quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Dia dos Fiéis Defuntos ou Dia de Finados

O Dia de Finados: memória, fé e comunhão entre os mundos.

O Dia de Finados, conhecido no México como Día de Muertos, é celebrado pela Igreja Católica em 2 de novembro, dedicado à memória dos falecidos. A tradição tem raízes profundas no cristianismo primitivo: já no século II, cristãos visitavam túmulos de mártires para orar pelos que haviam partido. Com o tempo, a Igreja passou a organizar essas orações de forma mais sistemática, incluindo aqueles cujas vidas eram esquecidas ou cujas almas necessitavam de intercessão.

No século V, passou a existir a prática de dedicar um dia específico aos mortos. No final do século X, o abade Odilo de Cluny (998) recomendou aos monges que rezassem por todos os falecidos, consolidando a ideia da intercessão. Nos séculos X e XI, papas como Silvestre II (1009), João XVII (1009) e Leão IX (1015) instituíram a necessidade de uma data litúrgica, embora ainda não houvesse uniformidade. Somente no século XIII, a Igreja Católica fixou 2 de novembro como a data oficial da Comemoração dos Fiéis Defuntos, logo após 1º de novembro, a Festa de Todos os Santos, criando uma continuidade simbólica entre a celebração dos santos e a lembrança dos mortos.

A doutrina católica fundamenta esta prática em várias passagens bíblicas:

  • Tobias 12,12 – a oração pode beneficiar os falecidos;
  • Jó 1,18-20 – a intercessão pelos outros tem valor espiritual;
  • Mateus 12,32 – há possibilidade de perdão após a morte;
  • II Macabeus 12,43-46 – é piedoso e santo orar pelos mortos, para que sejam libertos dos seus pecados.

Essa prática milenar reflete a crença na comunhão entre vivos e mortos, mostrando que o cuidado e a lembrança pelos que partiram transcendem o tempo.

Contudo, a fixação da data de 2 de novembro não foi imediata nem universal. Nos séculos seguintes, diferentes regiões cristãs mantinham dias próprios de memória dos mortos, muitas vezes relacionados às festas locais ou às colheitas. Em algumas dioceses da França e da Alemanha, por exemplo, as comemorações ocorriam na Primavera, tempo de renovação, ou no final do inverno, quando se recordavam os entes queridos com procissões e luzes.

A escolha do outono — especialmente a passagem entre 31 de outubro e 2 de novembro — foi também influenciada por antigas tradições pagãs de culto aos mortos e aos ancestrais, particularmente nas culturas célticas e romanas. O Samhain, celebrado entre 31 de outubro e 1º de novembro, marcava o fim das colheitas e o início do inverno, época em que se acreditava que o véu entre o mundo dos vivos e o dos mortos se tornava mais tênue. Fogos eram acesos para afastar maus espíritos e para guiar as almas. Quando o cristianismo se difundiu pelas terras celtas, a Igreja procurou cristianizar esses rituais: primeiro transferindo a Festa de Todos os Santos (originalmente celebrada em maio) para 1º de novembro, durante o pontificado do Papa Gregório III (731–741) e consolidada por Gregório IV (827–844); depois, instituindo 2 de novembro como o dia de oração pelos mortos, em continuidade espiritual com o antigo Samhain.

Assim, o Halloween (de All Hallows’ Eve, “véspera de Todos os Santos”) nasceu como uma noite de vigília religiosa antes da festa dos santos, mas manteve traços do imaginário pagão: o uso de lanternas, máscaras e rituais simbólicos de contato com o mundo espiritual. Com o passar dos séculos e a secularização do costume, especialmente nas Ilhas Britânicas e nos Estados Unidos, o Halloween transformou-se em uma celebração popular e lúdica, distanciada de suas origens religiosas.

Na Igreja Ortodoxa, a celebração dos mortos seguiu caminho próprio. Conhecida como Sábados dos Mortos, não há uma data única universal: celebra-se em vários sábados ao longo do ano litúrgico, como o Sábado do Lázaro, antes do Domingo de Ramos, o Sábado de Pentecostes e outros ligados à Quaresma. Esses dias são dedicados à oração e à leitura dos nomes dos falecidos, acompanhados do gesto simbólico da koliva — mistura de trigo, mel e frutas — evocando a ressurreição e a esperança. Como muitas Igrejas Ortodoxas seguem o calendário juliano, as datas podem diferir até 13 dias das celebrações católicas, refletindo também diferenças teológicas e culturais na compreensão da morte e da eternidade.

No entanto, entre os séculos XIV e XV, a teologia medieval aprofundou a doutrina do Purgatório, transformando o Dia de Finados em expressão concreta de caridade espiritual: rezar pelos que estão a caminho da purificação. Obras como a Divina Comédia de Dante influenciaram o imaginário popular, e a prática de oferecer missas, esmolas e penitências pelos falecidos espalhou-se por toda a Europa.

Durante a Reforma Protestante (século XVI), teólogos como Martinho Lutero e João Calvino rejeitaram a noção do Purgatório e as orações pelos mortos, por não as encontrarem explicitamente nas Escrituras. Em resposta, o Concílio de Trento (1545–1563) reafirmou a validade dessas práticas, reforçando a tradição de quase dois mil anos.

A partir do século XVII, com a expansão missionária, o Dia de Finados atravessou os mares e se inculturou em novas terras. Na América Latina, encontrou ressonância nas culturas indígenas, que já celebravam os mortos com altares, flores e alimentos. No México, o antigo culto à deusa Mictecacíhuatl, senhora do submundo, se uniu à fé católica, originando o Día de Muertos moderno — uma festa colorida e alegre, onde se recorda com amor, e não com tristeza.

