terça-feira, 5 de agosto de 2025

Um outro olhar sobre Lucas 9,28b-36 - Festa da Transfiguração

A Transfiguração e o Chamado à Conversão Profética

A cena do monte não é uma fuga celestial: é denúncia, convocação e envio. Ao celebrarmos a Festa da Transfiguração do Senhor, somos colocados diante de uma das passagens mais densas e simbólicas da tradição evangélica. O texto de Lucas 9,28b-36, também proclamado no segundo domingo da Quaresma que refletimos em 2022 aqui no blog. O texto  de Lucas não oferece um espetáculo sobrenatural isolado, mas uma epifania pedagógica. A montanha, lugar de revelação e decisão, escancara o mistério de Jesus e, ao mesmo tempo, o chamado à conversão pessoal, eclesial e comunitária. O que está em jogo aqui não é a fuga para o êxtase místico, mas a escuta atenta da Palavra que nos desinstala, transfigura e envia.

Jesus não apenas sobe ao monte: sobe para rezar. Esse gesto não é periférico, mas essencial à narrativa lucana, pois a oração é o lugar onde identidade e missão se iluminam. Lucas é o evangelista que mais destaca o caráter orante de Jesus: Ele reza no batismo (Lc 3,21), antes de escolher os doze (Lc 6,12), e mesmo na cruz (Lc 23,46). A oração, neste contexto, não é repetição de palavras, mas mergulho silencioso na escuta, esvaziamento das pretensões humanas, acolhimento radical da vontade do Pai. Isso nos interpela:

  •  Quantas vezes rezamos, mas sem desejo de conversão? 
  • Quantas vezes buscamos a oração, mas não queremos ser transformados por ela?
  • O que a Transfiguração tem a ver com o Brasil de hoje?
  •  Com o colapso das verdadeiras vocações, onde alguns ministros do sagrado transformam o ministério em status e poder, ignorando Jesus que se transfigura nos rostos dos pobres esquecidos nas esquinas e periferias?"
  • Padres / Pastores  presos  a uma espiritualidade  dos  cultos/missas de rótulos sem compromisso  com a realidades sem  a verdadeira transformação. Como superar isso?
A transfiguração é, antes de tudo, uma antecipação pascal. Moisés e Elias, que aparecem ao lado de Jesus, representam a Lei e os Profetas, toda a história de Israel. Mas não se trata de um desfile de autoridades espirituais do passado. Moisés, que subiu o Sinai e recebeu a Torá, e Elias, profeta arrebatado ao céu, são figuras liminares, marcadas por encontros intensos com Deus em contextos de crise e resistência. Ambos foram perseguidos. Moisés enfrentou o povo murmurador; Elias, os reis idólatras. Sua presença ao lado de Jesus revela que a glória divina está intrinsecamente ligada à fidelidade profética e à entrega. Eles falam com Jesus sobre sua “partida” – no grego, éxodos –, termo carregado de memória libertadora (cf. Ex 12), que aponta para a cruz e a ressurreição. A transfiguração não é fuga, mas desinstalação do messianismo triunfalista que recusa o sofrimento e o serviço. A glória passa pela cruz.

Pedro, tomado por um assombro confuso, quer armar tendas. É o desejo de fixar o instante, institucionalizar o êxtase, aprisionar a experiência do sagrado em estruturas controláveis. É a tentação de uma religião que busca segurança, e não transformação. Uma religião de cabanas, e não de travessias. Mas Deus o interrompe com a nuvem – sinal da presença divina (cf. Ex 40,34-38) – e com uma voz clara: “Este é o meu Filho, o Eleito. Escutem-no!” (Lc 9,35). A única tenda que permanece é a da escuta. O verdadeiro altar é o ouvido que escuta o Filho que se entrega.

A escuta, porém, não é passiva. É resistência e discernimento. Em tempos de excesso de vozes – redes sociais, pregadores digitais, gurus religiosos e políticos messiânicos –, discernir qual é a voz do Filho é um desafio constante. A transfiguração nos chama a calar os ruídos do ego e das ideologias – inclusive dentro da própria Igreja – para ouvir a voz que fala do amor até o fim (Jo 13,1), do serviço que lava os pés (Jo 13,14-15), da entrega que não busca glória humana (Mt 6,1-4).

A escuta do Filho nos desinstala de toda tentativa de manipular Deus a serviço dos nossos interesses pessoais ou grupais. Não por acaso, essa cena está inserida num contexto de crise vocacional: Jesus acabara de anunciar sua paixão (Lc 9,22) e, logo depois, convida à renúncia e ao seguimento (Lc 9,23-27). A cruz é o critério da autenticidade. Uma fé que recusa o caminho do outro, que evita o sofrimento do pobre, que se fecha em cabanas litúrgicas ou triunfos clericais, trai o Evangelho. Não é coincidência que, também hoje, muitos líderes eclesiais que se dizem “ungidos” tornaram-se empresários da fé, vendedores de indulgências emocionais, mais próximos dos fariseus que Jesus denunciou (cf. Mt 23,1-36) do que dos profetas que ele honrou. Esses que exigem títulos, bajulações e palanques, mas não lavam os pés, não suportam a voz do Pai: “Escutem o Filho”.

