as chagas de quem amou até o fim. Que Ele nos encontre entre os pavios que ainda fumegam, entre as canas que ainda querem se reerguer. Que Ele nos reconheça entre os servos, não entre os senhores. E nos diga, com voz mansa: “Estivestes comigo…” (Mateus 25,40).
Essa é a vitória do Servo: não a dos tronos, mas a da cruz. Não a dos gritos, mas a do silêncio que salva.
DNonato - Teólogo do Cotidiano
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