O Evangelho de Mateus 19,16-22, proclamado na segunda-feira da 20ª semana do Tempo Comum, encontra ecos em outros momentos da liturgia, como no 28º Domingo do Tempo Comum, ano B, quando Marcos relata a mesma narrativa (Mc 10,17-30), e também em Lucas 18,18-30, utilizado em dias da liturgia ferial. A insistência da Igreja em nos fazer ouvir essa passagem mais de uma vez ao longo do ano não é casual: trata-se de um espelho evangélico em que somos convidados a nos reconhecer e a confrontar nosso apego ao que é transitório. A repetição litúrgica é pedagógica, porque a renúncia, o seguimento e a liberdade do coração atravessam toda a história da fé e permanecem atualíssimos. Não se trata de uma reflexão sobre moralismo abstrato, mas de uma chamada concreta à conversão interior e à justiça social.
A narrativa inicia com o jovem rico correndo até Jesus, reconhecendo nele um Mestre digno de respeito. Sua pergunta é profunda e legítima: “Mestre, que devo fazer de bom para alcançar a vida eterna?” (Mt 19,16). Esse desejo não surge do vazio, mas ecoa o anseio antigo de Israel pelo bem e pela paz, o shalom, presente no livro do Deuteronômio: “Ponho diante de ti a vida e a morte… escolhe, pois, a vida” (Dt 30,15-20). A sabedoria israelita já havia descrito a vida como dom da fidelidade (Pr 3,16-18), e os salmos suplicavam: “Mostra-me, Senhor, os caminhos da vida” (Sl 16,11). O jovem, portanto, não é um cínico, mas alguém em busca de plenitude. No entanto, sua mentalidade revela a lógica meritocrática de seu tempo — e a nossa: o que devo fazer, qual esforço extra, qual ação me garante vantagem? É a tentação de transformar a vida eterna em produto, prêmio ou mérito humano. João 6,28-29 mostra a mesma inquietação: “Que devemos fazer para realizar as obras de Deus?” A resposta de Jesus permanece: não se trata de multiplicar obras, mas de entrar em relação com o único Bem verdadeiro. “Por que me perguntas sobre o que é bom? Um só é o Bom” (Mt 19,17). A bondade não é soma de obras, mas fruto da comunhão com Deus.
Jesus então enumera os mandamentos, mas destaca aqueles que revelam a essência da Lei e dos Profetas: não matar, não adulterar, não roubar, não levantar falso testemunho, honrar pai e mãe, amar o próximo como a si mesmo (cf. Mt 19,18-19; Lv 19,18). O jovem afirma: “Tenho observado tudo isso. Que me falta ainda?” (Mt 19,20). A pergunta é universal: cumprir normas é importante, mas não basta; a vida clama por algo mais. A obediência formal não preenche o coração inquieto, como ensina Santo Agostinho: “Fizeste-nos para Ti, Senhor, e o nosso coração está inquieto enquanto não repousar em Ti” (Confissões, I,1). Nicodemos em João 3, mesmo conhecedor da Lei, procura Jesus na noite, evidenciando que o reconhecimento religioso não substitui a transformação do coração.
O passo decisivo aparece quando Jesus diz: “Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me” (Mt 19,21). A perfeição não é impecabilidade moral nem acumulação de virtudes, mas liberdade do apego e coragem de seguir Jesus. Marcos acrescenta um detalhe precioso: “Jesus olhou para ele e o amou” (Mc 10,21). O chamado é convite amoroso, não imposição coercitiva. No entanto, o jovem “retirou-se cheio de tristeza, porque possuía muitos bens” (Mt 19,22). Sua tristeza simboliza a escravidão do apego: quanto mais se possui, maior o medo de perder. Esta é a mesma cegueira denunciada na parábola do rico insensato (Lc 12,16-21) e do rico que ignora Lázaro à sua porta (Lc 16,19-31).
A hermenêutica do texto se abre em várias direções. Psicologicamente, revela como a identidade baseada em posse e status produz ansiedade e vazio existencial. Sociologicamente, o capitalismo moderno reproduz a lógica da acumulação sem sentido, produzindo sociedades ricas em mercadorias e pobres em sentido. A antropologia mostra que culturas antigas já compreendiam que a abundância só se torna vida quando partilhada; do contrário, vira maldição, como o maná que apodrecia quando acumulado (Ex 16,20). Filosoficamente, Aristóteles enfatizava a vida virtuosa, e Lévinas a responsabilidade ética pelo outro. A teologia vê nesse texto denúncia da idolatria: confiar mais na riqueza do que em Deus é afastar-se do Reino. Não por acaso, Jesus afirma: “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino” (Mt 19,24), ecoando Isaías 5,8 e Amós 6,1-7, que criticam a opulência e a exploração dos pobres.
