Num mundo onde a lógica dominante é a da autopromoção, onde o algoritmo premia o egocentrismo, e o sucesso é medido por curtidas, seguidores e poder de influência, Jesus insiste num caminho escandalosamente oposto: o servo não é maior que o seu Senhor. E o Senhor é aquele que lava os pés, que serve, que se dá. Não se trata de um ato simbólico — é uma pedagogia da existência.
Recordemos as palavras do Concílio Vaticano II: “A Igreja sabe que deve caminhar pelo mesmo caminho trilhado por Cristo, o caminho da pobreza, da obediência, do serviço e do sacrifício” (Lumen Gentium, 8).
A liturgia de hoje nos convida a mergulhar nesse trecho do Evangelho de João, situado no contexto da Última Ceia, quando Jesus entrega aos seus discípulos, não apenas um mandamento, mas um modo de ser. Ele está consciente da traição iminente, da dispersão dos amigos, da solidão da cruz. E mesmo assim, não recua do gesto: ajoelha-se e lava os pés dos discípulos. É aí que está o escândalo do Evangelho: Deus se curva diante do humano.
Jesus se fez estrangeiro — como diz a meditação patrística — para nos desinstalar. O Reino não se impõe por força, mas por entrega. A partir disso, é possível afirmar que a espiritualidade cristã autêntica nasce da margem, não do centro do poder.
Tal compreensão ecoa em Evangelii Gaudium, quando o Papa Francisco alertava: “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, do que uma Igreja enferma pelo fechamento e pela comodidade de se agarrar às próprias seguranças” (EG, 49)
Cristo não fundou uma instituição de prestígio, mas uma comunidade de irmãos lavadores de pés. E é por isso que devemos desconfiar de toda forma de clericalismo — que, segundo o próprio Papa Francisco, “é uma perversão do ministério”.
A idolatria do poder dentro da Igreja é uma negação prática do Evangelho. A cruz, que deveria ser sinal de serviço e entrega, tornou-se em alguns ambientes símbolo de domínio. Isso não é novidade: desde o século IV, quando a fé cristã deixou de ser perseguida e passou a ocupar os palácios, iniciou-se uma tensão constante entre o seguimento radical de Jesus e a tentação do poder eclesial.
Hoje vivemos em meio a uma guerra cultural travestida de religiosidade. Jesus se torna mascote de projetos ideológicos, e seu Evangelho é distorcido para justificar a exclusão, o autoritarismo e o moralismo vazio. Não é raro ver cristãos justificando a fome em nome do “mérito”, a violência em nome da “ordem”, a desigualdade como “vontade de Deus”.
Mas Jesus foi claro: “Se sabeis estas coisas, bem-aventurados sois, se as praticardes” (Jo 13,17). A bem-aventurança está no fazer, não no dizer. A fé não é um conjunto de slogans, mas um modo de vida.
Do ponto de vista antropológico, esse gesto de Jesus devolve ao humano sua dignidade fundamental: não somos feitos para dominar, mas para comungar. O ato de lavar os pés é a desconstrução da lógica do prestígio, e a construção de uma ética do cuidado.
Na sociologia dos gestos, o ato de ajoelhar-se é profundamente revolucionário. Ele desfaz hierarquias. Quando um líder se abaixa, a estrutura do poder se reconfigura. O servo que lava os pés não é inferior: é superior no amor
Nas tradições de muitos povos indígenas do Brasil, a autoridade verdadeira nunca se impõe por força, mas é reconhecida pela comunidade a partir do cuidado, da escuta e do serviço. O cacique ou pajé não é aquele que grita mais alto, mas o que escuta mais fundo. Como dizia um velho ancião do povo Tikuna: “Só pode guiar quem primeiro aprendeu a seguir o caminho dos outros.”
Para muitos desses povos, o mais sábio é o que serve em silêncio, o mais forte é o que sabe esperar, o mais digno é o que reparte o que tem. Essa espiritualidade da reciprocidade e da escuta profunda ressoa como eco do gesto de Jesus ao lavar os pés dos seus discípulos.
Entre os povos Guarani, há o costume de caminhar juntos na floresta em silêncio, porque ouvir é mais importante que falar. Essa pedagogia da escuta, que valoriza o tempo e o ritmo do outro, nos provoca: será que nós, batizados, ainda sabemos escutar? Ou nos tornamos apenas anunciadores de nós mesmos, surdos ao sofrimento real do povo?
Não há trono entre os povos originários: há roda. E na roda, todos se veem, todos se ouvem. Talvez seja essa a conversão que o Evangelho nos propõe: sair do púlpito e voltar à roda; trocar a cátedra pelo círculo do cuidado.
A advertência de Jesus — “o servo não é maior que o seu senhor” — também serve como antídoto contra a autossuficiência dos que se dizem "representantes de Deus". A missão cristã é serviço, não domínio. É anúncio, não imposição. Somos discípulos, não donos da Verdade
A CNBB, em diversas notas e diretrizes, tem insistido em uma Igreja sinodal, pobre para os pobres, fiel ao Evangelho e à dignidade humana. A atualidade exige de nós uma fé encarnada, comprometida com a justiça, a paz e os direitos humanos.
Hoje, muitos cristãos procuram um Cristo triunfante, mas fogem do Cristo de avental, ajoelhado diante do irmão. Mas é este Cristo que nos julgará — não pelo número de versículos que decoramos, mas pelos pés que lavamos.
Que nos seja dado o dom da humildade, da escuta e da entrega. Que recordemos — como disse Santo Agostinho — que “com os pés de seus discípulos, foi o mundo que Ele lavou”.
No fim, quando o Reino for revelado em plenitude, não haverá tronos, púlpitos, vestes douradas ou títulos honoríficos. Haverá apenas mãos estendidas, olhos misericordiosos, e uma bacia de água limpa nos convidando: “Vinde, benditos do meu Pai” (Mt 25,34).
DNonato – graduado em História, teólogo do cotidiano, indigente do sagrado.
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