A teologia da prosperidade, do domínio e do espetáculo se alimenta do mesmo impulso de Pedro: construir tendas onde o brilho espiritual encobre a dor do mundo. Esses “empresários da fé” vendem um evangelho sem cruz, um Messias sem Calvário, como se Marcos 8,34-35 tivesse sido apagado: “Quem quiser me seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e siga-me”. É a religião do palco, do brilho, do coach gospel, do mercado da fé. Contra isso, a transfiguração revela um Jesus que desce do monte (Lc 9,37) e vai ao encontro do menino possuído – sinal de uma humanidade ferida e silenciada. A missão começa quando termina a visão.

Esse movimento de descida é fundamental: da glória ao chão, do êxtase à realidade. Como Moisés que desceu do Sinai e viu o bezerro de ouro (Ex 32), Jesus desce para libertar. A espiritualidade que se nutre da oração, se desdobra na ação. Como dizia Santo Irineu: “A glória de Deus é o ser humano vivo, e a vida humana é a visão de Deus” (Adversus Haereses, IV, 20, 7). Não há verdadeira contemplação que não nos leve ao compromisso com a justiça. Bento XVI afirmou: “A oração não dispensa a luta pela justiça. Pelo contrário, leva-nos a ela” (Deus Caritas Est, n. 36). E Francisco nos recorda: “A espiritualidade cristã propõe um estilo de vida alternativo, marcado pela profundidade, sobriedade e sensibilidade diante dos pobres e da criação” (Evangelii Gaudium, n. 222; Laudato Si’, n. 222-227).

Do ponto de vista antropológico e psicológico, a transfiguração revela a tensão entre o desejo de permanência e a urgência de mudança. O medo do novo nos faz desejar tendas, repetir fórmulas, buscar conforto. Mas como diz Paulo Freire, “o ser humano se faz e se refaz na práxis, na reflexão e na ação sobre o mundo para transformá-lo”. A fé madura não se contenta com a manutenção de estruturas; exige escuta, discernimento e constante conversão. A mística cristã não é fuga do mundo, mas imersão lúcida e amorosa nele.

Na cultura atual do excesso – de imagens, de vozes, de distrações –, redescobrir a escuta é um ato revolucionário. A escuta verdadeira nos liberta das armadilhas da manipulação religiosa e política. Quantos hoje usam a Bíblia como arma e não como luz? Quantos, como o diabo no deserto (Lc 4,1-13), citam as Escrituras para justificar preconceitos, ganância e sede de poder? A extrema-direita religiosa é expressão clara dessa perversão da Palavra: prega ódio em nome de Deus, racismo em nome da tradição, autoritarismo em nome da ordem. Contra isso, a Transfiguração grita: escutem o Filho! E o Filho foi perseguido porque anunciou o Reino aos pobres.

É nesse contexto que a vocação ao ministério ordenado, celebrada nesta semana, deve ser repensada. Não como privilégio ou status, mas como missão de serviço. A Igreja não precisa de mais gestores litúrgicos nem donos do sagrado, mas de profetas humildes, de corações que escutam e pés sujos da estrada. A crise vocacional é, acima de tudo, espiritual: falta coerência, testemunho, humanidade. Falta coragem para descer do monte e enfrentar os “espíritos mudos” que desfiguram o rosto humano e o rosto da Igreja.

A Transfiguração nos convoca, por fim, a deixar que o rosto de Cristo brilhe em nós. Como diz Paulo: “Todos nós, com o rosto descoberto, contemplamos como num espelho a glória do Senhor e somos transfigurados nessa mesma imagem” (2Cor 3,18). Somos chamados não apenas a anunciar com palavras, mas a revelar com a vida. Como dizia São João Crisóstomo: “Se vós fostes dignos, o mundo não teria necessidade de palavras, bastaria vossa vida.”

Que esta festa não nos conduza ao delírio místico da fuga, mas ao compromisso sóbrio da escuta e da missão. Que nossa oração seja silêncio que escuta, escuta que transforma, transformação que serve. Que desçamos do monte com os olhos iluminados e as mãos sujas de barro. E que possamos dizer com São Paulo, não por vaidade, mas por fé comprometida: “Eu acreditei, por isso falei” (2Cor 4,13). Mas que também falemos com os pés, com as mãos, com o corpo todo, até que a glória de Deus resplandeça nos rostos sofridos dos pobres e nos caminhos das comunidades transfiguradas pelo amor.



DNonato – Teólogo do Cotidiano


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