Com o tempo, a celebração se diversificou pelo mundo:

México: o Día de Muertos combina elementos indígenas e católicos. Familiares constroem altares coloridos com comidas, flores (cempasúchil), velas, fotos e objetos queridos dos falecidos. A festa é alegre, celebrando a vida e o reencontro simbólico com os antepassados.

China: o Festival Qingming (Dia da Limpeza dos Túmulos), em abril, envolve visita aos túmulos, limpeza e oferendas aos ancestrais.

Japão: no Obon, festival budista em agosto, acredita-se que os espíritos dos antepassados retornam às casas. Lanternas e cerimônias religiosas guiam os espíritos de volta ao mundo espiritual.

Irlanda e Escócia: antigas tradições celtas do Samhain marcaram o início do inverno e acreditava-se que os espíritos retornavam ao mundo dos vivos. Com a cristianização, o Samhain se misturou à Festa de Todos os Santos, originando o Halloween.

Haiti: celebrações ligadas ao Vodu incluem festas e oferendas aos falecidos, reforçando vínculos entre vivos e mortos.

Nas religiões de matriz africana no Brasil, como o Candomblé e a Umbanda, a relação com os mortos é de continuidade e presença. Os ancestrais — conhecidos como Eguns — não são vistos como ausentes, mas como parte ativa da comunidade espiritual. Os rituais em honra aos Eguns expressam respeito, gratidão e busca de equilíbrio entre o mundo visível e o invisível. No Candomblé, a ancestralidade é a raiz da identidade: cada pessoa é herdeira espiritual de um axé que vem dos antepassados. Os rituais de oferendas, cânticos e danças são pontes simbólicas que reafirmam essa comunhão. Na Umbanda, há também o culto às almas, especialmente no dia 2 de novembro, quando se acendem velas e se fazem preces nas encruzilhadas, nas praias e nos cemitérios, pedindo luz e evolução espiritual.

Nas tradições indígenas brasileiras, a relação com os mortos está profundamente ligada à natureza. Para muitos povos, como os Guarani, os Yanomami e os Tukano, a morte não é ruptura, mas transformação: o espírito retorna à terra, às águas, às florestas — ao grande ciclo da vida. Cerimônias de canto, fumo, pintura corporal e dança são expressões de reconexão com os ancestrais. Em algumas comunidades, o nome de um falecido é passado a uma nova criança, simbolizando a continuidade da linhagem e a permanência da memória. A ancestralidade, para os povos originários, é presença viva, guia e sabedoria que orienta o presente.

No judaísmo, a lembrança dos mortos é marcada principalmente pelo Yizkor (“lembra-te”) e pelo Yahrzeit, o aniversário de falecimento. O Yizkor é recitado em datas sagradas como Yom Kippur, Pessach, Shavuot e Sucot, pedindo a Deus que lembre as almas dos falecidos com misericórdia. Já o Yahrzeit é celebrado com a acensão de uma vela que permanece acesa por 24 horas, simbolizando a alma como uma chama que continua a iluminar o mundo. Além disso, há o costume de visitar túmulos antes das grandes festas, gesto que reforça o vínculo entre gerações e expressa a crença na continuidade espiritual da vida. A tradição judaica vê a memória como uma forma de eternidade: “A lembrança do justo é uma bênção” (Provérbios 10,7).

No islã, a morte é vista como uma passagem para a presença de Deus (Allah), e a recordação dos mortos está ligada à súplica (du‘ā) e à caridade feita em nome deles. Embora não exista um “Dia dos Mortos” formal, muitos muçulmanos visitam os cemitérios nas sextas-feiras ou durante o mês de Ramadan, oferecendo orações e recitando o Alcorão, especialmente a Surata Ya-Sin, em memória dos falecidos. Em alguns países muçulmanos, como Indonésia e Egito, há práticas culturais específicas, como o Arba‘īn (quarenta dias após a morte), que recorda o falecido com orações comunitárias e refeições compartilhadas. No Islã, a morte é parte do ciclo da misericórdia divina, e a lembrança dos mortos é também um convite à consciência da própria finitude e à responsabilidade pelos vivos.

  • Algumas curiosidades:

No México, as “calaveras de açúcar” e as comidas favoritas dos falecidos simbolizam a alegria de recordar a vida.

No Japão, lanternas flutuantes durante o Obon guiam os espíritos de volta ao além.

No cristianismo medieval europeu, as procissões de Finados incluíam cantos penitenciais, velas e esmolas aos pobres em nome dos mortos, refletindo a crença de que a caridade em vida e em memória podia aliviar as penas das almas.

Em Portugal e no Brasil, o Dia de Finados manteve um tom mais contemplativo e silencioso, centrado nas visitas aos cemitérios, flores e orações — uma fusão entre o sentimento cristão e as antigas expressões ibéricas de memória dos ancestrais.

Após o Concílio Vaticano II (1962–1965), a Igreja renovou o sentido teológico da data: Finados deixou de ser apenas o “dia do luto” para tornar-se o dia da esperança pascal, recordando que a morte é passagem e comunhão. A liturgia passou a enfatizar mais a vida eterna e a unidade da Igreja peregrina, purgante e triunfante..

Hoje, no século XXI, o Dia de Finados ultrapassa fronteiras religiosas. Em um mundo marcado pela pressa e pelo esquecimento, acender uma vela, pronunciar um nome ou visitar um túmulo torna-se um ato de resistência espiritual e de memória amorosa. Seja nas ruas floridas do México, nos cemitérios silenciosos do Brasil ou nos templos orientais onde se acendem incensos, a humanidade reafirma um mesmo gesto ancestral: lembrar é permanecer; amar é eternizar.


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