A tradição patrística reforça essa leitura. São Basílio advertia: “O supérfluo que tu guardas pertence aos pobres; as roupas que mofam nos teus armários pertencem aos que estão nus” (Homilia sobre a Avarícia). João Crisóstomo afirmava: “Não compartilhar com os pobres é roubar e privá-los da vida” (Homilias sobre Mateus, 50,3). Orígenes lembrava: “Seguir Cristo não é apenas imitá-lo, mas deixar-se transformar interiormente por Ele” (Comentário sobre Mateus, XIII,24). Ambrósio de Milão denunciava: “A terra foi criada em comum para todos, e a avareza dos ricos a transformou em posse exclusiva” (De Nabuthe, 12). A patrística inteira insiste: a riqueza não é neutra; torna-se diabólica quando fecha o coração à fraternidade.
O Evangelho também nos convida a olhar criticamente para situações atuais dentro da própria Igreja. Não é raro que padres, bispos e autoridades eclesiásticas acumulem bens materiais ou vivam em conforto e luxo, distantes da simplicidade que o Evangelho propõe. Esse apego contradiz frontalmente o chamado de Jesus à renúncia e ao serviço desinteressado: o ministério, que deveria ser expressão do amor e da partilha, corre o risco de se transformar em prestígio, poder ou mercadoria espiritual. Tais condutas não apenas escandalizam os fiéis, mas obscurecem a credibilidade da Igreja como comunidade profética, capaz de anunciar a justiça e a fraternidade. O chamado de Cristo permanece inalterado: seguir Jesus exige desapego, coragem de pobreza evangélica e compromisso concreto com os pobres. Qualquer riqueza que fecha o coração, restringe a liberdade ou impede o serviço ao próximo transforma-se em obstáculo ao Reino. Por isso, a renúncia não é apenas uma virtude individual, mas exigência de coerência para toda a comunidade eclesial, lembrando que o Evangelho se cumpre na entrega e na partilha, e não na acumulação ou no conforto pessoal. Este Evangelho denuncia frontalmente as teologias contemporâneas deformadas. A teologia da prosperidade é desmentida: Jesus não promete riqueza, mas pede renúncia. A teologia do domínio, que transforma a fé em projeto de poder, é desmontada: o Reino não se impõe, recebe-se na entrega. O individualismo religioso é insuficiente; a vida eterna passa pela partilha com os pobres. A fé como mercadoria, transformando bênçãos em produtos, é desmascarada pela gratuidade do seguimento. O clericalismo, igualmente, é atingido em cheio: títulos e funções nada valem se o coração não se desapega para servir. O Papa Francisco lembra: “O clericalismo é uma perversão” porque substitui serviço por poder.
O Magistério atual reafirma esta perspectiva. Gaudium et Spes (n. 63-66) alerta contra medir o homem pelo que possui. A Evangelii Gaudium denuncia: “esta economia mata” (EG 53). A Fratelli Tutti insiste que não há humanidade sem fraternidade e que não há futuro para quem escolhe muros e exclusão. O desapego não é idealismo, mas condição de liberdade, justiça e fraternidade concreta, traduzida em escolhas políticas, sociais e comunitárias.
O jovem rico não é apenas personagem do passado; é retrato de cada um de nós, de nossas comunidades e da própria Igreja, sempre tentada a se apegar a bens, prestígios e tradições rígidas. A liturgia repete esse texto para que não nos contentemos com o mínimo da lei, mas nos lancemos na plenitude do amor. Não basta não matar: é preciso promover a vida. Não basta não roubar: é preciso partilhar. Não basta não levantar falso testemunho: é preciso colocar-se ao lado da verdade. Não basta cumprir mandamentos: é preciso seguir Jesus. A tristeza do jovem rico é também a tristeza de igrejas e indivíduos que se apegam a privilégios, prestígio ou segurança material, perdendo a liberdade profética.
Assim, a mensagem final se faz clara: a alegria do cristão não está na posse ou no controle, mas na entrega. O verdadeiro tesouro não se mede em bens, mas em amor doado, liberdade conquistada e coração aberto. Seguir Jesus é aceitar o risco da entrega, perder para ganhar, deixar para viver plenamente. Como Paulo declara: “Tudo considero perda diante da sublimidade do conhecimento de Cristo” (Fl 3,8). A liturgia insiste, geração após geração, com a mesma pergunta: “Que me falta ainda?” (Mt 19,20). E a resposta de Jesus permanece atual: desapegar-se para amar, perder para encontrar, deixar para seguir. Que a Igreja e cada um de nós, hoje, escolham a alegria da entrega e a liberdade do coração aberto, permitindo que a vida verdadeira floresça em plenitude.
DNonato - Teólogo do Cotidiano
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